Antes de seguir para o Norte da África, o Sul e o Sudeste da Ásia, eu li bastante sobre aquelas paragens. Sabia quais eram as sete maravilhas de todos os países que queria visitar, tinha informações de seus passados e presentes, mas um andarilho da gema, antes de colocar o pé na estrada, para além da lista objetiva de fatos históricos e de atrações turísticas dos seus destinos, procura se inteirar é das emoções das pessoas reais que ali vivem. Da arte, da música, das festividades, das crenças.
Para tanto, foram-me de grande valia livros e romances inspirados em paraísos escondidos e em terras arrasadas pelo vasto mundo de vários autores. Lembro de ter lido, então, todos os livros de James Clavell até então escritos: Shogun, Taipan e Casa Nobre. Levei todas aquelas narrativas na memória e no coração. Pois quando se trata da Ásia, as histórias não são necessariamente amenas embora expliquem como cada país e seu povo se tornaram o que são.
Muitas vezes, enquanto bebia uma cerveja em uma praia do Camboja, ou devorava um Pho saboroso no Vietnã, eu olhava para aquelas pessoas que vinham de sofrimento, dominação, guerra, crime e miséria e ainda assim estavam ali, sorridentes e tão orgulhosas de seus países e confiantes no futuro. Mas atenção. Ao se chegar lá, seja lá onde lá for, quem quer realmente saber mais sobre um país desconhecido tem que esquecer os guias, tirar a cabeça dos livros e aprender com os habitantes, com a alma nativa.
Viajar vai além de saborear a bela paisagem, a arquitetura deslumbrante e a gastronomia exótica. São as pessoas que encontramos na estrada que nos tocam e mudam nossa abordagem em relação à vida. Quando, por exemplo, eu me perdi em Srinagar, a capital, durante o verão, do estado de Jammu e Caxemira, na Índia (que eu resolvera visitar por causa da canção do Led Zeppelin), uma mulher kashmiri guiou-me até a parada do ônibus certo, para a Mesquita Shahi Hamdan. No ônibus, ela insistiu em pagar o meu bilhete dizendo "Eu tenho filhas, mas não um filho. Por favor, deixe-me tratá-lo como se fosse meu filho e pagar por este bilhete".
Certa vez, depois de eu ter visitado o Mosteiro Tashiding, o mais sagrado dos mosteiros do circuito de peregrinação budista, no nordeste da Índia, outra senhora, a dona de uma pequena casa de chá, após saber que eu era do Brasil, recusou-se a cobrar-me pelo chá, "porque você veio de muito longe".
Quando peguei um brutal resfriado nas Terras Altas de Sri Lanka, após ter me deslumbrado com os dezenove maravilhosos afrescos que restaram das quinhentas mulheres pintadas nuas - rainhas, concubinas e ninfas - 1600 anos atrás, no alto das rochas de Sirigiya, os donos tamis da pequena guest-house onde eu estava hospedado cuidaram de mim, como se eu fosse um membro da família. Torceram todos pelo Brasil que dava show na pequena tv em preto e branco deles, na Copa da Espanha. Consolaram-me, quando perdemos aquele inesquecível jogo contra a Itália do Paolo Rossi, no Estádio di Sarrià, em Barcelona.
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que fui convidado a dividir o pão em uma mesa nativa. Foi em Marrakesh, a misteriosa cidade vermelha e murada do Marrocos. Meus anfitriões eram os pais de um colega de classe que me pedira o favor de lhes entregar uma encomenda. O senhor, um berbere de alta estirpe, alto, magro e sério metido em um caftan branco na realidade era outro fã incondicional do Pelé. Conversamos sobre futebol. Era agosto, fazia um calor infernal durante o Ramadão, os 30 dias nos quais o jejum é observado da alvorada ao por do sol.
A senhora da casa, coberta dos pés à cabeça, preparou-me um banquete que começou com a harira, a sopa substanciosa e muito forte com a qual eles quebram o jejum, composta de carne de cordeiro, grão de bico, ervas aromáticas e outros segredos. Em seguida saboreei o mechoui, o cordeiro assado inteiro no espeto sobre as brasas de um fogo lento de madeira. Para finalizar apareceu a pstila, uma espécie de torta de massa folhada recheada com carne de pombo, misturada com castanhas e passas e tâmaras, tudo polvilhado de açúcar e de canela. Maravilha! E para beber? Chá de hortelã. Escrevi os nomes exóticos das iguarias no meu diário e é sempre esta a minha escolha em qualquer restaurante árabe onde eu me sente. Dica: para um mechoui valer a pena, tem que ser encomendado de véspera, pois a carne não fica no ponto, escorregando dos ossos, antes de assar por 24 horas.
Sim, ainda eu sou muito brasileiro e foi neste chão, da nossa pátria "tão pobrinha" e tão amada, que decidi plantar minhas raízes quando cansei. Ninguém se perde na volta. Mas, enquanto eu viajava, alguma coisa em mim foi se transformando. A pátria, de repente, foram todos os lugares onde eu fui feliz, fiz amigos, curti suas histórias curiosas, com eles bebi uns copos, dividi uma refeição, ouvi música desconhecida e tive certeza de que vida... era uma viagem.
Conterrâneos foram todos aqueles que eu ia descobrindo serem iguais a mim, não importando a cor, a etnia, a cultura, a conta bancária, a religião, e a latitude. Gente! Se não me pareciam estranhos? Bom, eu sempre ouvira dizer que estranho era eu, por viver com a cabeça nos livros. Então acho que sempre precisei de gente, gostei de gente, quanto mais estranha fosse ou quanto menos estranho me fizesse sentir que eu era, melhor.
Pela estrada, os meus valores tinham que valer para todo mundo e, portanto, se tornaram universais. A dor também se alargou para nela caber a dor do mundo - a Weltshmerz - essa palavra alemã, que traduz o cansaço e a tristeza que carregamos na alma, pela inadequação e a crueldade do mundo físico, mental e espiritual que nos circunda. E finalmente a língua já não podia ser só a minha, aquela mãe, pois tornara-se vital estabelecer a comunicação fora dela.
Se eu tivesse que resumir - e a esta altura do texto já ficou claro que a síntese não é a minha especialidade - o que eu aprendi nas minhas viagens, eu pediria ajuda aos versos do Mestre Antônio Machado:
Caminhante, são suas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar.
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