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11/06/2016

De aulas e de professores


A Dança dos Gigantes (Stonehenge) ao nascer do sol do solstício de verão
(fonte da imagem: Wikileaks)

          
                Neste domingo, vamos dar um merecido descanso aos nossos amigos Bendl e Moacir, as estrelas do blog. Mas, para que vocês não deixem de dar ao menos uma olhada no nosso espaço, vou contar uma historinha para vocês.

Bem, primeiro, deixem que eu me apresente aos leitores que ainda não me conhecem:

Nasci em Belo Horizonte, mineiro da gema, há setenta e um anos, na hora em que o sol nascia no solstício de inverno (solstício de verão no hemisfério norte). Costumava dizer aos  meus irmãos que os druidas revelaram um invulgar poder de prever o futuro quando, mais de quarenta séculos atrás, construíram a Dança dos Gigantes para poderem comemorar meu aniversário com o primeiro raio do sol :)
Depois, claro, vim a saber que os druidas vieram dez séculos depois da Dança; mas sempre foi mais divertido atribuir a culpa a eles...

Cresci, com meus quatro irmãos e três irmãs, entre os livros e discos de meus pais e dentro da oficina mágica onde meu pai me ensinou a saber como as coisas são construídas e a construir algumas delas.

Fugi no meio do curso de Engenharia Mecânica da UFMG porque estava mais interessado em tirar e revelar fotografias e em disputar campeonatos de tiro do que em estudar, e abracei a então nascente profissão de programador de computadores. Anos depois, já casado e com filhos, voltei aos bancos de escola e me graduei em economia e em otras cositas más.

Trabalhei em empresas  grandes e pequenas, fui consultor no Brasil e fora dele, e passei muitos anos desenvolvendo e aplicando, em empresas e universidades, sistemas de aprendizado experiencial.

Estou casado com a Ana, artista plástica que tanto faz poesia com o pincel quanto com a caneta, há quarenta e cinco anos; temos dois filhos, que são nosso orgulho, e dois lindos netos, que são a nossa alegria.

Há algumas semanas atrás escrevi um pequeno comentário na “Tribuna da Internet”, de nosso amigo Carlos Newton, de que algumas pessoas devem ter gostado porque foi replicado em outros blogs.  Copio-o aqui, para servir de introdução à historinha que vem depois:

“O mundo está mudando cada vez mais depressa do que os modelos educacionais. Eu trabalhei muito tempo com uma equipe desenvolvendo modelos de simulação e usando-os para aplicar técnicas de aprendizado experiencial em altos e médios executivos e em universidades, dentro da premissa de o aluno desenvolver conhecimento ao invés de recebê-lo do instrutor. O enfoque era essencialmente este, de dar aos alunos a capacidade de visão global de uma empresa e de um mercado, para desenvolver a capacidade de resolver problemas através da criatividade e da competência em termos de liderança e trabalho em conjunto.

Só que isso que nós aplicávamos aos executivos e mestrandos pode ser – e até precisa ser – ensinado às crianças desde cedo, ainda mais agora que elas tem à disposição o enorme universo de dados e o incomensurável poder de informação da era digital.

Uma coisa fundamental para que elas possam aproveitar essa riqueza de conhecimento é o espírito crítico, tanto mais necessário quanto maior a quantidade de fontes. Mas a parte essencial que falta na sociedade de hoje é a questão ética, a qual tem que começar em casa pelo exemplo. A criança internaliza o comportamento que observa nos pais, e por isso tenho preocupação quando vejo sua deterioração, porque não adianta muito tentar ensiná-la na escola se a criança, assim como o professor, não vive a realidade ética em casa e no seu meio ambiente.

No meu tempo de estudante, tive grandes professores, que mereciam este título, mas eles nunca nos ensinavam apenas matérias, tinham preocupação em nos ensinar a aprender. É este método de ensino, muito mais do que os currículos modernos, que tem de ser implementado no Brasil.”

Durante toda a minha vida, em muitas oportunidades fui professor. E sempre me preocupei em ensinar a aprender. Mas devo confessar um pecado da juventude, para que vocês vejam que nem sempre as boas intenções conseguem ser seguidas :)

Nos meus tempos de rapaz, aluno do Colégio Loyola, formamos um grupo de jovens que era ao mesmo tempo um grupo de estudos sociais e uma pequena organização de assistência social. Chamava-se “Grupo Gente Nova”.

Com aquele idealismo clássico da adolescência e juventude, nos reuníamos para estudar e planejar depois das aulas e, nos fins de semana, subíamos um morro na saída para o Rio de Janeiro, o Morro do Papagaio, onde uma invasão se transformara numa favela (sim, naquele tempo antes da tirania do “politicamente correto” dizíamos, tanto nós como os moradores do morro, favela em vez de comunidade, com toda a naturalidade).

Quando digo “subíamos”, quero dizer que subíamos mesmo, não havia, como há hoje, ruas até lá em cima. Eu deixava minha bicicleta no Colégio Santa Dorotéia (antigo colégio Sion) onde nos reuníamos, atravessávamos a estrada, a antiga BR-3 da música do Tony Tornado, hoje Avenida Nossa Senhora do Carmo, e subíamos o barranco.
Me lembro de ter carregado nos ombros muitos sacos de cimento por ali acima. Fazíamos trabalho de pedreiro, de bombeiro, construímos lá em cima uma capela, que funcionava como um embrião de centro comunitário, e que anos mais tarde foi transformada pela Prefeitura num grupo escolar.

Naquele tempo o tráfico ainda não tinha dominado como hoje as favelas em Belo Horizonte.
Havia, é claro, algumas gangues mas não havia grandes organizações criminosas, nem esse clima de confronto  de hoje.

Depois da missa dos domingos, enquanto os rapazes do Loyola percorriam a favela ajudando no que podiam, as moças do Santa Dorotéia (sim, naquele tempo estes colégios não eram mistos) davam aula de catecismo à meninada do morro. Eram aulas ao ar livre, as crianças formavam círculos, cada qual com uma catequista no meio. E as catequistas faziam o possível para manter o interesse das crianças, frente ao sol, ao vento, ao céu, à tentação das bolas de futebol...

Um dia, logo depois da missa, quando me preparava para o trabalho, aproximou-se a moça que fazia o papel de chefe das catequistas e me disse: “Wilson, estamos com um problema, a Fulana (colega delas) não conseguiu vir hoje, e não seria bom que a turma dela fosse brincar enquanto as outras tivessem aula, distrairia a meninada, e  não temos ninguém para substitui-la. Será que você podia substitui-la hoje?”

AiMeuDeus, e agora? Longe, muito longe, iam meus tempos de aluno de catecismo, com Dona Cidália, fiel amiga de minha avó e de minha mãe. Mas, “noblesse oblige”, um rapaz do Loyola não podia fugir da raia, ainda mais em frente das moças do Santa Dorotéia...
A catequista me levou até o lugar onde a gurizada, inquieta, já se preparava para escafeder-se, me apresentou como “o novo professor”, o que provocou olhares curiosos da turma, que nunca tinha visto um professor homem até aquele dia, e foi embora cuidar da turma dela.
Eu respirei fundo, me sentei no chão entre as crianças e comecei a dar a aula.

Passou o tempo, e a chefe das catequistas, contemplando as rodinhas espalhadas em frente à igreja, percebeu que, ao contrário das demais crianças, que começavam a bocejar e a olhar em volta, cansados da aula, os da minha roda estavam absolutamente imóveis, acotovelando-se para ficar perto de mim, parecia que bebendo cada uma das minhas palavras.

Resolveu ver que incrível competência era a minha de professor, pediu licença por um momento a seus alunos, e chegou bem a tempo de me ouvir dizer num sussurro de palco: “Então, logo que entramos na capoeira, a onça apareceu!”
Eu, sem outro recurso para sair do aperto, estava inventando para eles emocionantes histórias de caçadas (sim, porque naquele tempo ainda se caçava, a mineração, a soja e a criação de gado para exportação não tinham ainda destruído as nossas matas e devastado a população dos bichos)...
A chefe das catequistas, que não era boba, simplesmente levantou as sobrancelhas e se afastou. No domingo seguinte, com a equipe completa de catequistas, a faltosa veio me dizer que não entendia porque a turma dela queria saber por que não continuava com o “novo professor”...

5 comentários:

  1. Muto boa a história de hoje! Uma delícia de texto.
    Lá em casa se dizia que quem herda não furta.

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  2. Bons tempos aqueles... Mas mesmo hoje ainda existem professores que sabem cativar os alunos e ensinar-lhes muito mais que aquilo que o currículo oficial manda.

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  3. Caro Wilson,
    Os antigos já sabiam - e a moderna neurologia concorda - que os cérebros adoram uma boa e bem narrada história.Quando se quer ensinar , motivar, persuadir, ou ser lembrado, é melhor contar uma história , de preferência as de luta humana e de eventual triunfo. Ela irá capturar os corações das pessoas, se conseguir atrair a atenção dos seus neurônios , em primeiro lugar. Em seguida , as histórias podem nos levar às lágrimas, ao riso, podem mudar as nossas atitudes, opiniões e comportamentos, e até mesmo inspirar-nos. As histórias podem mudar nossos cérebros.
    Então vamos ler livros , ver filmes , ouvir e contar histórias, em vez de decorar fatos.

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  4. Léa Mello Silva12/06/2016, 12:14

    Muito boa a cronica de hoje, devia continuar professor é um prazer conversar com vc.
    Parabéns

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  5. Francisco Bendl13/06/2016, 18:37

    Wilson,
    Brilhante, irrepreensível, texto esplêndido.
    Um forte abraço.

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