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28/06/2016

Na Cidade Sagrada


Alvorecer em Varanasi (foto Trekearth)


Moacir Pimentel     

Todos nós gostamos de Beleza. Todos nós amamos a Vida. Mas as visões da feiura  e da  morte também são necessárias, já que elas todas, mais do que opostas, são partes de um todo, aspectos de uma mesma coisa. Como é possível conhecer o belo, desconhecendo o feio? Como é possível abstrair a luz se nunca mergulhamos na escuridão? Como é possível viver a vida em plenitude se nela não pensamos na morte? Essa tensão entre avessos deveria ser serena, em sfumato, sem fronteiras rígidas, sem formas de contornos nítidos, mas que se abraçassem através de uma mistura sutil e gradual de um estado de espírito para outro, de um tom para o seguinte, de modo a eliminar qualquer transição visível entre luz e sombra, qualquer ruptura cromática. Ambos  os  lados  lá.  Dia  e  Noite,  Claro  e  Escuro,  Vida e  Morte. Sempre presentes, mas se equilibrando, neutralizando­-se, socorrendo-­se, suavizando brilhos e aliviando escuridões.

Talvez a perfeição não tenha graça. A beleza pode não ser atraente e a feiura pode não ser repulsiva e, principalmente, inexistem as certezas estéticas. Tem mais. As percepções mudam e o que era belo, se for um milímetro além de misteriosos limites, pode se tornar bizarro e até mesmo inaceitável. Além disso, quando algo se torna familiar, passamos a tolerá­-lo e a tolerância pode amadurecer em afeto. Vale ponderar ainda que, se a feiura inicialmente nos perturba, ela nos surpreende mais do que a beleza. Ou seja, a beleza pode funcionar como um sedativo, previsível e suave, em vez de um desafio. E quem poderá dizer que ser sedado e acalmado é melhor do que ser estimulado e fascinado intelectualmente? O certo é que, como nos provam tantos artistas, até mesmo nos aterros de lixo se pode encontrar coisas de beleza estranha, de beleza... transcendente.

Contraditória. Assim era aquela Varanasi paupérrima e imunda mas belíssima que, aos 25 anos, de saída, eu não pude compreender. Afinal a grande miséria humana não é a ausência de beleza e de sentido. É não saber encontrá­-los.

"Achar beleza na feiura é a província do poeta" afirmou Thomas Hardy.

Da primeira vez que contemplei Varanasi, de dentro de um barco singrando o Rio  Ganges nas últimas horas de uma madrugada, eu me encantei. A ribeirinha de Varanasi era um conjunto de arquitetura magnífica, em infinitas camadas que pareciam bordadas em texturas e desenhos e contrastes às toneladas, em suma, uma visão de rara e mística beleza. Composta por plataformas de alvenaria e por íngremes  degraus conhecidos como "ghats", ela era especial. Suas escadarias eram sombreadas por uma alta fortaleza, por majestosos palácios, templos requintados, santuários que perfuravam o céu com suas torres ornamentadas, ermidas, mosteiros, mesquitas, pavilhões e prédios de diferentes sotaques. E em meio a tudo isso havia dois crematórios, os ghats Manikarnika e Harishchandra, onde as fogueiras queimavam corpos incessantemente há mais de oitocentos anos.

Quando amanhecia, o sol que nascia na margem direita do rio lançava reflexos de um laranja profundo sobre as escadarias e templos na margem esquerda. Era como se o sol fizesse a água dançar mais do que brilhar. Mais alto, o sol envolvia a cidade distante e o rio num abraço de tom amarelo­ dourado, enquanto a névoa da noite e a fumaça das fogueiras se dissolviam e delas saltava o céu azul da manhã.

De longe e do rio e no alvorecer a paisagem que descortinei foi incomum, uma combinação de arquitetura e história, de beleza e pobreza, um espaço muito especial onde o eremita se encontrava com o hedonista, onde a ação humana incessante acontecia lado a lado com profundas quietude e contemplação, onde o toque dos sinos dos templos, o canto dos mantras e a melodia da música devocional se misturavam com a cacofonia das ruelas, onde a fragrância de flores e incenso me entontecia, junto com o cheiro de lixo e  de fumaça  e de lenha e onde a beleza morava com a feiura, e a alegria com a dor.

Só que, quando aquele barco alcançou a terra firme e eu desembarquei no cais... a  história  ficou  diferente. Confesso que Varanasi me atordoou. A maioria dos viajantes concordava que Varanasi era um lugar mágico, sabendo, no entanto, que não eram recomendados para os fracos de coração os seus rituais íntimos da vida e da morte. Nós ocidentais somos treinados para internalizar a Morte que, em Varanasi, era festejada abertamente, nas nossas caras. Pense em um desequilíbrio!

Nenhum lugar onde eu já estivera e nada que eu já vira antes me preparara para o que eu vi em Varanasi, para aquela injeção de miséria e de impermanência na veia. Ali a poluição era intensa. Os barcos que, dia e noite, transportavam toras das mais variadas madeiras para alimentar as fogueiras crematórias, cruzavam águas imundas e  descarregavam suas cargas em margens tomadas por lixo. As buzinas eram ensurdecedoras, as multidões eram mais esmagadoras do que em Bombaim ou Nova Deli. Ao contrário do resto da Índia, ali confusão não parecia ser um caos organizado. Tive que decidir o quanto estava disposto a absorver da paisagem física e espiritual de Varanasi de imediato e o quanto seria melhor deixar para mais tarde, ou para ser transformado em fumaça. Afinal, em Varanasi, tudo não estava sempre sendo queimado?

Fora dos ghats crematórios as cores explodiam. Mas neles, à beira das águas mais poluídas do mundo, todas as formas me pareciam cobertas por uma camada monocromática de cinzas dos mortos. Se lá embaixo, nas margens do Ganges, eu caminhava sobre o lixo dos mortos, lá em cima,na velha cidade, em um labirinto de becos chamados "galis" que eram estreitos demais para o tráfego, eu convivia com a  imundície dos vivos. Qualquer um se desorientava por aquelas paragens, mas era só seguir a multidão ou os sinais de fumaça e a gente terminava em um ghat.

Milhares de riquixás -­ os condutores de bicicletas adaptadas para transportar passageiros -­ se estranhavam pelas vielas e buzinavam impacientes e berravam, milhares de criaturas urinavam nas paredes antigas, moribundos morriam pelas calçadas em meio aos cães, às cabras e às vacas e aos seus dejetos, que, aliás, eram recolhidos frescos para em seguida serem postos para secar e usados na cremação das pessoas mais pobres, sem dinheiro para comprar, para as suas piras, a caríssima madeira, fosse ela de sândalo ou a das frondosas mangueiras.

O cheiro das ruas era vomitativo. As vacas estavam por todos os lados. Não, os hindus não veneram as vacas, embora eles as tenham em alta estima, desde os tempos védicos antigos, já que dependem delas para sobreviver. Estariam tramados sem os produtos lácteos -­ o mais famoso é a manteiga ou "ghee" que é usada até mesmo no chá! -­ e de toda aquela caca, como fonte de combustível e fertilizantes.
A vaca é vista como uma guardiã ou figura materna. A deusa indiana   Bhoomi, que representa a Terra, é geralmente mostrada na forma de uma vaca. No hinduísmo, a vaca é um símbolo de riqueza, força, abundância, doação altruísta e uma vida terrena completa. O animal é respeitado por sua natureza gentil, que remete ao principal ensinamento do hinduísmo: a não violência. Se bem que testemunhei as santinhas dando muitas cabeçadas em muitos turistas desavisados... Finalmente, os hindus não comem carne de vaca na Índia, embora o façam na Malásia. Quem foi mesmo que disse que a realidade é um lugar onde a gente come um bom bife?

A impressão que eu tinha, em determinados momentos, naqueles primeiros dias que passei em Varanasi, era exatamente essa:

ISTO NÃO ESTÁ ACONTECENDO!

Também os sadhus, os homens santos, se não oniscientes eram por lá onipresentes, cada qual mais estranho que o outro com seus corpos esqueléticos e rostos pintados, e os cabelos e barbas descendo até os pés em dreadlocks.
Os sadhus são ascetas,quase sempre yogas, dedicados unicamente a perseguir "mokṣa" - ­ a libertação do círculo das reencarnações ­- através da meditação e da contemplação de Brahman. Eles são renunciantes que optaram por viver uma vida nas bordas da sociedade para se concentrar em sua própria prática espiritual, a "sadhana", deixando para trás todos os apegos materiais.

Vivem em cavernas, florestas, templos hindus e até cemitérios, por toda a Índia e o Nepal, usando roupas da cor do açafrão -­ não muito mais que panos às vezes -­ simbolizando a sua "sannyasa" -­ a renúncia. Este modo de vida está igualmente aberto às mulheres, mas encontrei raras sadhvis. Eles são popularmente chamados de "babas", palavra que significa avô, pai ou tio ou professor em várias línguas indianas. Aliás, as línguas e os dialetos oficiais indianos são mais de cento e quarenta, e, portanto, os nativos são forçados a se comunicar em inglês, que falam mal. Uma verdadeira Babel.

Tais homens me pareceram amplamente respeitados por sua santidade, pois a cultura indiana enfatiza um número infinito de caminhos para Deus, de tal forma que os sadhus têm seu lugar garantido. Acredita-­se que suas práticas austeras ajudam não apenas quem as pratica a queimar carma, mas a comunidade em torno da qual gravitam. Assim, eles são vistos como benfeitores da sociedade e são bancados por ela.

No entanto não são uma unanimidade e têm sido vistos, histórica e contemporaneamente, com um certo grau de suspeita, especialmente entre as populações urbanas da Índia. Dizem as más línguas que nas cidades de peregrinação, como é o caso de Varanasi, tem muito malandro posando de sadhu para deslocar esmolas.
Um dos mais conhecidos dos rituais dos babas é a utilização da cannabis -­ sob a  forma de haxixe -­ como um tipo de sacramento em linha com o culto de Shiva, deus que se acredita ter uma afinidade com as folhas da planta. Então era comum deparar-­me com os babas na posição de lótus, pitando os seus cachimbos e, além de cheirar a excrementos, a carne e a cabelos humanos queimados, Varanasi também cheirava a maconha.

O mercado central era o palco de uma agitação intensa, numa simbiose entre um delicioso encanto e o mais puro caos. Bancadas de verduras, especiarias, incensos,  flores, tecidos, artesanato, chapatis, dahls, rotis, lassis, chamuças, curds, deliciosos sucos de frutas formavam um quadro cromático inesquecível, mas o lixo, para a alegria dos animais, era largado pelo chão. Em meio à confusão reinante e sofrendo de tanatofobia profunda como poderia eu ali conservar intactos os apetites?

Eu fiquei longe dos ghats crematórios naqueles primeiros dias. Muitas outras atividades em Varanasi giravam em torno dos demais ghats. Nas escadarias e plataformas destinadas aos banhos ­- eram diversas e tinham os usuários separados por castas -­ homens e mulheres e crianças se lavavam e às suas roupas juntamente com búfalos e vacas. Escusado seria dizer que, enquanto estive naquele santo local, lavei as minhas roupas no banheiro da hospedaria...

6 comentários:

  1. 1) A meu ver, o tamanho da letra aumentado ficou ótimo. Meus olhos agradecem !

    2)Moacir filosofando, acertadamente, sobre a vida e a morte. Lendo seu texto sinto-me caminhado no burburinho das ruas de Varanasi.

    3) Parabéns ao Pimentel autor, ao Wilson editor e aos leitores, nos quais me incluo, onde saboreamos aqui magníficas crônicas.

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  2. Monica Silva29/06/2016, 09:35

    Moacir , o seu texto é muito forte e cru. Mas é fascinante. Acho que suas bonitas palavras são um exemplo de como a beleza de Deus pode ser encontrada em qualquer lugar. Temos que acreditar e trabalhar para que o mundo caminhe para a espiritualização.

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  3. Flávia de Barros29/06/2016, 14:21

    Moacir, houve um tempo em que se você tivesse o costume de escrever cartas muitas pessoas teriam ficado menos preocupadas com as suas viagens. Diante de suas lindas crônicas de hoje, eu percebo porque você tão raramente escrevia. Era muito para ver e entender. É muito bom que, embora com atraso, estejamos recebendo as suas cartas de viagem. Ler você continua sendo um presente. Um forte abraço.

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  4. Márcio P. Rocha29/06/2016, 17:45

    Caro Moacir,
    O fato de eu não conseguir escrever uma linha literária sequer, não significa que não tenho um grande respeito por quem escreve bem. Quem sabe numa outra reencarnação? Você está de parabéns pelo artigo.

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  5. Moacir Pimentel29/06/2016, 19:17

    Ao Márcio eu diria que é melhor viver da melhor maneira essa vida para evitar de, na próxima, voltarmos aprendizes e ter que escrever tudo de novo (rsrs).À Flávia eu garanto que, todos os dias, agradeço às mãos que me ajudaram no voo, sem jamais tentarem me substituir as asas. Para Mônica eu coloco que não sei se o mundo está mais ou menos espiritualizado,mas tenho certeza de que estamos tentando e last but not least , para o professor Antônio eu digo que tenho muita satisfação de ser seu vizinho de mundo e de blog.
    Muito obrigado ao Wilson pelo espaço e a todos pela generosa leitura.

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  6. Incrível este teu relato, Pimentel, e com ricos detalhes a respeito desta cidade "mágica", mística.

    Imagino o conhecimento que esta localidade te tenha proporcionado, que impressionaria qualquer pessoa se testemunha das formas de se professar uma religião em um país onde a crença e costumes diferem do resto do mundo.

    Não preciso dizer que copio esses artigos e os arquivo em pasta especial, em face de serem registros pessoais, de gente desacostumada com essas tradições e fé, portanto, um testemunho importante a respeito, ainda mais que escreves com isenção e imparcialidade, respeitando essas crenças, que não poderia ser diferente.

    Parabéns por mais este texto cativante, e que nos informa o modo de vida dos indianos quanto a vida e a morte, e como eles lidam com esta passagem desta para uma melhor ou não, lá pelas tantas.
    Um forte abraço.
    Saúde e Paz!

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