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29/06/2016

De Discos e Toca Discos


Meu Toca Discos


Wilson Baptista Junior       



Faz uns dias, conversando com o Moacir, a conversa se voltou, não sei bem porque, para toca discos.
Ele, como eu, é um dos que ainda gostam dos toca discos (e não dessa onda "vintage" de gente que agora está achando chique a moda de comprar vinil, sem saber bem porque, e essas vitrolinhas horrorosas que vão junto hoje).

Minhas primeiras lembranças de música, bem pequenino, são daquelas bolachas pretas de 78 rotações, numa eletrolona na sala lá de casa. Me lembro de ouvir a orquestra de Georges Boulanger tocando “Sous le Ciel de Paris”, aquela entrada belíssima do violino na “Valsa Triste” de Sibelius, e muitas peças clássicas, sempre interrompidas pela virada e troca dos discos que guardavam só cinco minutos de música em cada lado. Ouvir uma sinfonia era um exercício de paciência. Para não falar das vezes em que quebrei algum disco mexendo neles, eram muito frágeis.

Um dia meu pai chegou em casa com um disco diferente, e um grande caixote com um toca discos Webcor novo dentro. Era o primeiro long-play de 33 rotações que entrava lá em casa, e o toca discos da eletrola tinha que ser trocado por um capaz de tocar o novo formato.
Trocar o toca discos envolvia fazer uma nova base dentro do móvel da eletrola. Vi o meu pai fazer isso na oficina lá de casa, e foi a primeira vez em que vi um toca discos por dentro. 

Com os LPs comecei realmente a escutar música. Muitas delas me marcaram pela vida afora; uma foi o “Concerto para Violino em Ré Menor”, de Tchaikovski, tocado por Rudolf Schulz com uma orquestra pouco conhecida, da Rádio de Leipzig. Hoje tenho uma porção de gravações deste concerto, mas nenhuma se compara àquela maravilhosa do Schulz, onde ele, como vim a ler muitos anos depois numa crítica da Grammophon inglesa, “derramou sua alma sobre as cordas”.
Até hoje é a música que escuto quando estou triste por alguma razão. Ainda tenho aquele disco original, já um pouco danificado pelas agulhas da época, e nunca mais, por mais que tenha procurado, encontrei de novo essa gravação para comprar. Recentemente um de meus irmãos, numa das últimas grandes lojas de discos clássicos e de jazz de qualidade de Londres, a Harold Moore Records, colocou os vendedores para fazerem uma pesquisa. Nenhum deles conhecia nem o Schulz nem a gravação. Mostrou para eles no You Tube, onde existe uma gravação de apenas quarenta segundos, e procurando nos sites de discos raros conseguiram localizar num deles um último exemplar, usado, do Schulz tocando o concerto, mas não era com a mesma orquestra... 

Outras foram os “Quadros de Uma Exposição”, de Mussorgsky, as peças para violino de Sarasate (até hoje me lembro do nome inteiro do compositor, que me fascinou por sua sonoridade quando o li, Pablo Martín Melitón de Sarasate y Naváscues), as “Rapsódias Húngaras” de Lizt, a “Peer Gynt” de Grieg, que tomou para mim uma nova dimensão depois que li o livro de Ibsen e aí entendi o “Cimarron” da Edna Ferber, o “Príncipe Igor” de Borodin,  o “Pássaro de Fogo” e a “Sagração da Primavera”, de Stravinski, a “Noite no Monte Calvo” de Mussorgski, essas duas indissoluvelmente ligadas à lembrança das cenas do “Fantasia” de Disney...
        E a beleza da introdução da "Scheerazade" de Rimsky-Korsakov, quando aquele violino solitário vem vindo lá de longe como se viesse do fundo do coração.

Todas essas mescladas sempre com a lembrança de meu pai e minha mãe me explicando as peças.

Foi aí também que tive meu primeiro contato com a ópera, num disco com uma coletânea instrumental de árias que abria com Verdi, a Grande Marcha da “Aída”, passava pela Meditação de “Thaís”, de Massenet,  e terminava, se não me engano, com o Toreador, da “Carmen” de Bizet.

Mas não era só música clássica, nunca vou me esquecer do dia em que ouvi a primeira gravação de “Rock Around the Clock”, com Bill Halley and his Comets. Foi um terremoto na minha turma...
Nem das músicas românticas, Connie Francis cantando “Granada”, Nat King Cole, Os Cantores de Ébano, e os infindáveis boleros das festas da adolescência...

Mais tarde essa eletrola foi substituída por outra, e afinal por um conjunto da Philips, estereofônico, com duas caixas grandes, entradas para gravador e sintonizador, que achávamos o máximo. 

Na véspera do meu casamento com Ana (que foi às nove da manhã) fiquei até tarde gravando uma fita para tocar na igreja (não tínhamos dinheiro para contratar música), e na hora do casamento os convidados viram um sujeito em mangas de camisa atarefado no fundo da igreja, estendendo fios, pendurando as caixas daquele conjunto e regulando o som. Quando o carro da noiva chegou na porta, o sujeito enfiou um paletó e correu para a frente do altar para esperar a moça...
Ainda me lembro de que a Ana entrou na igreja ao som de “Raindrops Falling on My Head”, a música tema do filme Butch Cassidy, e nos casamos ao som do “The Windmills of Your Mind”, da cena antológica do voo de planador do Steve MacQueen no filme “Crown, o Magnífico”.

Depois de casado e quando consegui uma certa estabilidade financeira, eu me tornei um daqueles que na época, quarenta anos atrás,  se denominavam aficionados por "alta fidelidade". Tinha um toca discos Philips Electronic 212, na época o que a Philips fazia de melhor. Mas aí troquei a cápsula por uma ainda mais sensível, e achei que ela já estava testando os limites de sensibilidade do braço do Philips. Então comprei de um amigo (outro aficionado) um  braço Shure/SME, mas aí tive que procurar um motor para instalar o braço.
Quando voltei de uma viagem à Europa, esse amigo disse que enquanto eu estava fora tinha encontrado para mim um motor Garrard 301, dos que a BBC usava antigamente, zero quilômetro. Um camarada desavisado aqui tinha importado o motor pensando que era um toca discos completo, e aí sem saber o que fazia com ele colocou-o no armário e lá ficou por uns quinze anos.

Comprei o motor, construí a mesa com o sistema de amortecimento de vibração por molas na oficina de Papai, instalei e calibrei o braço... E aí o toca discos não dava regulagem de velocidade, girava um pouco mais rápido do que deveria, mesmo no limite do ajuste.
Escrevi para a Garrard na Inglaterra (foi antes da Gradiente comprá-la e acabar com ela) e me disseram que o motor era calibrado para braços mais pesados, que se usavam quinze anos antes, então girava mais rápido para compensar o retardo pela maior pressão da agulha, e aí ficava muito rápido com os 3/4 de grama que eu usava. Me mandaram um estojo com diversas peças de reposição incluindo duas polias de bronze, de três velocidades, em estado bruto, e eu calculei e torneei uma delas para as medidas correspondentes no torno de joalheiro de meu pai.

Quem conhece a precisão necessária para fabricar uma polia dessas que não introduzisse variações de som num tocadiscos daquele tipo, sabe que só o processo daria um artigo :)

Aí ficou beleza. Ele ficava em cima de uma estante baixa. Anos depois mudei-o para a prateleira da fotografia  que ilustra este artigo, então como ficou muito próximo da parede tive que inverter o mecanismo de peso de ajuste fino da pressão do braço (que se projetava para trás), o que implicou em fabricar e ajustar outras peças.

E está lá há trinta e poucos anos, tratado, como dizia meu pai, "a pão de ló e guaraná gelado", rodando meus LPs. Só a cápsula é outra, uma Shure V15 IV, mais nova. 

Bons tempos em que a paixão e a disposição me faziam fazer coisas assim...

Nesses anos todos fui avançando devagar na minha educação musical e me apaixonando, ou me apaixonando de novo, por tantas músicas, o “Don Quixote” de Richard Strauss, a “Novo Mundo” de Dvórak, a “Suite Grand Canyon” de Grofé, .a “Rhapsody in Blue” e o “Concerto para Piano” de Gershwin, o Concerto para Piano de Grieg.

Muita música de câmara. A “Serenade” de Beethoven, com o soberbo trio de cordas de Jascha Heifetz no violino, Gregor Piatigorski no cello e William Primrose na viola, que se reuniam nos Natais para tocar juntos.
Os grandes, Bach, Vivaldi, Beethoven, Mozart, Brahms e por aí a fora. Os escandinavos, Grieg, Halvorsen, Nielsen.  O “Mà Vlast”, de Smetana.
E uma quantidade de jazz e blues, mas esses foram quase todos em CDs, já não foram no toca discos...

8 comentários:

  1. 1) Salve Mano,

    2) Obrigado pela aula de música. Escreva sempre, uma satisfação lê-lo, soa bem aos meus ouvidos de leigo que aprecia Carmina Burana, Bolero de Ravel, Vivaldi ... leigo mesmo ...

    3) Também sou desse tempo de radiola, rádio-vitrola, toca-discos e afins.

    4) Esse blog é muito bom. Obrigadão por estar aqui ouvindo vcs...

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  2. Wilson Baptista Júnior29/06/2016, 21:06

    Antonio, sou eu que tenho que agradecer a você, que é um dos que escrevem para nós aqui no blog as coisas boas de ler.

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  3. Heraldo Palmeira30/06/2016, 00:56

    Mano, fiz uma viagem no tempo. O toca-discos tem presença fundamental na minha vida. Primeiro, me ensinando a ouvir música, que virou paixão de vida inteira. Tempos de uma pequena eletrola Philips, portátil, que deu lugar à enorme Canarinho Isabela V, colosso da ABC-A Voz de Ouro.

    Mais adiante, trabalhando no rádio AM com os magníficos Gates e Collins. A seguir, na Era Disco, como DJ da lendária Apple Discothèque (em Natal) com as excepcionais Technics SL2000, mecânicas, Direct Drive, equipadas com agulhas Shure, verdadeiros tanques de guerra naquelas noites infindáveis e deliciosas. Por fim, no rádio FM, com o sonho de consumo Technics SL1200 MK2.

    Anos depois, em Londres, o deslumbramento com a SL1200 MK5 numa vitrine, produzida para comemorar os 30 anos da primeira MK2. Mais cinco anos e a MK6K1 Limited Edition festejou mais uma data histórica desse clássico.

    Os toca-discos rodaram música na minha vida, que roda no mundo, que roda no espaço infinito dessa eterna roda-viva.

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  4. André dos Anjos30/06/2016, 09:16

    Viajei no tempo! Depois de alguns anos sem toca discos, arrumamos um este ano, pois meu filho mais novo ficou muito interessado em escutar alguns monstros do jazz que tenho em LP, e está sendo muito bom reviver esta história, embora eu, cada vez mais, ache que não existe nada tão bom quanto música sendo executada ao vivo.
    Também gosto muito do concerto para violino de Tchaikovsky.
    Não sabia que alguém além de mim gostava da Suite do Grand Canyon...

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  5. André Baptista30/06/2016, 10:31

    Fiquei muito honrado de ser citado na sua história. : ) E tudo que voce conta me lembra muito as primeiras impressões da música na minha vida, que foram bem parecidas com as suas. Só faltou a Dança Ritual do Fogo, de Manuel de Falla
    https://www.youtube.com/watch?v=ct_yPeH9b-0

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    1. Faltou por esquecimento! Foi só você escrever que a melodia veio à minha cabeça. Um abraço.

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  6. Moacir Pimentel30/06/2016, 12:42

    Wilson,eu não poderia deixar de comentar o seu belo post, que nos trouxe uma boa nova: ainda são muitos os saudosistas às voltas com seus velhos toca-discos e suas insuperáveis paixões musicais.
    Abraço

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  7. Tô dizendo ... este blog maravilhoso está resgatando lembranças que se vão longe, porém jamais esquecidas!

    Também tive um toca-discos, RCA, mas os meus ouvidos não foram educados através da música erudita, inicialmente, mas me deliciando aos 11, 12 anos, com Ray Conniff, Elvis Presley, The Beatles, The Platters, Rita Pavone, Pino Donnágio, Gianni Morandi, Bobby Solo, Agnaldo Rayol, a partir de 65 com Roberto Carlos, Ângela Maria, Ray Charles, Cely Campello, Nat King Cole, Billy Vaughn, Percy Faith, Mantovani, Alain Barrière, Gilbert Becaud, Conjunto Farroupilha, The Clevers, que depois se chamaram Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, Maysa, Jerry Adrianni, Gregório Barrios, Herman's Hermits, Dick Farney ... uma mescla entre rock, baladas, boleros, samba-canção, e o início da Bossa Nova e Tropicália, com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa, e as vozes de Cláudia, Eliana Pitmann, Elza Soares, a linda Rosemary, a estupenda Leny Everson, a eterna Wanderléa, a bela Joelma, Quarteto em Cy, Marília Medalha ...

    Eu ouvia esses discos maravilhado!

    Também fui desta época dos 78 RPM, bolachões pesados, com grandes clássicos mundiais. E tínhamos uma coleção desses discos, dos cantores de ópera e árias belíssimas:
    Mário Lanza, Del mônaco, Di Stéfano, e o início daquele que viria a ser o mais famoso de todos os tempos, Luciano Pavarotti!

    Também havia em um daqueles bolachões, que mais tarde consegui o Long Play em 33 RPM, as Danças Polovitsianas, de Borodin, cuja parte da canção foi retirada e e transformada em música popular, intitulada Estranhos no Paraíso!

    E foi quando aos 15, 16 anos, passei a gostar de ópera, e comecei a comprar discos com essas peças musicais completas, e me familiarizar com as divas e tenores deste gênero imortal.

    E foi a partir deste contato, que passei a apurar a audição com Bach, Beethowen, Liszt, Dèbussy(Claire de Lune), Chopin, que contribuíram decisivamente para eu ampliar o meu gosto pela música, chegando na década de setenta e início da ointenta, eu sendo fã da música sertaneja, onde posso afirmar, na minha opinião, que Chitãozinho e Chororó foram e ainda são, quase cinquenta anos depois, a melhor dupla de todos os tempos!

    E gosto de tango, do nosso samba, o verdadeiro, não o pagode, Cartola, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Noite Ilustrada, Paulinho da Viola, a inesquecível Clara Nunes, Dóris Monteiro(quanta saudade!), a extrovertida Maria Alcina, Beth Carvalho, Agostinho dos Santos (morreu na queda do Boing da Varig, antes de chegar em Paris) ...

    Gosto de música, qualquer gênero e ritmo.

    Não tenho um gosto refinado como este teu, Wilson, que admiro, as minhas "orelhas" são mais rústicas, mais rudes, e aprecio muito mais a música que as letras, confesso. Mesmo que a letra seja péssima, mas a canção me agrada, basta.

    Agora, a título de brincadeira, e misturando os gêneros, evidentemente, afora tu me concederes permissão, OUSO, mencionar abaixo as minhas canções preferidas, sem qualquer ordem de qual é a melhor, simplesmente as mais belas que ouvi e ouço regularmente:

    Claire de Lune (Dèbussy)
    Love, Is a Many Splendored Thing
    Love Is All (Malcolm Roberts)
    Insensato Destino (Almir Guineto)
    Strangers in Paradise
    Nessun Dorma (Pavarotti)
    You'll Never Walk Alone (Plácido Domingo)
    Core'ngrato (Mário Lanza)
    Emoções (Roberto Carlos)
    Copacabana (Dick Farney)
    Ave Maria no Morro (Dalva de Oliveira)
    Aquarela do Brasil
    Barracão de Zinco (Elza Soares)
    O Soave Fanciulla (Ária da Ópera La Bohème, hoje interpretada por Jonas kauffmann e Anna Netrebko)
    Largo al Factotum ( Ária da Ópera O Barbeiro de Sevilha)
    Coro dos Peregrinos (Ópera Tannhaüser. Sugiro o arranjo extraordinário feito por Waldo de Los Rios, maestro argentino)
    Yira Yira (Tango fenomenal)

    Enfim, a lista seria muito extensa. Mas ela propicia que vejas o quanto o meu gosto musical é eclético, o quanto gosto de música e de todos os gêneros.

    Brilhante artigo, Wilson, parabéns.

    Um forte abraço.
    Saúde e Paz!

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