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01/07/2016

Língua Muda




Heraldo Palmeira    

Trocar de computador virou provação a qualquer usuário comum. Quem não se tornou um iniciado em informática tem de percorrer uma estrada acidentada, cada vez mais complexa e sem sentido.

Os sistemas e aplicativos que vêm instalados de fábrica estão repletos de porcarias que nunca serão utilizadas pela maioria de nós. Mas servem para nos impor navegações desnecessárias, na tentativa de vender outras porcarias. E para criar um labirinto insondável, capaz de tornar mais lento e complicado o funcionamento da máquina. Claro, porcarias de difícil remoção, que terminam exigindo a presença – e os custos – de um técnico.

Os chamados cabos crossover ou cabos cruzados nunca foram popularizados e têm operação pouco amigável a usuários comuns, embora sirvam para ligar o computador antigo ao novo e permitir a transferência direta da maior parte do conteúdo instalado. As placas de rede mais modernas prometem o mesmo, mas nem sempre prometer é fazer. Ou seja, alternativas eficientes àquela gincana por HDs internos e externos, pen drives, horas infindáveis de trabalho e paciência continuam inacessíveis à maioria.

Depois de tudo funcionando, a desagradável surpresa para quem, como eu, escreve todos os dias: só existem versões de bons dicionários da língua portuguesa compatíveis até o Windows 7. Liguei para as editoras Positivo (Aurélio) e Objetiva (Houaiss). Em ambas, péssimo atendimento, falta de informações e nenhum interesse em resolver meu problema – que é de muitos – ou ouvir sugestões de consumidor.

É possível instalar em paralelo uma máquina virtual, com algum sistema operacional antigo compatível com os dicionários. Ou seja, tem-se a opção de comprar uma máquina de última geração e maquiá-la para parecer mais antiga. Um espetáculo!

Esse é o retrato perfeito dessa modernidade incapaz de entender a importância de uma língua que não foi construída em bits e é guardada na nobreza dos dicionários. O mesmo labirinto da falta de identidade que tenta dar solenidade aos computadores usando o som sintetizado das teclas das velhas máquinas de datilografia. Ou colocando sons de telefones de baquelita nos smartphones.

A chateação transformou-se em desolação quando visitei lojas das principais redes de livrarias, em São Paulo. O “ponto alto” foi encontrar um vendedor de uma delas, no Shopping Iguatemi, que não sabia o que é dicionário. Era muito jovem, vá lá, mas é desolador ver um vendedor de livraria não ter o registro da palavra “dicionário” no próprio repertório linguístico. E ainda perguntar, antipático, “Dicionário?!”, com aquela empáfia enfadonha dos jovens ignorantes. Sim, parece mentira, mas o moço realmente não sabia o que é um dicionário.

Buscou ajuda de um colega mais experiente e o meu quadro de solidão de consumidor mudou pouco: o homem, bem passado dos quarenta, não conseguia conversar a respeito da versão eletrônica do produto porque não tinha qualquer familiaridade com o mundo digital. Balbuciou algo do tipo “Parece que vem um CD dentro do livro” ao me mostrar Aurélio e Houaiss impressos, mas empacou quando eu disse que aquelas versões eram incompatíveis com meu sistema operacional. Saí sem decifrar quais palavras do meu vocabulário ele não conhecia.

E por falar em livrarias, é impressionante essa febre atual de livros sem palavras, que servem apenas para colorir e estão salvando o mercado editorial. Santo Deus! Faz lembrar o que disse o escritor José Saramago diante dos econômicos 140 caracteres do Twitter, antevendo que nessa pisada o homem ainda vai acabar “chegando ao grunhido”.

Continuo sem bons dicionários no computador. Como viajo muito, será bem animador tirar da estante para enfiar na mala dois livrões que pesam, no barato, uma tonelada de ausência de inteligência do mercado digital.

Muito mais grave é testemunhar uma perigosa realidade: a língua portuguesa está virando estrangeira em Pindorama. Quando o dicionário passa a ser tratado com irrelevância, quando o “pai dos burros” vira filho bastardo de cavalos batizados, azar do futuro.

Conversando com um amigo também iniciado em dicionários, constatamos desolados que vamos convivendo com esse fenômeno mais visível nas grandes cidades: livrarias cheias de zumbis. Exemplares primitivos de uma espécie que, não demora, terá polegares diferentes, próprios para teclar em dispositivos cada vez mais minúsculos – como o resultado que geram. E sairão por aí espalhando seus grunhidos digitais.

(Texto dedicado a Moacir Pimentel, pelo seu amor pelas palavras escritas)

6 comentários:

  1. Excelente artigo. Concordo plenamente. Lembrei da minha infância ... na minha casa não tinha TV e eu lia de tudo, até dicionários. Foi ótimo, aumentou bastante o meu vocabulário.

    Também já presenciei funcionários de livrarias cometendo graves mancadas. Certa feita, um chamou o grande escritor português Eça de Queiroz ... de mulher ...

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  2. Moacir Pimentel01/07/2016, 22:30

    Mestre Heraldo,
    Muito me honra que o senhor gaste a preciosa tinta da sua BIC azul para lembrar essa paixão antiga que partilhamos pelas palavras.
    Maravilha-me que a primeira abstração da nossa espécie - A LINGUAGEM HUMANA - tenha se tornado tão sofisticada ao ponto de expressar absolutamente todos os pensamentos da humanidade.
    Falamos porque éramos especiais.E por sê-lo, desenvolvemos novas capacidades cognitivas, a habilidade de imitar os sons e de memorizar informações, o desejo de comunicar nosso entendimento, a necessidade de perceber as vontades alheias e uma vocação para cooperar.
    Em seguida , os homus da vez – confundo-me com os seus sobrenomes – resolveram moer minerais como óxido de ferro, ocre e carvão vegetal. Ao pó acrescentaram gordura animal e com as tinturas obtidas e usando as próprias mãos como pincéis,foram pintando animais e humanos e estrelas e símbolos esotéricos pelas paredes de suas cavernas. A caverna de Lascaux, por exemplo, é a Sistina pré-histórica.
    Ao fazer ARTE , representando o seu mundinho com cores , formas, linhas, pontos, volumetria e até mesmo sobreposições, o homem abstraiu pela segunda vez. As imagens eram uma língua porque contavam uma história ,digamos, de uma expedição de caça, em vez de enfileirar simplesmente imagens de animais e pessoas.
    E finalmente, no que foi para mim a mais revolucionária tecnologia jamais inventada, os nossos ancestrais misturaram numa só, as suas duas abstrações anteriores.Ou seja, deram cor aos sons, forma aos fonemas, linhas às sílabas , ordem pictórica às vocalizações e criaram ….

    A PALAVRA ESCRITA!

    A terceira abstração da espécie humana. O fim da pré-história.Os nossos vovôs ancestrais rabiscaram garranchos cuneiformes em blocos de barro, fazendo exatamente o que fazemos com os nossos laps nas caixas de comentários do blog : a comunicação.
    Em qualquer tempo, desde a sua criação, a escrita tem servido para comunicar os pensamentos e sentimentos do indivíduo , a cultura na qual está inserido, sua história coletiva, suas experiências humanas, e preservar essas experiências para as gerações futuras.A transferência de informações mais complexas, ideias e conceitos de um indivíduo para outro, ou a um grupo, foi a adaptação evolutiva mais vantajosa para a preservação da nossa espécie.
    Portanto, Mestre, eu digo para o senhor que nos encanta com as suas: eu não seria humano se não amasse as benditas das pretinhas.
    "À ELAS, COM CARINHO!"

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  3. "(...)filho bastardo de cavalos batizados, azar do futuro."

    Ri alto, para não chorar...

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  4. Marcus Guedes02/07/2016, 13:40

    Mais uma vez Heraldo pinta um quadro com palavras.
    É impressionante o resultado da ignorância da Pátria Educadora!
    Nos meus tempos de colégio público - idos dos anos 60 -, a língua pátria era amada e cultuada.
    Logo mais, se transformará em língua morta, unindo-se ao latim e, lamentavelmente, correndo o risco de se transformar em "dilmês"!

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  5. Fala-se tanto em comunicação e, no entanto, estamos perdendo gradativamente a maior fonte de entendimentos que temos:
    O nosso idioma!

    Gírias, palavras resumidas, siglas, neologismos, a Última Flor do Lácio, culta e bela, se transforma em colcha de retalhos, e não vemos qualquer campanha em nível nacional e aprofundamento nas escolas à preservação da língua portuguesa e sua riqueza de vocábulos.

    Pois este blog, que se destina a publicar comentários, crônicas, ensaios, poesias, e proibindo que se discuta política – no que faz muito bem! -, contribui decisivamente à proteção e preservação do idioma pátrio, haja vista os esforços de seus comentaristas no sentido de se fazerem entender junto aos demais escrevendo o melhor que podem, resgatando expressões que a maioria do povo desconhece e palavras que enaltecem o idioma, da mesma forma que não são usadas rotineiramente porque os brasileiros desconhecem seus significados!

    Faz tempo que se percebe o empobrecimento do idioma pela população, a dificuldade de conhecer as palavras e o que significam, a ortografia, que tem sido um caos, a falta de criatividade nas redações e na maneira como se comunicam as pessoas, mais através de grunhidos, berros, uivos e gargalhadas, que se utilizarem do idioma e ampliarem tanto seus conhecimentos nesta área fundamental quanto se fazerem compreender a respeito do que querem transmitir.

    Novos tempos? Acho que não.

    Deve ser mesmo um período de deterioração que passamos com relação a nós mesmos e aquilo que nos cerca, em face dos exemplos negativos que as nossas autoridades nos oferecem, e o declínio indiscutível de qualidade da escola pública, fundamental e decisiva na formação dos nossos jovens e futuros profissionais liberais.

    Importante artigo publicado, que aplaudo e reconheço ter sido adequado e oportuno o seu registro diante do momento atual, e parabéns ao seu autor.

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  6. Homi, eu estou incluído nos analfabetos cibernéticos ( ainda sou daquele tempo)..Seu artigo é de uma clareza espetacular. Excelente.

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