Como prometemos ontem, depois do primeiro capítulo das crônicas do Bendl sobre o táxi começa hoje o Moacir a contar das suas viagens de mochileiro pelo mundo. Vamos deixar que ele mesmo se apresente a vocês:
Nasci no Rio de Janeiro, mas sou metade pernambucano. De 1973 a 1983 morei fora do Brasil. Formei-me nos Estados Unidos, após ter feito dois cursos: um bacharelado em estudos liberais com foco em Literatura Inglesa e Americana, seguido por uma graduação combinando o estudo de Filosofia, Política e Economia. Terminei minha formação acadêmica em Roma, onde cursei uma pós-graduação em Turismo.
Depois de quase três anos viajando como mochileiro pelo vasto mundo retornei ao Brasil. Casei com uma cidadã europeia há 33 anos e temos quatro filhos – duas garotas e dois rapazes - todos formados, três já casados, donos das próprias vidas e fora do ninho. Há dois anos, com uma diferença de dois meses apenas, chegaram dois netinhos.
Sempre trabalhei com Turismo. Em 1994 empreendi. Planejávamos, após a aposentadoria de minha mulher e de uma mudança geracional no comando dos negócios, dividir nossas vidas entre o velho e novo mundo.
Só que nos esquecemos de combinar com a crise e com o fato de que os nossos pais, infelizmente, não estão ficando mais novos. Há que cuidar deles. No momento, labutamos para manter a cabeça fora d'água, sem investimento a não ser na redução de custos, enquanto esperamos que as coisas melhorem, que o Brasil tome jeito e cresça para que, com o pé na estrada de novo, possamos fazer um curso de "Agricultor" em Portugal, sem o qual, por lá não se pode fazer o que queremos: plantar cerejas numa t'rrinha.
Enquanto isso, vou lendo e rascunhando, viciado na Netflix, e concordando com o grande Fernando Pessoa:
"Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver"
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Aos 61 anos bem rodados, eu já não preciso mais que meus roteiros de viagem sejam arrebatadores do começo ao fim. Basta que eu encontre em outros lugares um pouco de verdade, de personalidade, de beleza pura, para que eles se tornem irremediavelmente encantadores. Procuro apenas uma paisagem mental e alguma arte onde eu reconheça a minha humanidade, as minhas angustias e esperança, os meus grandes limites, o que restou dos meus menino e rapaz, dos homens que fui até estar aqui, escrevendo este arrazoado, com a intenção de compartilhar bytes de memória das minhas viagens e delas as coisas belas e pequenas, grandiosas e inspiradoras que vi e vivi.
Decidi aos 25 anos, depois de completar uma faculdade, nos EUA, e uma pós graduação em Turismo, na eterna Roma, colocar minha vida em compasso de espera e dar a mim mesmo um intervalo sabático, umas longas férias de quase três anos, para perambular por esse mundão afora com uma mochila nas costas. Tal decisão, tomada trinta e seis anos atrás, jamais deixou de ser questionada, de confundir, de provocar confusão e de desencadear uma enxurrada de perguntas : o que? por que? onde? como?
Não sei porque o espanto. A História está repleta de exemplos de pessoas que viajaram. O meu herói de infância, depois, é claro, dos patrulheiros rodoviários, foi o Marco Polo. Ao voltar da África do Sul, Gandhi viajou o comprimento e a largura da Índia por um ano, antes de mergulhar ativamente na luta pela liberdade. Da mesma forma o Buda, pelo que me contaram, não teria recebido a iluminação, se não tivesse se aventurado fora de seu palácio. Nunca me pareceu estranho que os da nossa espécie, saídos da África, tenham se espalhado por todos os continentes, e muito menos que os barcos vikings e depois as caravelas, tenham singrado todos os oceanos.
Tudo bem que eu buscava diversão e aventura, mas também estava convicto de não encontraria maior escola do que a Terra. Afinal eu pretendia atuar, profissionalmente e em futuro indefinido, no ramo do Turismo e nele, o mundo seria a minha matéria. A minha decisão de viajar, portanto, foi baseada na crença de que um passaporte válido poderia me ser mais útil do que mais útil do que mais teoria. E foi. Cada dia era um desafio, uma vez que envolvia a adaptação a ambientes absolutamente novos e diversos. O tempo todo, como uma sombra, estava lá presente, o elemento do desconforto. E é quando nos sentimos desconfortáveis e fora do nosso elemento, que mais crescemos.
O fato é, contudo, que a maioria de nós tem receio dos riscos de uma tomada de decisão fora dos padrões. Dizem que o medo mata mais sonhos do que o fracasso seria capaz. Viajar é exatamente experimentar o que, via de regra, só se sonha. Só que ali, sozinho, lá no fim do mundo, eu tinha que pensar por mim, que decidir por mim, que me virar, E foi justamente ter optado, tantas vezes, pelo caminho errado, e ainda assim ter sacudido a poeira e dado a volta por cima, o que me tornou forte o suficiente, para aprender com meus erros e para seguir em frente, sem ter medo de tomar decisões.
Aprendi a ser flexível e aberto às mudanças e ao inesperado. Mas tive que lidar com planejamento e negociação e fui forçado a estar atento e a ser esforçado para encontrar maneiras de controlar as minhas despesas. Tudo o que eu possuía no vasto mundo, era os meus dólares que pesavam menos a cada dia no meu money belt, amarrado em volta da minha cintura, por baixo dos jeans. Sendo assim, fui forçado a gerenciar-me dentro de um rígido orçamento e a alcançar os meus objetivos de viagem dentro de suas fronteiras, o que aliás, é a essência de como administrar a rentabilidade de qualquer projeto de negócios.
Nada poderia ter me treinado melhor para enfrentar um mundo globalizado e um ambiente de trabalho cada vez mais multicultural, pelo menos nessa indústria sem chaminés chamada turismo, do que a estrada. Ter muitos mochileiros estrangeiros como meus parceiros de viagem me deu uma percepção mais ampla sobre seus estilos de vida, cultura e hábitos, do que eu teria desenvolvido só interagindo com clientes e players internacionais. Às vezes, em volta da mesa do café da vez, se conversava em quatro línguas. O convívio com tantas cabeças, com tantas narrativas, abriu-me a mente, aguçou-me a tolerância e o respeito pela diversidade.
No final dos anos 70 e início dos 80 havia muitos jovens viajando, para além da Índia, que era o circuito mais badalado há já algum tempo, invadindo o Sudeste da Ásia. Eu não saberia dizer com quantos mochileiros como eu, das mais diversas nacionalidades, compartilhei caminhos. Foram dezenas. Havia uma cultura de andarilhos, uma comunidade de viajantes com regras de ética e princípios de solidariedade seguidos pela galera.
Correspondo-me até hoje com alguns: o jornalista alemão que, como eu, aprendeu a mergulhar nos corais de Bali, o americano que conheci em Hong Kong e que tem uma frota de pescar lagostas no Maine, para não falar da professorinha australiana que me convenceu a visitar o seu belo país porque me falou ter estado no Rio de Janeiro e adorado feijão com arroz.
Conheci no estado indiano do Rajastão, na cidade de Jaipur, um casal super simpático. Ela é suíça, ele grego, são donos de lojas e de um restaurante na ilha grega de Corfu. Estavam fazendo compras para as suas empresas e, em seguida, como eu, iriam visitar as cidades do deserto. Viajamos juntos por duas semanas nos maravilhando com Jodphur, a cidade azul, e Jaisalmer, a cidade dourada que ergue-se majestosamente das areias do deserto de Thar.
Nos despedimos amigos de infância, eles com destino a Nova Delhi eu na direção de Mumbai e depois de Goa, outrora portuguesa com certeza, onde as Nossas Senhoras são morenas, usam pulseiras, ostentam a tikka - o terceiro olho da sabedoria - no meio das altas testas e onde o povo adora galinha à cabidela. Trocamos postais por meses a fio até que o casal me convidou a passar o verão trabalhando para eles. Salvaram-me da miséria e me possibilitaram viajar mais outro ano! Hoje trocamos as fotos de nossos netos. O que dá razão ao Tolkien quando diz que : "nem todos os que vagueiam estão perdidos".
Poucos mochileiros podiam se dar ao luxo de não fazer bicos. Trabalhar era preciso, sempre que possível. Fiz todos os trampos imagináveis e mais alguns: colhi tomates e azeitonas. Lavei vidraças. Lavei pratos. Fui garçom, barman, guia turístico, cuidador e motorista de um conde idoso e viciado nas maquininhas de pôquer do Trastevere, ajudei na pesca de sardinhas em alto mar. Para viajar encarávamos qualquer bico.
A gente se hospedava em guest houses, comia pelas barraquinhas e quiosques da vida, economizava cada centavo, ainda que, antigamente, a Ásia fosse baratíssima e sobrevivêssemos bem alimentados, limpos e decentemente alojados, na base de U$ 6 /dia, excluídas, é óbvio, as despesas com os deslocamentos. Tenho mais de 40 mil quilômetros só em trens indianos na bagagem. Chegando numa cidade asiática, depois de arranjar mapas, todos terminavam na praça central. Sempre tinha uma praça central. Lá se instala a "movida". E em todos os bares e cafés e casas de chá e restaurantes, encontrávamos quadros de aviso, cheios de bilhetes com indicações de hospedagem, de locais para comer, de passeios imperdíveis. Em Calcutá, de onde voei para Bangkok, li em uma daquelas recomendações: Se for a ilha tailandesa de Koh Samui não deixe de experimentar o Crab Burger do Chaweng Hut. Foi o melhor hamburger de caranguejo da minha vida. Deu de dez a zero nos de camelo :)
Lembro que nas hospedarias das grandes cidades, que serviam de portão tanto de chegada quanto de saída para os viajantes, havia sempre uma prateleira ou um armário envidraçado cheio de livros, as nossas bibliotecas multilíngues.
E kits de primeiros socorros. Coisas das quais não mais se precisa quando se está voltando para casa. A lei da estrada era clara : as farmácias eram de todos os que precisassem delas, mas para ler um livro era necessário se colocar outro no lugar. Para alguém que lê com a minha voracidade, aqueles livros foram uma benção.
Em um café que pertencia a um austríaco casado com uma garota nepalesa, defronte do Templo de Shiva, no Dubar Square, bem no centro de uma medieval Kathmandu, eu passei muitas happy hours bebericando chai e, em rodízio, devorando tortas de chocolate, apfelstrudels e biscoitos de amêndoa. Aquele era o único local na Ásia inteira onde os expatriados podiam comer tais maravilhas! Enquanto eu caprichava na glicose, lia um livro chamado O Clã do Urso da Caverna e me encantava não pelo livro, uma tolice dessas em série, mas pelo seu tema - a nossa pré-história. De volta à civilização, só sosseguei depois de ter visitado as cavernas de Lascaux e de Altamira e visto as pinturas rupestres fabulosas que o livro me descrevera, em primeira mão.
Era assim, muitas vezes, que novos roteiros eram traçados e decididos: por acaso.
Relato arrebatador sobre algumas das experiências do Pimentel em suas viagens pelo mundo!
ResponderExcluirApesar dos problemas que o avançar da idade acarreta, alegro-me que Pimentel tenha 61 anos, pois não estamos muito distante um do outro, pois tenho 66.
No meu caso, um filho a menos, em face dos meus três, todos homens, igualmente formados, sendo o mais velho médico, o do meio formado em Contábeis e, o caçula, em Administração, mas tenho mais netos, cinco!
Três meninas e dois guris, que enriquecem a minha vida e a da avó de maneira plena, abundante, tanto em amor quanto em "movimento" para acompanhá-los quando nos visitam.
Nada se compara à alegria de se ter netos, pois é o momento da compensação, quando tínhamos a obrigação de educar os filhos e com os netos a "deseducação".
Doces, chocolates, nas horas erradas, presentes fora de aniversários ou Natal, Dia da Criança, Páscoa ...
A vida com eles adquire uma coloração especial, forte, berrante - e como berram quando estão juntos! -, que não é exagerada, mas a intensidade de suas vidas que florescem, que estão sendo ditas ao mundo que vieram em busca de seus espaços, que são seres humanos e que merecem ser felizes, em razão do amor e dos cuidados dos pais e avós.
Encanta-me as brincadeiras, os pedidos, a divisão que faço com eles do escritório, os livros que me pedem para ler, ver as fotos do vovô e da vovó quando casaram e dos pais quando pequenos como eles.
E dão gostosas gargalhadas quando veem pai e mãe de fralda, pequenos, levados pelas mãos dos avós.
Vô e vó são os museus da família onde se guaram as memórias, os registros, os acontecimentos do passado, e que terão grande repercussão na vida dos mais moços pela preservação do histórico familiar, do crescimento do grupo e, principal e basicamente, a união!
A meu ver, esta é a função ainda que os avós devem desempenhar, em razão do exemplo que dão aos filhos e netos por estarem juntos depois de tanto tempo de casados, eu e a esposa temos 46 anos de casamento, que servem como testemunho vivo desta união, desta coesão familiar, desta unidade, que não se pode dissipar.
Se alguém pensava que aos avós a vida seria leve e fácil de ser conduzida, independente dos problemas da idade avançada, enganava-se redondamente.
Nós somos os esteios da família, os seus pilares, os portos, quando os filhos e netos mais adiante precisam ancorar diante de martes bravios, a confiança de se deixar um neto aos cuidados do casal de velhos, mas que sabem que jamais alguém poderia protegê-los como aquele homem e mulher idosos, e não encontrariam quem pudesse amá-los tanto, e com tanta devoção!
Em ordem cronológica, Luíza, 9 anos, Sarah, 8, Bernardo 4, Matheus, 3 e Helena também 3, porém seis meses mais "nova", nos atestam que viveremos por muito tempo, mesmo que já tenhamos nos despedido deste mundo, mas estaremos presentes em suas mentes, lembranças, em recordações que vão fazê-los ter saudades dos avós, e que tais pensamentos de enlevo irão continuar nos conectando com eles estejamos nós, eu e a mulher, onde estivermos, mas a força dessas lembranças positivas, meigas, afetuosas, romperão distâncias e mundos, e continuaremos ligados uns aos outros pela força do amor, pela união, que jamais foi rompida!
Parabéns, Pimentel, pelo artigo deslumbrante, que me incentivou a comentar sobre os meus netos, como se eu e a esposa viajássemos para fora deste mundo, antevendo como será o nosso futuro em planos desconhecidos que, no entanto, serão tão belos quanto aqueles que percorreste neste planeta, nesta Terra magnífica e abençoada!
E obrigado ao Wilson, por nos proporcionar este espaço de saudosismos, de lembranças, que tanto nos alegram e nos incentivam a continuar querendo ser úteis e produtivos, apesar da idade reclamar quando dela exigimos mais velocidade, mais ações, mais dinamismo.
Saúde e Paz a todos!
Caro Bendl,
ResponderExcluirEste seu comentário foi tão bonito e verdadeiro que me deixou sem palavras, o que é fato raro. (rsrs)
Você descreveu exatamente como me sinto em relação aos meus ,à minha tribo. Sim, são as nossas sementes e os seus frutos a melhor das nossas viagens.
Um grande abraço
É um prazer encontrar o Caríssimo por aqui. Um relato que dispensa qualquer tinta que eu ouse gastar. Pelo que eu conheço das histórias vividas por ele, Moacir é uma reencarnação de Marco Polo. Ponto.
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