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27/06/2016

A Máquina do Tempo



Boy listening to radio - Ryedale Folks Museum


Heraldo Palmeira       

No centro da sala pré-televisão, um solene rádio Franklin (marca da Philips argentina), valvulado, caixa mista de madeira e baquelita trazia o mundo para dentro de casa por meio de duas emissoras AM de cidades vizinhas. Havia sempre um disc-jóquei ocupando manhã ou tarde inteiras com seus programas. Depois da escola, eu “entrava no ar” a partir das 11h e seguia até A Hora do Angelus, quando a Ave-Maria de Gounod anunciava suavemente que era hora do banho, porque em pouco tempo meus pais chegariam do trabalho e o jantar seria servido sem atrasos.

Logo na abertura do programa, a voz impostada do locutor lançava a isca fatal: “Daqui a pouco, The Beatles!”. E o sujeito ficava embromando a tarde inteira para, quase noite, enfim liberar a magia – estou ouvindo lembranças de 1966, quando já estávamos completamente contaminados pelo som repetido naquela espécie de cadeia de rádios em várias casas, espalhando o vírus a todo volume na cidade inteira.

A contaminação começou em 9 de fevereiro de 1964, quando uma América perplexa sediou um surto de histeria até então desconhecido, que dera os primeiros sinais dois dias antes com a paralisação do aeroporto JFK, em Nova York.

Naquela noite de domingo, a rede CBS levaria ao ar mais um programa The Ed Sullivan Show, até então um mamute de popularidade. Ali, descobriu-se que a audiência monumental era apenas um elefantinho diante do que viria depois, já que “apenas” 73 milhões de pessoas (34% da população americana da época) se postaram diante de suas tevês, eletrizadas pelos rapazes de Liverpool. Foi o instante em que aqueles quatro garotos que enlouqueceram o aeroporto ao desembarcar, conquistaram definitivamente a América e partiram para enlouquecer o mundo, inauguraram a beatlemania e começaram a consolidar a maior banda de todos os tempos.

Passados cinquenta anos, a mesma CBS produziu um especial para comemorar aquela noite memorável. A noite que mudou a América virou mais um marco de uma banda acostumada a feitos estratosféricos. E deixou claro que, por mais que alguém com muito talento entre na fila, ninguém consegue pisar o território de divindade dos Beatles. Uma divindade obtida exatamente porque eles pisaram juntos céus e infernos humanos enquanto mudavam o comportamento do mundo, amparados pela obra genial que produziram.

O show contou com releituras de clássicos da banda feitas por uma constelação de astros da música mundial. A noite já seguia imperdível, até que Ringo Starr pisou o palco e elevou tudo para outro patamar, o reino do sobrenatural. A ponto de a sempre estranha Yoko Ono, agora oitentona, cair na gandaia enlouquecida numa dança estranhíssima, parecendo possuída por alguma entidade!

Logo depois, com a entrada de Paul McCartney em cena, veio a comprovação de que até o sobrenatural tem graduações. Ao lado do velho comparsa, e invocando as memórias de John e George, o cavaleiro de sua majestade abriu as portas da máquina do tempo.

Diante daquela apoteose, a gente se pergunta: por que ninguém cansa de ouvir as velhas, insuperáveis e eternas canções de sempre? Por que elas seguem tocando com frescor? Talvez porque sejam guardadas até por crianças muito pequenas, que se esgoelam em cada palavra das letras para engrossar o coro dos pais e avós.

No panteão dos maiores da música de todos os tempos, The Beatles vive acima do topo. E a distância entre o primeiro lugar e o topo é dimensão de Universo. O resto é galáxia!

3 comentários:

  1. Eu tb sou da geração rádio, por um lado ouvia a Rádio Nacional, RJ, todo dia, antes da Voz do Brasil tinha a radionovela "Jerônimo, o Herói do Sertão". Por outro lado, ouvíamos o espiritualista Alziro Zarur, fundador da LBV, algumas vezes, fui com minha na Av.Venezuela onde ficavam os estúdios e auditório da Rádio Mundial.

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  2. Moacir Pimentel28/06/2016, 08:39

    Mestre Heraldo,
    Quando no seu texto , eu cheguei na hora do Angelus e ouvi, de novo, a Ave-Maria de Gounod dos finais de tarde da minha infância ,o senhor já tinha me mediunizado.Agora falar dos Beatles é ... sacanagem.
    Mas o fato é que os caras continuam e que já ultrapassaram um bilhão de registros de vendas. Todo mundo gostava deles, então, e todo mundo gosta deles, agora, mesmo que Hey Jude continue com inaceitáveis oito minutos de duração.
    Meus filhos não me deixam mentir. Para eles os Beatles são tão incontroversos quanto a lua. Apenas lá, brilhando.
    A gente se pergunta por que os rapazes de Liverpool permanecem e por que quanto mais tempo faz que os ouvimos ao vivo, e quanto mais o tempo deles recua na história, mais vital lhes fica o som?
    Talvez porque eles eram apenas rapazes mais místicos que provocadores, talvez porque o grande tema deles tenha sido a infância perdida e o que fazer com as formas austeras, racionadas e ordenadas do seguro mundinho inglês no qual tinham crescido. Isto foi cantado em versos naqueles compactos de Strawberry Fields e de Penny Lane e de Eleanor Rigby - Ah, look at all the lonely people - oriundos das memórias e dos sonhos dos jardins , dos cemitérios e das ruas de Liverpool, onde meninos maluquinhos encontravam consolo e meninos brilhantes podiam ver e sonhar o mundo.
    A música dos Beatles permanece, acima de tudo, porque sentimos nela o poder da colaboração entre opostos. John compreendeu instintivamente que o que separa um artista de um artista é surpreender sua audiência. Paul tinha a compreensão sobretudo de música e sabia intuitivamente que quando a arte deixa de entreter é mero vanguardismo. Naqueles sete anos, quando o alcance da visão de John conheceu as mãos de Paul, todos nós escalamos o Everest. Everest era para ser o título do último álbum deles.rsrs
    O dom dos Beatles, a sua visão , a mensagem deles, era de harmonia e nisso eles eram bons: harmonizar vozes e sons - de cítara,inclusive! - misturar e experimentar nas canções, fazê-las pura melodia, nos pedindo para acreditar em um mundo melhor, onde todos vão cantar juntos a uma só voz.
    É por isso que Beethoven fez com que a sua Ode an die Freude, à alegria, fosse cantada por um coro, e até mesmo os tristonhos Bach e Handel terminaram suas maiores obras com corais - para animar-nos a crer nesse sonho, ao ouvir aquelas vozes sublimes , pois elas soam como se já tivéssemos chegado lá.
    A arte nos faz vivos e conscientes e, às vezes , nos mete medo, mas raramente nos faz felizes. Cinquenta anos depois, os Beatles estão vivos porque eles ainda nos provocam o mais incrível dos sentimentos: o da apreensão de uma felicidade que podemos realizar.Não sei se os meus netos gostarão dos Beatles,Mestre Heraldo,mas se depender do avô,eu diria que ...yeah,yeah,yeah!

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  3. Concordo plenamente que o rádio para os mais velhos foi mesmo a Máquina do Tempo!

    Do alto dos meus 67 anos, as recordações que povoam a minha mente dizem respeito aos programas infantis e, um deles, que era transmitido pela Rádio Guaíba, de Porto Alegre, era Ricardo, o Herói do Espaço, após a Hora do Angelus!

    O programa obrigatório aos domingos à noite era Grande Rodeio Coringa, na Rádio Farroupilha, das novelas à uma hora da tarde, horário que o pessoal parava a cidade para ouvir, até mesmo porque o comércio fechava ao meio dia a abria às 14 h.

    O Repórter Esso, às 13 h e das 19 h era imbatível em audiência, e havia os programas ao vivo, em auditórios, com cantores que se lançavam na vida artística.

    Um desses personagens que teve um sucesso esplendoroso e saiu de um programa de auditório na capital gaúcha foi a inesquecível Elis Regina.

    Agora, o rádio nos levava para qualquer canto do mundo em imaginação e, a música, era a espaçonave que vencia distâncias e o tempo, principalmente porque vivi intensamente no período que se inventou o rock, e artistas como Elvis Presley, e conjuntos como The Platters, a orquestra de Ray Conniff eram tocados muitas vezes durante o dia.

    Os Beatles surgiram depois de Elvis, e foram contemporâneos dos Stones, enquanto o Rei do Rock era usado para fazer seus filmes açucarados na década de sessenta.

    Abandonando esta forma de se projetar, Elvis inicia em 68/69 suas apresentações em Las Vegas, e se mostra mesmo como imbatível, e alcança os píncaros do sucesso e da glória!

    O rádio foi verdadeiramente a extraordinária testemunha dos avanços nas artes, ciência e tecnologia, após a Segunda Guerra Mundial, e quando o mundo se viu obrigado a se desenvolver, a crescer, combalido por várias guerras depois de 45, citando eu rapidamente a Fundação do Estado de israel, a Independência da Índia, a Guerra da Coréia, a derrota dos franceses na Indochina, e a humanidade precisava de paz, de novidades, de se rebelar contra as revoltas que não paravam de eclodir, que fizesse uma guerra cultural, sem armas, mas de ideias!

    Bela lembrança sobre o poder do rádio neste texto de Heraldo Palmeira, muito bem escrito, pelo qual lhe parabenizo a qualidade da crônica e o resgate do maior conjunto de rock de todos os tempos, The Beatles!


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