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12/06/2016

O Gordo

Continuamos com as aventuras do táxi do Bendl. Agora com uma reflexão sobre as agruras de quem, como ele, tem um excesso de peso, digamos, considerável.

Sou um homem gordo, dizem.

Colegas do Ponto – alguns magros e antipáticos metidos a elegantes – me elegem como alvo para brincadeiras constantes (nem sempre estou disposto a ouvi-las). Passageiros me perguntam se não me sinto mal com este peso excessivo. Respeitosamente eu lhes respondo que é o carro que está nos conduzindo... Não nego, no entanto, que entrar e sair do Siena não é tão simples, pois preciso me utilizar de uma certa “técnica”.

Um dos tantos constrangimentos que o obeso vive está no transporte coletivo (andar de ônibus, nem pensar!). A catraca do cobrador é a grande inimiga e o flagelo do gordinho para gáudio e alegria dos demais passageiros. Dá pena a aflição do bem nutrido quando tem de descer com  rapidez e se encontra pagando a passagem. Uma verdadeira catástrofe!

De modo que eu não mais desempenhasse o papel do homem-entalado, ando agora somente de lotação, confortavelmente sentado, pois mesmo que alguém se atreva a dividir o assento comigo sua única opção é ir em pé, para minha satisfação e acomodação.

Nós, gordos, enfrentamos – além do peso – desprezos explícitos, olhares de rejeição, maledicências, sendo que seria extremamente benéfico se aceitássemos que não reside somente na estética o nosso maior problema, mas na perda da saúde gradativamente. Vai dizer isso para o gordo, tenta...

Um episódio divertido e que retrata fidedignamente o quanto somos discriminados e o verdadeiro asco que sentem por nós, foi quando busquei um passageiro numa academia, por sinal, muito conhecida da cidade. Botei o pé na porta e a primeira moça que me viu abandonou rapidamente sua atividade física, estampando na face um terror que eu jamais vira igual! Outra jovem, esbelta, não acreditava no que via, no seu espanto era como se eu fosse um extraterreno; a terceira, que deveria ser a atendente, correu ao meu encontro berrando: “não temos vagas, não temos vagas”!

Propositadamente depois da calorosa recepção resolvi me demorar um pouco mais nas dependências daquele templo das formas (câmara de tortura física para mim) ou fábrica de ilusão à perfeição corporal para muitos. Nesse tempo que permaneci lá dentro causei tamanho mal-estar que dois jovens vieram me pedir educadamente que eu me retirasse porque estava comprometendo a imagem do estabelecimento!

Alguns passageiros que transporto me falam em cirurgia bariátrica como solução; outros, em reeducação alimentar; os mais radicais dizem severamente que devo fechar a boca, passar fome, se quero de fato emagrecer; pessoas místicas, religiosas, espiritualistas, me ordenam fazer promessas, rezar, usar de simpatias e andar com  amuletos.

Dizem até que meu peso é castigo divino; vegetarianos acusam a carne como a maior responsável à obesidade; conhecidos meus, homens e mulheres, donos de corpos bem delineados, magros, me sugerem sexo em profusão (claro que observo um sorriso matreiro no canto de suas bocas); clientes do táxi que são verdadeiros atletas dizem que devo caminhar, percorrer dezenas de quilômetros(!), me exercitar sem parar; alguns intelectuais que eventualmente andam comigo me indicam livros que abordam essa temática, que divulgam regimes espetaculares, que determinam a eliminação dos carboidratos nas refeições e não ingerir líquidos ou medir alimento por alimento o índice glicêmico ou separá-lo por cor ou que tenha mais fibras, ou seja, pobre de nós, os gordos, se ousássemos nos orientar por essa variedade de conselhos, opiniões e indicações. Indiscutivelmente nosso destino seria o hospício!

Magros, porém, absolutamente loucos!

No entanto, para alguns profissionais nessa área específica, o obeso é um prato cheio (não encontro expressão mais bem colocada que esta).
Não há médico que não esfregue as mãos ao tê-lo em sua frente:
Para o gastroenterologista, o gordo tem o estômago estilo roda gigante, um carrossel, um  parque de diversões para brincar e pesquisar sobre a verdadeira dimensão que uma pança pode atingir; o vascular encontra no obeso inúmeras oportunidades de refazer veias e artérias, transformando-se, também, em engenheiro civil, diante da quantidade de pontes de safena a construir e canais a serem abertos e desentupidos, inclusive a construção de ramais para o sangue irrigar melhor (a transposição do rio São Francisco é simples, diante da complicada engenharia que deve ser utilizada no interior de um gordo);

o pneumologista, constata, boquiaberto, a inexistência de pulmões mas, surpreendentemente a substituí-los dois cilindros do tamanho dos tubos de GNV que abastecem o táxi pelo esforço que fazemos para respirar após qualquer esforço físico; ortopedistas se divertem em colocar próteses nos joelhos comprometidos pelo peso que suportam e não compreendem a resistência óssea que ainda temos por não quebrá-los somente com o andar; endócrinos não acreditam que tantas glândulas “desreguladas” (hipófise, tireóide, pâncreas, parótidas) consigam fabricar substâncias capazes de manter aquele corpo funcionando;

o psicanalista descobre tamanha desigualdade entre corpo e mente que não consegue equalizar ego, id, superego, deixando de lado o problema principal que é a compulsão pela “bóia”; o psiquiatra tem grandes desafios para elaborar tratamentos e receitar medicamentos que possam amenizar os desvios de comportamento do peso pesado, suas neuroses, fobias, complexos, frustrações, transtornos obsessivos compulsivos, depressões, e irá se espantar com descobertas de patologias de ordem mental que somente nós, os fofos, desenvolvemos; o psicólogo percebe de imediato a extrema dificuldade que terá para introduzir esse ser humano(!?) no meio social;

cirurgiões plásticos estarão de posse de vastas áreas corporais para reformas e contornos, de modo a modificar e alterar a monótona paisagem física que o gordo tem: a arredondada; o nutricionista se alegra em praticar no obeso as teorias que lhe ensinaram na faculdade a respeito de alimentos balanceados, dietas equilibradas, reeducação alimentar, ingestão de mais fibras...
Só tem um problema: não lhe avisaram da rebeldia inata do gordo para comida sem gosto, saladas (veneno puro!), baixas calorias, iogurtes, alimentos leves, dietas, regimes, aliás, é com esse profissional que o obeso mais se diverte, digo isso respeitosamente, pois o que este lhe ordena, ele faz justamente o contrário.

Nesta ciranda de informações e protocolos, receitas e novos padrões de conduta que temos de nos submeter, a dificuldade do gordo é urgente. O tempo é o maior inimigo porque na razão inversamente proporcional ao aumento de peso diminui a saúde, que se debilita dia a dia, além das dificuldades rotineiras: A começar pelo banho e o indescritível esforço que o gordo tem de fazer para lavar “lá”; calçar sapatos e meias é uma tarefa de obstáculos quase intransponíveis (notem como o obeso evita usar meias); comprar roupas é uma verdadeira penitência porque precisa ser provada duas vezes.

O primeiro teste é o da cabine da loja, nem sempre compatível com o tamanho do super cliente. Uma vez que a roupa serviu – graças a Deus que entrou! -, somos obrigados por assim dizer a viver apenas com um tipo de moda: chama-se ainda-bem-que-achei, pouco interessando se larga, exagerada, ridícula, feia, monocromática (a cor preferida do gordo é a preta, que emagrece!, só pode ser gozação) e, se estampada, obrigatoriamente com listras verticais (afina a silhueta, dizem os cínicos), afinal de contas a imagem do gordo é grotesca, disforme, deselegante; sensações e prazeres inerentes aos seres humanos “normais”, por conta da gordura os avantajados encontram dificuldades em senti-las, ocasionando grandes mágoas; alguns obesos, notadamente os casos mais graves de peso excessivo, diabetes, colesterol elevado, movimentos irremediavelmente comprometidos, impossibilidade de tomarem banho sozinhos, relatam fatos deprimentes de familiares que os segregam, insultam e os abandonam à própria sorte.

A sociedade que bitola as formas corporais do homem e da mulher e as define e conceitua quando belas e corretas ou horrendas e deploráveis, encontra no gordo o desleixo, aquele cara que-se-deixa-levar-pela-boca, a ausência de força de vontade (mal sabe esta gente as razões pelas quais uma pessoa se torna obesa).

Muita gente se sente “ofendida” com este comilão, sujeito paquidérmico, feio, repugnante, um ser absolutamente dispensável no atual cenário e padrões de beleza e saúde tão propalados: a magreza, o corpo malhado, o físico idolatrado, a obsessão pela forma atlética (nos meus planos de vingança contra os belos, gosto de perguntar inesperadamente se eles sabem a capital de Roraima). Sociedade que, veladamente algumas vezes em outras escancara o seu preconceito e rejeição contra o gordo, o isola, o confina, obriga-o a conviver com gracejos e humilhações sobre o seu tamanho enorme, pesadão, suarento, a ocupar largos espaços nas calçadas, nos bares, cinemas, transportes, corredores de supermercados...; o obeso é modelo de como não se deve ser, exemplo de má conduta social, de fraqueza, alardeiam injustamente.

Pena que as pessoas esquecem que jamais alguém de sã consciência iria querer para si tanta aversão e deboche pelas suas dimensões. O gordo não quer ser alvo de recalques, agressividades gratuitas, fobias inexplicáveis.
O obeso precisa é de ajuda!
As ofensas sofridas por conta do corpanzil, através de gente insensível, maldosa e preconceituosa, são tão prejudiciais à sua saúde (ele continua a comer por birra) quanto ao moral, ao espírito, ao ego (que ele já engoliu, pensando que se tratava de uma bala de goma), ao próprio convívio social.

  Na triste e lamentável constatação e dor irreparável deste divórcio físico e mental com as pessoas, o gordo, então, faz da sua geladeira a sua companhia predileta; o fogão serve de inspiração para novos pratos e se transforma maravilhosamente na sua “musa inspiradora”; o freezer guarda as lembranças gostosas de um passado recente (o sorvete de nozes que restou um pouco, parte da lasanha do jantar de ontem, as sobras de um churrasco de gorda costela desossada que foi parcialmente devorada...); desconhecem seus agressores que o gordo procura na comida muito mais que simplesmente se saciar.
Ele tenta encontrar nas refeições – e quanto mais calórica melhor! – o vínculo perdido com seus semelhantes, apesar de o denominarem como um animal (elefante, hipopótamo, porco, baleia...); o obeso tenta procurar nos alimentos que ingere com sofreguidão (ele os mastiga pouco) os sentimentos que lhe negam desaforadamente: carinho, afeto, amizade, consideração, compreensão, namoro...respeito!

Ouvir música, deixar-se embalar pela sonorização e maviosidade da canção, significa viver uma ilusão (sim, o gordo sonha, inacreditavelmente), um idílio amoroso, dançar com a mulher que imagina amar e que irá lhe retribuir um amor tão grande quanto o seu tamanho; sentar-se em frente à TV não é só assisti-la, mas debater com apresentadores, xingar, expor o seu pensamento em altos brados. Afinal de contas, a televisão não o ofende e nem lhe faz troça.

Restringir-se à própria casa (quando tem), manter-se recluso (na verdade escondido), não é deixar de simplesmente ser motivo de piada e achincalhes, repulsa e ódio (já aprendeu a conviver com isso), mas evitar a todo custo não perder a sua admitida resignação com a sua existência sofrida, pois esta conformação é o que lhe serve de anteparo para não dar cabo da sua vida.

Sua imensa dificuldade consigo mesmo é notória, principalmente na intimidade, restando-lhe abandonar a manutenção dos elos que o uniam à alegria, à satisfação, ao riso (um gordo alegre é máscara, simples e grotesco esforço de se ser simpático perante ao “grupo” e, desta forma, não ser tão rejeitado, travestindo-se num melancólico bobo da corte), haja vista a vergonha que sente do seu corpo e de não se sentir mais útil, mas perceber e sofrer a dor inimaginável – diante dos seres “normais” – de ser tão somente um grande peso morto.

O físico rotundo, de larga circunferência, tem a exata medida dos infortúnios, dissabores, tristezas, desespero, humilhações, exclusão social e desencantos com a vida.
              A sensação, portanto, de uma vida que podia ter sido e não foi, talvez só possível em quimeras, um mundo pessoal onde não existisse tanta dor para viver e, por vezes, insuportável, me faz lembrar do extraordinário Manuel Bandeira (l.886-l.968):

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.”

Diante desta avalanche de problemas físicos, emocionais e mentais verdadeiramente impossíveis de resolvê-los não me resta outra idéia que ir saborear um lauto churrasco, regado a gelados refrigerantes (sou motorista, álcool nem pensar!) e fantásticas sobremesas, pois o corpo pede comida e a fome é muita.

FUI!!!

3 comentários:

  1. Francisco Bendl13/06/2016, 11:12

    Wilson,
    Obrigado por publicares esta crônica na sua totalidade, sem cortes, pois ela precisa ser mostrada completa, sem restrições.
    Digo por quê:
    Eu a escrevi como uma espécie de libelo dos gordos, e ninguém melhor que um obeso para falar de um ... obeso!
    Coloquei no papel meus sentimentos absolutamente sinceros quanto às emoções e sensações que temos com relação à sociedade e conosco, ao mesmo tempo, que não são as mais adequadas, as mais exemplares, porém controvertidas e inamistosas.
    Tanto somos vistos com relutância pelos "normais" quanto somos analisados por nós mesmos como excrescências, e que precisaríamos tomar providências com o peso.
    Entretanto, escrever, falar, dizer, são diferentes de fazer, de tomar medidas para emagrecer, e reside neste impasse de ser como está para ser outra pessoa, com menos peso e mais saúde, o conflito do fofo!
    A ENORME FORÇA DE VONTADE PARA MUDAR!
    Grato pela honra que me tens dado de registrar as minhas croniquetas, que foram feitas mesmo com seriedade, honestidade de propósito, e porque me deixavam alegre pela ocupação de mencionar alguns episódios ora hilariantes ora tristes ora curiosos ora enigmáticos.
    Um abraço, meu caro Wilson.

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  2. Wilson Baptista Júnior13/06/2016, 14:57

    Caro Bendl,
    não tem nada que agradecer. Pelo contrário, quem tem que agradecer sou eu, por você ter permitido a publicação de suas crônicas aqui.
    Um abraço.

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  3. Amigo Bendl, minha solidariedade ...
    Tenho 1,60 m e estou com a obesidade barrigal dos 63 anos.Interessante que, desde criança, nunca liguei para isso, e observo que hoje, muitos adultos se incomodam com a minha pança literária. Na infância nunca fui de fazer piadinhas com os gordos, e até me divirto qdo algum parente se incomoda com os meus quilos a mais ... De brincadeira, respondo, é que sou budista ! Abração!

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