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30/06/2016

Vida



Francisco Bendl    

Hoje trazemos mais uma reflexão do Chico:  


Os taxistas que trabalham em Pontos fixos têm vantagens sobre os colegas que operam livremente, é o que eu penso.

Há uma clientela conhecida, formada. Sabemos quem são os mais amáveis, os ranzinzas, os que dão gorjeta, os que esperam o troco até em moedas (de pleno direito, diga-se de passagem), os que nos confiam a lista do supermercado para que façamos as compras no seu lugar, enfim, existe uma rotina já sabida por todos.

Em razão de andarmos muito pelo bairro, descobrimos particularidades de certas ruas, seus movimentos, a forma como seus moradores estacionam os carros, se as crianças cuidam ao atravessar as ruas, se há espaço suficiente para que possamos apanhar os passageiros sem ser em fila dupla, detalhes que somente o ir e vir ensinam.

Numa dessas esquinas do bairro Menino Deus, “morava” um grupo de gente jovem.

Eles usavam a calçada como casa e, encostados no muro de uma residência, os colchões onde dormiam.

Não tinham absolutamente nada. Viviam de doações e os trocados que os proprietários de veículos lhes davam para que cuidassem dos carros quando estacionassem nos arredores.

Eram cinco pessoas, três rapazes e duas moças. Eu os via várias vezes durante o dia naquela vida de extrema penúria, sem futuro, nem eira nem beira como se dizia antigamente, e me dava pena vê-los naquela miséria, abandonados à própria sorte.

Confesso que cheguei a ter raiva dos pais daquela gente que os colocaram no mundo sem qualquer condição para isso, a não ser para que sofressem ou pagassem pelo desatino de seus genitores.

Ao mesmo tempo que eu recriminava pai e mãe daqueles jovens, eu me lembrava       que não deveria julgá-los, pois não me dizia respeito o que tinham feito.

Mas eu me preocupava – se é que posso dizer assim – com a possibilidade de, à noite, o vento frio, a temperatura baixa, os corpos que precisavam se aquecer, a aproximação natural entre as moças e rapazes, que surgisse uma situação inesperada, alguma consequência séria acontecesse.

Não deu outra: Em seguida uma das meninas engravida, ostentando a barriga como um troféu conquistado e imune às responsabilidades que aquela “vitória” lhe ocasionaria.

Eu que criticara seus pais estava diante da mesma imprevidência, porém, agora, cometida pela filha!

Que mundo mais sem sentido. Será que não pensam essas pessoas nos atos que cometem?

Será que a vida não tem valor a ponto de se vivê-la tão solta, sem maiores propósitos, objetivos, na base do “vai ou racha”?

Cada vez que eu cruzava por aquela esquina e os observava, lá estavam eles alegres, bem dispostos, felizes da vida!

O que faz a juventude e seus poderes para facilitar a existência ou proteger o jovem da cruel realidade. Que momento da vida interessante essa idade que vai da brincadeira à paternidade; que vai da ingenuidade à descoberta que é um homem; que faz da menina, mulher; que faz da criança, mãe!

Esses moradores de rua pensam da vida o quê?

Não sei. Mas muitas vezes me pareciam mais à vontade com suas dificuldades do que alguns opulentos que conheço e não sabem viver. Enfim, que Deus os protegesse e não deixassem de dar importância ao filho que estavam colocando no mundo, que soubessem cuidar da criança e tomassem juízo.

Houve um tempo que dois deles se ausentaram. A menina estava para ter o nenê e tinha ido para o interior do Estado na casa de uma tia (com o passar dos meses eu andando pelo bairro inúmeras vezes era óbvio que eu me tornara conhecido e ganhara até um apelido: chamavam-me de “motorão”).    

Um belo dia em uma das minhas andanças pelas ruas do bairro, eis que retorna a nova mãe. O casal estava em festa e fizera questão que eu descesse do carro para ver o bebê, um menino.

Mil coisas me passaram pela cabeça ao ver aquele inocente enrolado em trapos e segurado sem jeito pela mãe. Naturalmente que a pergunta que sintetizava todas era: Como vão criá-lo?

Embarquei no carro, entrei no primeiro mercado que achei, comprei um pacote de fraldas e fui levar a minha “lembrancinha” para os mais novos pais.

Saí em seguida, observando aquele grupo que não se importava com o amanhã;
que não respeitava as leis da sobrevivência;
que não respeitava o tempo;
que não dava bola às dificuldades;
que se lixavam pelo bem material.

Um novo conceito de vida?

Uma nova maneira de transformar a existência de acordo com o pouco ou quase nada que se tem?

Seria esta a verdadeira liberdade, sem vínculo nenhum com o dia a dia?

Sem preocupação com o que haveriam de comer, vestir, beber?

Talvez, pensei. Mas haja coragem!

Tentando eu traçar um paralelo com os irmãos nordestinos e suas mazelas climáticas, suas terras arenosas que a seca dos sertões determina a permanente falta de água, aquelas casinhas feitas de barro e nada dentro (jamais vou esquecer aquele repórter da Globo, que chorou copiosamente ao brincar com uma das crianças que fazia de brinquedo os ossos de um animal morto pela fome e sede), foi como se eu tivesse sofrido um soco na boca do estômago ao me lembrar do notável pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta modernista, quando inspirado escreveu Morte e Vida Severina:

      (...)
                    “E não há melhor resposta 
                    que o espetáculo da vida:
                    E vê-la desfiar seu fio,
                    que também se chama vida,
                    ver a fábrica que ela mesma,
                    teimosamente, se fabrica,
                    vê-la brotar como há pouco
                    em nova vida explodida;
                    mesmo quando é assim pequena
                    a explosão, como a ocorrida;
                    mesmo quando é uma explosão
                    como a de há pouco, franzina;
                    mesmo quando é a explosão 
                    de uma vida Severina.”

Que a cada nascimento nossas esperanças se fortaleçam e que esteja nessa criança que ora nos dá o prazer e honra de sua presença, a mensagem celestial que ela traz consigo de amor, paz, carinho e afeto.

Que esta nova vida distribua aos mais velhos, a nós, que  somos todos responsáveis por aqueles que trazemos a este mundo e que é nossa obrigação principal a construção de um mundo cada vez melhor para recebê-las, a magia de nos fazer entender que o ser humano é um só, que todos dependemos de todos e somente seremos felizes quando efetivamente nos preocuparmos com o próximo até chegar o momento nesta roda viva da existência que somos os próximos a receber o amor de todos.
Este grupo me mostrou que carrega alguns pressupostos à felicidade, tais como, alegria, amizade, companheirismo, e mesmo inexistindo por absoluto o suporte econômico (casa e trabalho), não os impedia de encarar a vida com otimismo e despreocupadamente, e viver cada dia como se fosse o único que eles tinham.

O grande educador e pedagogo Paulo R. Neves Freire (1921-1997), pernambucano, definia de forma primorosa uma grande parcela da realidade social brasileira, ao dizer:

                       “Aos esfarrapados do mundo
                      E aos que neles se descobrem e,
                      Assim descobrindo-se, com eles
                      Sofrem, mas, sobretudo, 
                      Com eles lutam”.

Que nos lembremos estar na dignidade do ser humano a sua maior fortuna, porque nos iguala, e porque não vista, pensamos que não existe.
Mas, quem a tem, se vê e, quem não a tem, não vê no semelhante a si mesmo!

8 comentários:

  1. Eis o Bendl, nos levando para passear no seu táxi, refletindo sobre responsabiidades, maternidade, paternidade, pessoas que vivem nas ruas ...

    Então lembrei que certa feita, perto de um antigo trabalho, conheci um mendigo. Alto e obeso. Queria conversar...não queria dinheiro, não precisa de dinheiro. Procurei saber da vida dele e me contou. Nascido e criado na praia do Leme, RJ, era dentista, de uma família abastada, só ele e a mãe moravam no grande apartamento de frente para o mar, mas os dois não se toleravam ... então ele se formou em Odontologia e ganhou as ruas. Perguntei se ele não queria mudar de vida, abrir seu consultório ... Disse que não ... já estava acostumado assim. Através de uns amigos da Igreja Presbiteriana que passaram a conversar com ele, constatei que sua história era verdadeira ... nunca mais o vi ...

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    1. Caro Rocha,
      Quando eu trabalhava no táxi, eu dizia sempre que um dirigir por um mês este meio de transporte seria de uma ajuda inestimável às Faculdades de Sociologia, Psicologia e Ciência Política!
      Os ensinamentos são vastos, úteis, interessantes, e nos levam a entender muito melhor as pessoas e suas reações.
      Um forte abraço.
      Saúde e Paz!

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  2. Wilson Baptista Júnior30/06/2016, 21:54

    Bendl, deixando escapar que dentro do táxi batia um coração do tamanho do motorista...

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    1. Wilson,
      A tua bondade é imensurável.
      Um forte abraço.
      Saúde e Paz!

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  3. Moacir Pimentel01/07/2016, 08:05

    Caro Bendl,
    Diante de posts profundos como esse seu, a gente fica sem palavras. Talvez porque como dizia o poeta , por você escolhido...
    "Se quer mesmo que lhe diga
    É difícil defender,
    Só com palavras, a vida".
    Então o melhor é teclar sobre aquilo que, de imediato, as suas palavras me evocaram. Quando eu era garotão , dentro da escola católica na qual eu estudava , os padres pediam donativos e voluntários para um programa de assistência social que visava os moradores de rua. Então, nas noites de sexta-feira , eu passei a fazer a "Ronda". Fazê-la era sair com outros rapazes e moças , numa Kombi, pelas ruas centrais da cidade, acompanhados por um padre e um profissional de saúde, sentar nas calçadas cheirando a urina para tentar conversar com crianças, jovens, adultos e velhos e dar-lhes muito pouco: cobertores, uma sopa quente e um café quentes. Eu via crianças emaranhadas pelo chão em cima de jornais, a poucos passos de distância dos pais , que dormiam perto de uma lata que eles usam como um vaso sanitário e, em um pedaço de colchão, junto à uma parede podre da qual ratos entravam e saiam , um bebê chorando sem que ninguém lhe desse a menor bola.
    Chegando em casa eu não conseguia dormir de tão revoltado. Eu me sentia horrível e ficava remoendo os ruídos, as vozes de estranhos, os ratos e então a noite tornava-se assustadora e eu sentia exposto e muitas vezes via o sol nascer , sofrendo a dor do mundo.
    Na minha cabeça pueril era claro como o sol do meio dia , que é dever de uma sociedade tomar conta de suas crianças, dos seus velhos e dos seus desvalidos mas que distribuir café aos sem-teto nas madrugadas , não ia resolver o problema. Aí virei , como dizia o meu velho , um "Che Guevara de Salão" e fui mandado para os EUA, para estudar e esfriar a cabeça.Só que por lá e por todo vasto mundo também existem tribos e mais tribos de desabrigados. Dia destes eu soube que em Belo Horizonte uma Ronda continua a ser feita mas que hoje a galera recolhe cães SRD pela cidade para depois tentar encontrar-lhes "lares" .
    Aos 38 anos, já pai de quatro filho, eu e minha mulher fomos chamados pela diretora da escola , pois um deles estaria com "problemas". Chegando lá nos disseram que o nosso garoto de animado e de bem com a vida, passara a estar sorumbático, distraído e desenhando coisas "mórbidas. Mostraram-nos um desenho feito por ele. Era um troço escuro , triste , macabro, com um céu violáceo - que parecia saído da paleta de El Greco - e tratava-se evidentemente de um cemitério , no qual havia dezenas de cruzes e lápides onde se lia: Menino.
    Não me foi difícil matar a charada : alguns dias antes oito garotos de rua haviam sido mortos num episódio de barbárie que ficou conhecido como o Massacre da Candelária e que estava sendo amplamente divulgado pela televisão. Fora o extermínio daquelas crianças que inspirara a obra prima e , é claro, o nosso garoto apenas sepultara as pequenas vítimas. Quando traduzi as imagens para a diretora,lembro que ela riu aliviada, pois afinal não precisaria lidar com um potencial suicida infantil. Nós ficamos chocados com a falta de sensibilidade social da educadora.
    Mais tarde, em casa, conversamos com o nosso filhote. E então ele nos disse algo que era verdade e continua sendo.
    - "Pai, lembra quando viajamos para visitar o vovô e a vovó e vocês falam que é para a gente se comportar direitinho e obedecer às normas de outro país? Mãe, eu não entendo é AS LEIS DESTE PAÍS!"
    Diante do exposto e obedecendo às normas deste blog , finalizo afirmando-lhe que, pelo menos, trabalhamos muito para educar bem e fazer dos nossos "dimenor" cidadãos conscientes e produtivos. Consolo-me acreditando que a tentativa de fazer um mundo melhor e menos desigual continuará , ainda que sem aparentes resultados, enquanto ele for habitado por homens da sua envergadura e corações como o do nosso menino.
    Abraço

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    1. Pimentel, meu caro amigo,

      Casei jovem, aos vinte anos, e continuo com a mesma esposa há 46 anos!

      Combinamos, em caráter definitivo e inegociável que, sustentaríamos os filhos que tivéssemos(3), iríamos educá-los e formá-los.

      Deu certo.

      Cumprimos com a promessa mútua e recíproca, haja vista termos compreendido que somente agindo com honestidade para com a família, em princípio, poderíamos fazer o mesmo com parentes, amigos e conhecidos.

      Dito isso, eu que nunca me omiti de prestar declarações polêmicas, ABOMINO aquele pai e mãe que abandonam seus filhos, que os deixam à mercê das circunstâncias, sem afeto, carinho, amor.

      Repudio aquele cadastro bancário que aponta uma pessoa sem mácula em seu nome, e obtém créditos fáceis, mas os filhos ele os desconhece, a esposa deixou quando engravidou, conseguiu outro rabo de saia e se amontoou de novo, e assim leva a sua existência sem qualquer compromisso com aqueles que traz para este plano divino!

      Que se separem, que se casem com quem quiserem inúmeras vezes, mas respeitem os filhos, tratem-nos bem, pois esta é a obrigação maior de um ser humano, e causa indiscutível hoje de violência, miséria, infelicidade e frustração, afora as várias neuroses, em consequência, sendo uma delas a rejeição.

      Grato pelo comentário.
      Um abraço.
      Saúde e Paz!

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  4. Wilson Baptista Junior01/07/2016, 10:15

    Bendl, Moacir, o belo post de um e o belo comentário do outro se complementam maravilhosamente. E por falar em insensibilidade de educadores, me lembro que, quando eu fazia parte daquele grupo de jovens de que falei aqui num oost sobre aulas e professores, nós também fazíamos uma ronda parecida aqui em Belo Horizonte. Era na minha casa que minha mãe e minhas irmãs preparavam a sopa, o café e os sanduíches que saíamos à noite para distribuir. E um dia tivemos notícia de que o padre diretor do colégio (um colégio religioso de elite) ia convocar os nossos pais para dizer que ia interromper o trabalho, porque "não se devia expor os alunos a uma realidade amarga demais para a nossa idade". Eu respondi a ele com uma carta em versos (todo o mundo é poeta naquela idade) da qual só me lembro ainda que terminava com algo parecido como "A vida não podia mais nos manter presos / nas gaiolas de ouro da ilusão".
    Publicamos a tal carta no jornalzinho do grupo, que os pais recebiam, e aí ele não teve mais como parar o programa.
    Quando vi o comentário do Moacir dizendo que hoje há uma ronda aqui na minha cidade, cheia de moradores de rua, mas para recolher cães abandonados, não pude deixar de pensar que as prioridades estão erradas...

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    1. Caro Wilson.
      O blog está excelente.
      Um oásis no meio deste caos atual.
      Trocarmos ideias sobre o ser humano nos faz conhecê-lo melhor, aceitá-lo mais facilmente, compreender nele o que não entendemos rotineiramente com relação a nós mesmos.
      Outro abraço.
      Saúde e Paz!

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