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25/06/2016

O Tagarela


Francisco Bendl

Eu sou um motorista que gosto de conversar durante os trajetos levando passageiros.

Nem sempre as conversas são agradáveis, ainda mais quando descambam para os aspectos de cunho pessoal, a vida íntima ou uma particularidade que só àquela pessoa interessa.
Mas são casos raros. A maioria dos passageiros mantém um comportamento educado e um diálogo interessante, independente de ser homem ou mulher o transportado.

A clientela do Ponto já conhece as características de cada motorista e torna-se fácil o relacionamento, pois de um lado e outro se sabe como tornar o percurso o melhor possível.

Diante da diversidade de pessoas que conduzimos não é possível guardar na memória o passageiro eventual, ocasional, aquele que não vamos ver mais salvo uma grande coincidência, e já aconteceu comigo, de transportar duas senhoras que pegaram o táxi no bairro Azenha sem que eu as tivesse levado uma só vez e no dia seguinte elas entrarem no meu carro me acenando da rua na Presidente Roosevelt!
Dois dias depois eu as conduzi na Lima e Silva e também através de aceno que me fizeram na avenida. Fizemos uma festa pela surpresa do reencontro e porque – em tom jocoso – nossos encontros significavam que alguém estaria interessado em alguém.
Eram duas senhoras na terceira idade, extremamente simpáticas e agradáveis – duas irmãs – que não se desgrudavam uma da outra.

Muito diferente do José (nome fictício, óbvio), um cara que não calava a boca desde que entrava no carro até sair e, pior, achava que sabia de tudo (na verdade enrolava os mais incautos).

Coincidia de eu levá-lo seguidamente. E mesmo que não fosse assim o José ficava para eu transportá-lo porque os colegas davam no pé, ninguém gostava do lero lero que ele aplicava. Desta forma eu fui conhecendo as manias do gajo e seus falsos conhecimentos a respeito de história, geografia, literatura brasileira, autores estrangeiros, compositores internacionais etc, etc.

O José tinha um verniz apenas e não resistia a qualquer interpelação ou contestação sobre o que afirmava, bastava que não se concordasse com o que dissera que ele puxava o carro, isto é, mudava de assunto para não se comprometer.

Certa vez o José entra no táxi porque eu era o ponta e imediatamente aborda assuntos sobre religiões.
Começou a falar do espiritismo, catolicismo, anglicanismo, protestantismo. Sofreu um pequeno golpe quando eu lhe perguntei sobre o que sabia do calvinismo. Fez-se de rogado. Continuou a dissertar sobre religiões politeístas até chegar ao espiritismo.
                        Enquanto ele tomava fôlego e para impedi-lo de tagarelar um pouco, eu lhe indaguei a respeito do que poderia me dizer das diferenças entre budismo e espiritismo, afinal de contas são doutrinas que propalam a reencarnação, portanto, há uma identidade entre elas.

O José era esperto. Percebeu a minha intenção e alterou a sua postura passando a perguntar para mim o que eu sabia sobre ambas e o que as diferenciava.
De modo a me testar em definitivo pela audácia de um motorista de táxi manter um diálogo com um estudioso sobre este tema, ele me pergunta de sopetão o que eu sabia do Nirvana.
Confesso que se tem uma conversa que gosto é a respeito de filosofia, doutrinas, religiões. Seus fundadores, suas escolas, suas formas diferentes de encarar o desconhecido e passos que devemos seguir para viver melhor ou alcançar a salvação ou o aperfeiçoamento ou de entender melhor a vida.
Eu havia lido recentemente sobre o grande Buda (até me pareço com ele na dimensão de nossas barrigas conforme as imagens tradicionais do notável indiano), as correntes do budismo e sempre nutri uma grande simpatia por esta doutrina de paz, de contemplação, de busca incessante pelo conhecimento que as pessoas precisam ter de si mesmas.

Comecei a responder ao José que Buda não gostava muito quando seus monges lhe perguntavam sobre o Nirvana, que não é a mesma coisa que “ir para o céu” como entendemos, e disposto a terminar logo com esta curiosidade, Buda dizia:

“Existe, monges, um não nascido, não tornado, não feito, não composto. Se, monges, não houvesse um não nascido, não tornado, não feito, não composto, não haveria uma fuga do nascido, do tornado, do feito do composto. Mas como existe um não nascido, não tornado, não feito, não composto, portanto, há uma fuga do nascido, do tornado, do feito, do composto.”

O José me olhou de cima abaixo, balbuciou algumas palavras sem sentido e ficou calado e quieto. Eu conseguira lograr êxito em querer que ele parasse de falar, finalmente.

Ao descer do táxi e me estendendo o dinheiro da corrida, exclamou:
- Bem que me avisaram que motorista de táxi é metido e o que não sabe inventa. Esta, Chicão, tu me ganhaste!

O José desconhecia que um dos meus livros de cabeceira - e seguidamente eu o levo comigo no táxi -  chama-se Uma História de Deus, de Karen Armstrong, Companhia das Letras.
Uma das maiores conhecedoras do assunto sobre religiões no mundo e autora de vários livros importantes sobre a Bíblia, Islamismo e Judaísmo.
Esta passagem que citei acima sobre o Buda, consta na página 45 do livro também já mencionado e que me impressionou pela maneira como este líder espiritual respondia a certas questões.
Recomendo, humildemente, para quem quiser saber mais a respeito deste tema que leia este livro.

4 comentários:

  1. A crônica do Bendl me fez lembrar que, certa feita, entrei em um táxi no centro do RJ, sentado no banco de trás percebi que, presas aos bancos dianteiros haviam duas sacolas e todas com livros da grande poetisa Cecília Meireles. Eu elogiei o motorista, ele perguntou se eu conhecia, respondi sim e acrescentei: "sou professor de Literatura, gosto muito dela". Então o taxista respondeu: "Sou neto dela".No percurso tivemos boa conversa.

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    1. O surpreendente no serviço de táxi é o inesperado, a surpresa, o próximo passageiro.

      Pois esta expectativa, Rocha, é que me levou a escrevinhar essas vinte crônicas sobre a minha função durante seis anos perambulando pelas ruas de Porto Alegre, transportando uma gama enorme de pessoas interessantes, alegres, dispostas, e outra com gente comum, triste, sem vigor.

      Curiosamente, aquelas que melhor viviam, pelo menos aparentemente, tinham menos bens materiais que as demais, não ganhavam o mesmo salário, não tinham o nível educacional daquelas, então como poderiam ser mais felizes?

      Pelo despojamento?

      Simplicidade de suas vidas?

      O desconhecimento seria uma forma de a existência se tornar mais "leve"?

      A minha certeza diz respeito apenas às diferenças que entendemos da vida e, desta forma, enfrentá-la ou colocá-la de lado através de subterfúgios, tais como a bebida, as drogas, os múltiplos relacionamentos, a inconstância pessoal.

      Grato pelo comentário, Rocha.
      Um forte abraço.
      Saúde e Paz!

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  2. Moacir Pimentel26/06/2016, 20:17

    Caro Bendl,
    Eu tenho muita dificuldade de entender e de lidar com esses tipo "tagarelas", que ironizam e humilham, que não querem aprender nem fazer perguntas , mas tem todas as certezas e respostas rasas e prontas sobre tudo.Tudo bem que gente assim tenta impressionar os outros, porque se preocupa com que as outras pessoas pensam sobre eles.Mas gente assim não está está acordada,ligada e muito menos consciente. Não compartilha do sentimento de admiração e mistério que nos fizeram inventar a linguagem, a arte, a escrita , a música, a matemática , a lógica , o direito, a ciência , todo o conhecimento de uma espécie que não tem resposta para todas as perguntas mas que tenta.Não podemos parar de perguntar por que ? por que ? por que ? porque ISSO é ser humano.Nós olhamos sempre para a frente, à procura de mais alguma coisa e indo para mais algum lugar atrás de mais verdades.Mesmo a espiritualidade talvez nada mais seja além de curiosidade, do genuíno espírito humano, de sentidos aguçados, prestando atenção, ouvindo, conversando , tentando compreender experiências humanas, o que é certo e errado, o que é o mundo e a vida, o que está no outro lado, acima e além e em profundidade, numa viagem , em um processo de aprendizagem todos os dias, com sede de conhecimento de compreensão , de conexão e de evolução.
    "Todas as religiões, artes e ciências são ramos de uma mesma árvore. Todas estas aspirações são dirigidas para enobrecer a vida do homem, levantando-a da esfera da mera existência física e conduzindo o indivíduo para a liberdade ".
    - Albert Einstein.
    Abraço

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    1. Caro Pimentel,
      Como temos necessidade de a certeza estar conosco, e diante desta impossibilidade, como nos deixamos levar por crenças as mais incompatíveis conosco!

      Interessante que não vejo esta luta pela vida, por vencer, por ter uma existência melhor, mas a ânsia em se descobrir o que existe depois da morte, negligenciando esta etapa que seria demasiado importante à continuação desta existência no "além", indiscutivelmente.

      E quanto tempo precioso se perde nesses "estudos" com relação a se conhecer o outro lado, enquanto a realidade é posta de lado, resultando em se continuar na ignorância da vida além desta e seguir vivendo de maneira medíocre pela falta de objetivos nesta existência com relação a ela mesma.

      Paradoxo?

      A vida que queremos jamais será esta que entendemos estar vivos?!

      Ou a vida que deveríamos considerar é esta para podermos chegar vivos em outra existência?!

      E se nada existir após a morte?

      Uma nada engraçada "pegadinha" de Deus ou Ele também não existe?

      Muitas questões para nenhuma resposta certa, Pimentel, portanto, a meu ver, tentemos ser gente boa neste plano, pelo menos.

      Um forte abraço.
      Obrigado pelo texto.
      Saúde e Paz!

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