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09/06/2016

A Estatística

Hoje continuamos com as histórias do Bendl sobre seu tempo de taxista:

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   Alguns assuntos são inevitáveis nos percursos de táxi.
Falar sobre o tempo é quase uma obrigação.
Abordar aspectos particulares depende do estado de ânimo do passageiro, mas as mulheres em geral gostam de conversar sobre a família e não evitam dizer se estão separadas ou não.

No sabor da conversa elas são francas ao afirmar que a separação foi um alívio ou tormento, que o ex contribui com pensão para os filhos ou é sempre necessário pressioná-lo, que vivem melhor após a separação ou em dificuldades sem o companheiro.
Mas, percebe-se nitidamente a existência de mágoa no falar, talvez porque se subentende que um divórcio signifique, nas entrelinhas, também uma derrota para o casal ou um casamento sem maiores planejamentos, mesmo que esta separação tenha sido consensual.
A sensação da perda é flagrante; o desmoronamento do sonho de se constituir uma família feliz e duradoura esvai-se, substituído pela incerteza e frustração.

Chama-me a atenção fortemente que o tempo de casamento não conta mais como decisivo para evitar que a família se dilacere.
Os casais se separam em qualquer tempo, com filhos pequenos ou não e, lamentavelmente, muitas vezes não se importando com as condições que vão ficar as crianças, ou seja, se bem cuidadas, tratadas, educadas e assim por diante.
O bem comum é deixado de lado sem qualquer cerimônia para desespero de alguns e alegria para outros, porém, o preço cobrado desses pais é caro: o sofrimento dos filhos.

Se admitem o que afirmo muito bem; se pensam que estou exagerando deploro, de antemão, a falta de visão para os problemas alheios, principalmente o estado emocional das crianças com o rompimento, aliás, seus filhos!
Evidente que não estou querendo pregar a união permanente - apesar de acreditar nela e conduzir o meu casamento para isso há 40 anos -, refiro-me às conseqüências da desunião no âmbito familiar. Agora não havendo filhos, que os casais se troquem todo o dia se quiser, tendo em vista não ter havido frutos desse amor.

Neste aspecto, dois casos me chamaram a atenção:
As separações acontecidas com o maior tempo de união e as desuniões mais breves.
Comecei a fazer esse levantamento de forma aleatória, sem qualquer cunho científico como exigem as estatísticas, apenas por curiosidade e passatempo, além de divertir alguns passageiros.

Na primeira situação, eu estava conduzindo uma senhora aparentando 60/63 anos, magra, bonita, cabelos pintados de um tom claro de loiro, bem arrumada, pintura sóbria, uma voz muito bonita, meiga e suave.
Queixava-se amargamente do esposo que a deixara após 33 anos de casados. Sua maior mágoa foi ter sido substituída por uma mulher bem mais jovem que ela, na casa dos trinta. Sua maior alegria seria vê-lo retornar para ela cabisbaixo e humilhado porque certamente - ela dizia – ele não dará conta do “compromisso”. Ela sabia de suas inconstâncias conjugais, melhor, ela conhecia profundamente suas preferências e, somente ela, sabia como atendê-las!

A nova companheira do ex-marido iria traí-lo em seguida, falava-me com sua voz rouca e embargada pelas emoções, deixando-a mais bonita e frágil naquele banco de trás do carro.
Nós, homens, como somos cruéis com as mulheres, eu pensava enquanto ela relatava seus dramas conjugais e pessoais.
Como podemos trocar a esposa de tantos anos por uma aventura?

Quando ela se acalmou eu comecei a lhe dizer que seria fácil ela restabelecer a sua vida e para melhor porque condições não lhe faltavam. Afinal das contas ela detinha consigo segredos inconfessáveis sobre procedimentos conjugais e isto deveria ser levado em conta como importantíssimo para futuros relacionamentos, tais como, sabedoria e experiência na arte do amor entre casais.

Não sei se fui feliz  com esse incentivo, mas ela parou de chorar e de imediato me perguntou:
- O senhor não conhece, por acaso, algum colega disposto a recomeçar uma relação?
(Nada como um novo amor, a fórmula continua sendo infalível).
No segundo caso, a do casamento menos duradouro, lembro-me bem dela. Uma mulher alta, esguia, corpo bem delineado, percebia-se acostumado com academias. Vestia-se muito bem, sem exageros, mas elegante, inteligente. Falava muito bem e sua voz era feminina, agradável. A típica passageira que motoristas de táxi precisam transportar uma vez que outra - seguidamente pode ser perigoso, temerário ou abalar corações - para ajudar a diferenciar as pessoas de coisas, sob pena de rotularmos todos como objetos a conduzir e cobrar o preço que o taxímetro acusa.

Em outras palavras, o automatismo do entra e sai de passageiros e a rotina para o profissional que, lá pelas tantas não distingue mais quem está levando, se homem, mulher, criança, idoso, padre e assim por diante.
Enfim, era uma mulher verdadeiramente interessante e que a maioria dos homens iria querer como companhia.

Não precisei puxar conversa.
Ela entrou no carro, acomodou-se confortavelmente, deu um suspiro profundo e antes de eu fazer funcionar o Siena, ela exclamou:
Moço, por que a vida é tão madrasta?
Meus 60 anos e peso excessivo, feio, fora de moda, pobre, desajeitado, saberiam a resposta na ponta da língua sem titubear, mas uma mulher tão bonita e atraente, jovem e interessante, perguntando-me de forma já afirmativa que a vida não lhe sorria, causou-me perplexidade, por instantes fiquei mudo.
Tentei balbuciar alguma coisa, quem sabe eu falasse de filosofia, epistemologia, metafísica, física quântica, a existência ou não de Deus...  tudo isso soaria falso. Ela queria uma razão, afinal!

Criei coragem, estufei o peito, barriga para dentro (impossível na minha condição, lamentei diante da infrutífera tentativa em momento tão crucial) e disse solenemente:
- Ninguém vive impunemente as delícias dos extremos!
- O que o senhor quer dizer com isso, perguntou?
Passei-lhe a comentar que a sua beleza gerava a cobiça. Tê-la como namorada ou esposa seria sempre exibi-la para os outros homens como um troféu, mesmo para aquele sujeito que viesse a amá-la verdadeiramente.
Perguntei-lhe quais seriam as razões que a faziam sentir-se infeliz, de modo que a conversa pudesse ser canalizada mais especificamente.
Disse-me que seu casamento celebrado com toda a pompa e circunstância, convite em pergaminho, festa em salão nobre de clube famoso em Porto Alegre, um bolo de noiva único, centenas de convidados e vários padrinhos, lua de mel no exterior...  tinha durado apenas 45 dias!

Fui surpreendido pelo meu próprio machismo escancarado e transbordando de preconceito ao lhe perguntar de jeito seco, sem meias palavras:
- Bah, guria, mas o que aprontaste de tão grave (uma mulher com aquelas condições de modelo só poderia ser a causadora da separação em tão pouco tempo de união, eu pensava)?
Foi a resposta que mais me deixou surpreso porque o seu casamento ter durado tão pouco.
Ela se aproxima de mim, sentando-se mais para o meio do banco, inclina a cabeça para ficar mais perto do meu ombro e responde:
- Olha, meu senhor, após 45 dias juntos, sem que ele consumasse (!) o casamento, eu e a família dele preocupados com esta indefinição, descobrimos após dias de investigações através de um detetive particular,  que ele tinha OUTRO!

Fiquei obviamente pensativo.
Alguns minutos depois eu lhe disse que lamentava a situação que ela vivenciara, mas o ser humano é ainda uma incógnita.
Havia muito para se descobrir a respeito das razões pelas quais a pessoa tenta uma vida diferente, quem sabe forçando em demasia a sua natureza até um dia que ela não suporta mais o teatro e explode, quem sabe?
A corrida chegara ao fim.
Era uma pena aquela jovem bela,  vigorosa, físico e sensualidade à flor da pele, sendo protagonista de conflitos de ordem tão complexos e inexplicáveis.

Na volta para o Ponto, sem passageiro que me fizesse apanhá-lo no meio do caminho, comecei a indagar para mim mesmo sobre essas instabilidades da vida, o que pensamos, mas não é e, o que é, não é o que pensamos, as certezas que se transformam em desconfianças, o amor em ódio, e me veio à lembrança um baiano, à época conhecido como “Boca do Inferno”, pelo seu espírito crítico, chamado Gregório de Matos e Guerra (1623-1696).
Ele escreveu um soneto que se encaixa maravilhosamente bem no tema acima e o denominou de A Instabilidade das Cousas no Mundo:

“Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa é a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente por inconstância.

Que extraordinária força reside no desejo!
Como são inescrutáveis e impenetráveis as pessoas e seus mistérios, e suas ânsias por emoções e sensações!
Nosso mal é a mente ou o corpo que nos obrigam a comportamentos que fogem ao nosso controle e, desta forma, ocasionamos problemas às pessoas que nos cercam ou muitas vezes a nós mesmos?

3 comentários:

  1. Meu caro Wilson,

    Obrigado por mais esta publicação de uma crônica que fiz quando taxista.

    Não tenho saudades da direção, de conduzir o veículo pelas ruas de Porto Alegre, mas sinto falta dos casos relatados pelos passageiros, que ensejaram eu escrevê-los e publicá-los.

    Impressionante, com o tempo, foi eu ter percebido que em razão de o motorista não ver os olhos do passageiro diretamente, pois invariavelmente quem conduzimos senta atrás, as conversas fluem mais fáceis, as confissões são feitas sem maiores preocupações, e as verdades são ditas sem maiores empecilhos ou cuidados porque não há motivo para mentir ou dourar a pílula.

    Se o motorista for mais velho e diz palavras sensatas, pronto, conquistou corações e mentes, ainda mais se mostrar que também possui aptidões no trânsito, isto é, saber dirigir, então tem uma quantidade de clientes muito boa fora do seu Ponto, do seu bairro, e o telefone não para de tantas chamadas!

    Na verdade, o que mais me surpreendia era a confiança depositada em um estranho, afinal das contas, em buscar ou levar os filhos ao colégio ou conduzi-los e trazê-los de volta para casa após os bailes pela madrugada, e com os pais em casa, sem irem com o motorista!!!

    A responsabilidade era enorme, mas eu não me furtava porque me colocava na situação daquela mãe e pai, que queriam que seus filhos andassem em segurança e, neste aspecto, sempre fui muito consciente da minha profissão, mesmo que provisória.

    As dezenas de anos como viajante, sem falsa modéstia um motorista muito habilidoso pela técnica e experiência, avô, sempre enriqueceram as minhas referências neste particular, ainda mais quando era para levar passageiros para o aeroporto pela madrugada, cujo compromisso era absoluto.

    Foram seis anos muito bons, intensos, extremamente cansativos, então não tenho saudade em face da exigência física, mas das conversas, das trocas de ideias e experiências, elas me fazem muita falta, indubitavelmente.

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  2. Caro Bendl,
    Pra começo de conversa com eu gostaria de ter podido contar com a ajuda de um Bendl para levar e buscar os meus aborrecentes para as baladas deles durante longos anos. As tais festas de 15 anos ,então, eram uma via crucis nas madrugadas!
    Quanto à crônica ...
    Gostei. Muito! Do que foi escrito e do que restou , nas entrelinhas talvez insinuado - baixinho! - pelas instigantes descrições das "vozes" das passageiras.Já dizia o grande Bandeira que "os corpos se entendem melhor que as almas".
    Quanto à confiança , aos relatos íntimos entre pessoas que mal se conhecem ,acho que , entre outros motivos , eles resultam do fato de ser mais confortável nos revelarmos para aqueles que sabemos estar apenas de passagem.
    O fato é que suas esplêndidas pretinhas me fizeram lembrar de outro comentário que eu fiz,dia destes, lá no Peres.Nele eu dizia que embora somente uma grande paixão, o instinto , uma atração irresistível, nos permita ,contra toda essa nossa prudente razão , abrir espaço na nossas vidas, para uma perfeita estranha, quem tem juízo sabe muito bem que o amor vai além de mera atração, e que ele se intensifica e desbota em ciclos, como as estações do ano.
    Que o amor - pelo menos o que experimento - é uma coisa permanente.Um compromisso.Uma vontade sempre renovada de se estar por perto e por inteiro. O resto é uma de duas situações : a caça primitiva muuuuuito bem planejada antes de ser cometida ou screenplay.
    Eu ponderava , no entanto, que sempre haverá uma mulher que , chegando inesperadamente , só de olhar e ser olhada impressiona, instiga e balança.Mas que se a primeira opção , lá atrás , continuava valendo , então não vale a pena fazer escalas na viagem. Afinal, “não se vai ao Rubicão para pescar”.
    E que face à essa atração que rola de vez em quando , é como se, mesmo profundamente encantados com a possibilidade , a gente pensasse :
    Que pena! Ela chegou atrasada e está só de passagem.
    E que talvez o grande Baudelaire tenha tratado do tema, magistralmente , nesse poema :

    A UMA PASSANTE

    A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
    Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
    "Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
    Erguendo e balançando a barra alva da saia;

    Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
    Eu bebia, como um idiota extravagante,
    No tempestuoso céu do seu olhar distante,
    A doçura que encanta e o prazer que assassina.

    Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade
    De um olhar que me fez nascer uma segunda vez,
    Não mais te hei de rever senão na eternidade?

    Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
    Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
    Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!"

    Parabéns!
    Abraço

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  3. Francisco Bendl10/06/2016, 14:53

    Moacir,

    Se não temos um casamento sólido, qualquer relação balança com as tentações do dia que estamos sujeitos.

    Mesmo para mim, um sujeito grande, feio, pobre, ortodoxo, peso pesadíssimo, desajeitado, o táxi me proporcionava, caso eu quisesse, várias chances de "pular a cerca", surpreendentemente.

    A mulher está muito carente. Ela precisa que a ouçam e quando responderem às suas indagações, que sejam mediantes palavras sensatas, equilibradas, ponderadas.

    A mulher está sobrecarregada de responsabilidades porque seus companheiros ou maridos não querem dividir o peso dessas obrigações, então o homem se deixa fragilizar pela crise, pela vaidade, aparência e amizades, restando à mulher levar o casamento adiante e criar os filhos.

    Eu mesmo tive uma oportunidade ímpar neste sentido, de uma mulher de seus 40/45 anos de idade, beleza estonteante, lindíssima, sorriso espetacular, voz encantadora, e só, sentindo-se abandonada, sem ninguém.

    Duas ou três corridas que fiz com ela, em face de as conversas serem sempre sérias, refinadas, reais, verdadeiras, análises do comportamento humano diante das dificuldades, fui "convidado" para ser o seu novo "parceiro"!

    Evidente que eu lhe disse do meu casamento, do meu amor pela esposa, filhos, netos - havia somente a Luizinha -, e que eu não seria o ideal às suas pretensões, mas percebi que eu deveria ter muito cuidado nas conversas que eu mantinha com a passageiras que me confidenciavam estar com problemas, e a experiência me possibilitar exatamente o que elas queriam no momento, de alguém que as ouvisse e as compreendesse nas suas frustrações ou responsabilidades em demasia ou compromissos familiares e profissionais.

    Aprendi muito com o táxi, pois a vida naquele veículo assim como conduzia os passageiros aos seus destinos, poderia me levar para locais que eu depois me arrependeria profundamente, então a necessidade do equilíbrio, e de estar à distância calculada de não ser envolvido pelos problemas alheios, pois bastavam os meus.

    Um abraço, meu caro.
    Saúde e Paz!


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