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16/06/2016

As Coisas Pequenas

Wilson Baptista Junior

Uzès - La Fenestrelle  - foto WBJ

               Conversando outro dia com o Moacir Pimentel sobre um pedaço do post dele que publicamos aqui, “Os Pueblos Blancos”, pedaço onde ele fala brevemente sobre fotografia em viagens, contei a ele uma historinha...

               Na primeira vez em que fui à França, lá pelos idos de 1980, estava sozinho (fui a trabalho), e quando terminei a consultoria, que me levou a uma cidadezinha pouco conhecida do Languedoc,  onde ficava a sede da empresa do cliente, pude ficar alguns dias flanando em Paris.

               Nessa primeira vez em Paris só andei a pé. Não usei nem o metrô. Porque queria ver, respirar, a cidade. Fiquei num apartamentozinho, um "pied à terre" que a empresa brasileira que me contratou tinha em Montparnasse para uso do seu pessoal. E andei, andei, andei...

               Era um pouco como se eu já conhecesse a cidade, herança das leituras dos muitos autores franceses (a nossa cultura, a cultura do tempo de meus pais, sempre teve muito da França). Era interessante descobrir por exemplo, hoje escondidas dentro da zona urbana, as portas da antiga Paris dos romances dos Dumas...
               Foi na primavera, Paris estava vazia de turistas, para você ter uma idéia quando fui ao Louvre pela primeira vez simplesmente atravessei a Pont des Arts, passei por baixo das arcadas, atravessei o pátio e entrei (tempos de antes da pirâmide, entrava-se ainda por aquela porta lateral que dava direto na escadaria da Vitória de Samotrácia) junto com mais duas ou três pessoas que estavam por ali. Filas? Nem se imaginava...

               Mas estou me afastando da historinha :)  Quando fui pela primeira vez à Notre Dame, antes de entrar me sentei num banco, em frente da estátua de Carlos Magno, e fiquei ali um bocado de tempo respirando a vista. De repente, parou atrás de mim um enorme ônibus de turismo, dois andares, grandes janelas de vidros, cheio de turistas japoneses. Ouvi o guia dizer alto "Notre Dame!" e, em seguida, dentro do ônibus, o metralhar de dezenas e dezenas de disparos das câmaras ao mesmo tempo. E em menos de trinta segundos o ônibus se pôs novamente em movimento, suponho que para o próximo "ponto turístico obrigatório" da viagem deles.

               Imagino que chegando em casa, depois de receberem de volta os instantâneos revelados (isso foi antes do digital) é que eles iam saber por onde tinham passado :)
               Hoje, essas fotografias em muitos casos  são substituídas pelo cortejo interminável de “selfies” onde se vê o feliz (ou a feliz) turista com o ponto turístico ao fundo.

               Talvez porque eu tenha gostado a vida inteira da fotografia (gosto, se não o talento, herdado  do grande fotógrafo que foi meu pai), quando viajo não saio batendo fotografias de tudo, e muito menos posando eu mesmo para as fotos. Fotografo muito, sim, mas o ato de fazer uma fotografia, para mim, é uma parte importante do meu ato de ver, uma maneira de interpretar, bem ou mal, o que estou vendo. Me ajuda a ver melhor.

               E o Moacir, que além de viajante é pintor, e sabe o que é esse “ajudar a ver melhor”,  me contou que fotografava, sim, mas  principalmente coisas pequenas, - “portas e janelas e nichos e muros e arte e flashes de nativos pelas ruas”.

               Concordo com ele, porque para mim as boas lembranças são feitas das pequenas coisas.

               Naquela mesma viagem, eu estava em Uzès, na Provença, com um amigo e colega de trabalho – Uzès  é "a Ouro Preto da Provence", como me disse o cliente francês, que conhecia o Brasil. Uma cidadezinha medieval,  perfeitamente conservada, linda como o seria Ouro Preto se tivesse sempre sido bem tratada... Estávamos passando a pé por uma de suas vielas, íamos pegar o carro com que o amigo me deixaria na estação  ferroviária de Avignon, onde eu ia pegar o "Transeurope Express" para Genebra (era  um trem que partia de Lisboa e chegava até Moscou). Quando passamos na porta de uma casa, emoldurada com uma roseira como se usa lá, ouvimos um movimento de um concerto para piano de Mozart, soberbamente executado em solo. Foi tão bonito que me encostei à parede, junto da porta, e fiquei ouvindo, enquanto meu colega me chamava e me dizia que íamos nos atrasar para eu pegar o trem...

               Quando o pianista parou (não, não era disco) é que fomos embora.

               Já tinha estado em Uzès antes, a convite de um dos diretores do cliente, que nos levou para almoçar num restaurante que não tinha placa porque nem os donos nem os clientes fiéis queriam que os turistas o descobrissem; era no rés-do-chão, abobadado em pedra, de uma casa antiga, que dava para uma das pracinhas da cidade. Os donos moravam em cima, na casa.

               Comemos uma brandade de morue, escaldante de quente, servida em cima de croutons de um daqueles inimitáveis pains de campagne de lá. Uma brandade autêntica, no estilo de Nîmes, servida numa travessa de louça no meio da mesa, aquele quase purê de bacalhau finamente desfiado e misturado lentamente ao fogo com um fio de azeite e outro de leite até ficar cremoso (quem disser que azeite e leite não se misturam nunca viu fazer uma dessas), sem nada da batata que os restaurantes dito franceses daqui do Brasil misturam para dar liga com mais facilidade.

               No final o dono, conhecido de nosso anfitrião, veio se sentar à mesa conosco, e a senhora dele me ensinou, com uma gentileza de rainha, a receita e o modo de fazer.

               A cidade é bonita? Muito. Andei por toda ela? Quase. Tirei muitas fotografias? Muitas (menos no restaurante, pareceria um sacrilégio tirar a câmera do estojo àquela mesa - bons tempos em que não existiam os smartphones, e aliás nem os celulares). Mas as duas lembranças que me ficaram dela no coração são, primeiro, a música daquele misterioso pianista, e segundo, o gosto daquela brandade...


Mozart, Concerto para Piano K 467
Maurizio Pollini, piano, Ricardo Muti, condutor

4 comentários:

  1. Meu caro Wilson,

    Preciosos relatos de viagens que me trazem muito prazer em ler, de constatar que reside nesta experiência de se sair do país de origem uma fonte inesgotável de sabedoria, aprendizado e satisfação.

    Um forte abraço.
    Saúde e Paz!

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  2. Moacir Pimentel17/06/2016, 08:57

    Caro Wilson,
    Para começo da conversa , o seu artigo demonstra que estamos ,como pretende o blog , efetivamente "conversando".
    Em segundo lugar , suas pretinhas sobre fotografias , me remetem para além das nossas "coisas pequenas" , para Keats dizendo: A thing of beauty is a joy forever". Ou deveria, digo eu , e portanto as fotografo.
    Em seguida , devo confessar que a aquela brandade de morue fumegante - que eu chamo de "bacalhau espiritual" - deixou-me com água na boca e me fez recordar a surpreendente "hipótese do cozimento" do Richard Wrangham , que, ao contrário do que se pensa desde Darwin, jura de pés juntos que cozinhamos antes de nos tornarmos homens, e que nos tornamos homens justamente porque passamos a cozinhar, em volta das fogueiras ancestrais e em meio a muita "conversa". Vale a leitura dessa nova perspectiva da história da nossa espécie no seu livro Pegando Fogo.
    Creio que Affonso Romano de Sant'Anna numa crônica intitulada ....De Que Ri a Mona Lisa? ... faz reflexões parecidas com às do amigo , quando do safari fotográfico que presenciou diante da Notre Dame. Diz ele na Sala Da Vinci do Louvre:
    ......

    "Agora, por exemplo, acabou de acorrer aos pés da Mona Lisa um grupo de japoneses: caladinhos, comportadinhos, agrupadinhos diante do quadro. A guia fala-fala-fala e eles tiram-tiram-tiram fotos num plic-plic-plic de câmeras sem flash" (...)
    "Entrou agora na sala outro grupo. São espanhóis e italianos. "Veja só os olhos dela", diz um à sua esposa, exibindo o original senso crítico. "De qualquer lado que se olha, ela nos olha", diz outro parecendo ainda mais esperto. "Mas, que sorriso!", acrescentou outro ainda. E se vão." (....)
    "Chegou agora um grupo de jovens surdos-mudos holandeses. Postaram-se ali perplexos, o guia falou com as mãos e foram-se. Chegou um grupo de africanos. E repete-se o ritual. "(...)
    "Enquanto isto ocorre, estou enamorado da Belle Ferronière, do próprio Da Vinci, que embora possa ser a própria Mona Lisa de perfil, ninguém olha. "(...)
    "O ser humano é fascinante. E banal. Vêm para ver. Não veem nem o que veem, nem o que deviam ver. (...) "Mal entra outro grupo de turistas para repetir o ritual, percebo que Mona Lisa me olha por sobre o ombro de um deles e sorri realmente.
    Agora sei do que ri a Mona Lisa."
    .....

    Moral da história : na minha cabeça pueril a " coisa pequena" da vez - quem sabe ? - seria a Belle Ferronière. Mas seríamos muito incivilizados se a fotografássemos , com ou sem flashes.Devo confessar , porém , que , em Paris , mulher alguma me sorri mais bonito do que a Dama (e o Unicórnio)
    Mas isto já seria outra "conversa", fora da caixa de comentários desse seu instigante e enriquecedor texto.
    Abraço

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  3. Léa Mello Silva18/06/2016, 09:54

    Que memoria ! Delicia participar de suas lembranças

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  4. Paris... eu que falo inglês de Cais do Porto... procurando um hotelzinho para dormir, naquele frio de janeiro, a noitinha, foi divertido ... Eu vinha de Le Havre, um porto no norte da França, de trem até a capital francesa; na viagem um grupo de irlandeses começou a cantar hinos protestantes... e eu lá com eles ...

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