-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

14/06/2017

A Maratona mais longa da história


Wilson Baptista Junior
Em 1912, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, havia apenas três atletas japoneses competindo. Num tempo de puro amadorismo, e em que o governo japonês ainda não se interessava pelas Olimpíadas, eles só puderam chegar a Estocolmo pela generosidade de seus conterrâneos, que se cotizaram para pagar suas passagens..
Shizo Kanakuri, o único deles que competiu na maratona, era um dos melhores corredores do Japão, que tinha quebrado o recorde mundial durante as provas eliminatórias. Para chegar aos jogos teve que viajar dezoito dias, primeiro de navio do Japão até a Sibéria e depois pela ferrovia Transiberiana, atravessando a Sibéria e a Rússia, e de Moscou até a Suécia, uma viagem de mais de sete mil quilômetros de trem. Chegou a Estocolmo tão cansado que precisou de cinco dias de recuperação para conseguir começar a treinar.
Na manhã da maratona a temperatura era de mais de trinta graus, e os corredores cobriram as cabeças com lenços molhados para enfrentar o calor. Trinta e dois deles abandonaram a prova, e o favorito português, Francisco Lázaro, de vinte e um anos, desmaiou depois de trinta quilômetros, foi conduzido ao hospital e morreu pouco depois, segundo os médicos de “meningite induzida pelo calor”.
Na linha de chegada, os juizes iam conferindo a lista de abandonos anotada pelos fiscais contra os competidores que chegavam com. Mas faltou um - Shizo, que não figurava na lista, também não chegou.
Os juizes esperaram, esperaram, e por fim desistiram. Comunicaram o desaparecimento de Shizo à polícia local, que realizou investigações mas não conseguiu encontrá-lo. As hipóteses mais desencontradas foram levantadas pela imprensa, mas nenhuma se confirmou. E durante quarenta anos o seu nome figurou na lista de pessoas desaparecidas de Estocolmo. 
Shizo Kanakuri - antes da partida e na linha de chegada - foto publicada em ABC.ES
     
Em 1952, no cinquentenário dos jogos modernos, um repórter de um jornal sueco resolveu recomeçar as buscas. E acabou conseguindo localizar Shizo, que estava vivendo em sua cidade natal de Tamana, na prefeitura de Kumamoto, no Japão. como professor de geografia, e que afinal desfez o mistério daquele dia de 1912.
Quando se aproximava dos trinta quilômetros já Shizo estava tão cansado e desidratado por causa do calor que só conseguia pensar em parar e encontrar água para beber. Viu pessoas bebendo numa casa ao lado da estrada, parou e, como não falava sueco, pediu água por gestos. A família lhe deu água e o levou para descansar um pouco na sombra, dentro de casa. Shizo se recostou numa cama pensando em descansar por alguns minutos e voltar à corrida. Seu cansaço era tanto que só foi acordar no dia seguinte...
Quando acordou, morto de vergonha, não teve coragem de se apresentar aos juizes e pensou mesmo em não voltar nunca mais ao Japão.
Foi convencido a voltar pelos donos da casa, que lhe deram roupas e dinheiro e o colocaram discretamente num trem.
De volta ao Japão, Shizo voltou a correr; competiu nos Jogos Olímpicos de 1920, em Antuérpia, onde foi o 14º na maratona e o corredor asiático mais bem classificado, e depois nos de 1924, em Paris, onde abandonou a prova. Mas, incrivelmente, repórter nenhum associou o seu nome ao desaparecimento de 1912; para o resto do mundo Shizo continuava sendo o misterioso desaparecido. Durante todo este tempo, a lembrança de não ter completado a corrida o incomodava.
Depois da descoberta do repórter, em 1966 a televisão sueca procurou Shizo e perguntou se ele gostaria de completar a prova interrompida em 1912. Shizo foi a Estocolmo, entrou no estádio olímpico e trotou até a linha de chegada, que cruzou afinal cinquenta e quatro anos, oito meses, seis dias, cinco horas, trinta e dois minutos e vinte segundos depois da partida.
Entrevistado pelos repórteres, Shizo declarou que “tinha sido uma corrida bem longa, afinal pelo caminho eu me casei, tive seis filhos e seis netos...”
Shizo morreu em Tamana, aos noventa e três anos de idade, em 1983, dono de um recorde que provavelmente nunca será batido - o da maratona mais longa da história.





5 comentários:

  1. Moacir Pimentel14/06/2017, 12:23

    Wilson,
    Seus posts têm sempre temas interessantes.Confesso que hoje, por um momento, bem ali quando o atleta desapareceu da sua ótima narrativa e da face da Terra , eu temi o pior e pensei na possibilidade dele ter se atirado de cabeça num fiorde (rsrs) ao perceber que não teria condições físicas para persistir até o fim do "caminho". E não se espante! Afinal quando se trata dos sans a hipótese do suicídio vem sim à mente exatamente porque esse é um dos conceitos do "bushido" - o ancestral "caminho do guerreiro" - que não pode ser facilmente deletado da "psique" japonesa tanto que ainda hoje ressurge em alguns lugares inesperados.
    O fato é que lembrei que na primeira década do último século - exatamente à época das Olimpíadas de 1912 - o Japão fervilhava de orgulho imperial, de interpretações nacionalistas do código samurai, esse conjunto único de valores, de honra e dedicação ao dever totalmente incompreensível para nós pobres mortais ocidentais, como pudemos constatar na Segunda Grande Guerra.
    E então me recordei de algumas imagens perversas e/ou escritos inesquecíveis não tanto os dos pilotos kamikaze compondo poemas de morte nos cockpits de seus aviões mas, muito principalmente, dos relatos sobre civis, os homens e mulheres e crianças de Okinawa,por exemplo, que depois de sobreviver a uma das mais cruéis batalhas do Pacífico preferiram se lançar dos penhascos em vez de reedificar a sua frágil cultura nativa incinerada, a exemplo dos míticos guerreiros samurais que não sabiam conviver com a vergonha do fracasso e que, em vez da rendição , escolhiam o auto-aniquilamento.
    Daí os fiordes (rsrs) Fiquei muuuuito satisfeito de saber que, em vez, o prezado Shizo-san simplesmente dormiu para depois mesmo morto de vergonha, ir tratar da vida, casando e fazendo um monte de herdeiros! Que bom que ele, são de corpo e mente, teve uma vida longa e só ultrapassou a linha de chegada com mais de noventa anos, depois de recuperar a "honra" e confirmar a vocação humana : sacudir a poeira e seguir em frente superando limites.
    Abraço

    ResponderExcluir
  2. Moacir, talvez o que tenha salvo Shizo-san do suicídio tenha sido justamente que o governo japonês não era o seu patrocinador, e no conceito olímpico da época os Jogos eram uma competição entre atletas amadores, e não entre países (por certo que alguns países já encaravam isso de modo diferente). Então a vergonha dele era mais para com os amigos que o ajudaram do que para com o Sol Nascente e o bushido...
    Ou talvez ele tivesse um pouco mais de bom senso e os conselhos dos seus hospedeiros involuntários tenham sido bons. Tanto que em 1920 ele estava alegremente de volta aos Jogos.
    Quando você fala dos kamikazes me lembro de Tetsuo-san, o piloto que, após Hiroshima e Nagasaki e a rendição do Japão aos aliados, quando a Rússia aproveitou a situação e declarou guerra ao Japão para se apoderar das ilhas do norte, partiu com seu esquadrão da Marinha Imperial para um último ataque contra os russos... e levou sua mulher com ele no avião.
    Se bem que os kamikaze eram mais um ato de sacrifício do que de desespero. De qualquer modo, difícil para nós ocidentais...

    ResponderExcluir
  3. 1)Adorei o texto, gostei muito de saber a história do atleta.

    2)Eu, místico, logo deduzi: Foi abduzido, levado por alguma espaçonave invisível para outro planeta.

    ResponderExcluir
  4. Francisco Bendl19/06/2017, 01:14

    Meu caríssimo Wilson,

    Quando me convidaste para participar deste teu blog extraordinário confesso que senti não pertencer a este universo cultural que caracteriza o Conversas do Mano, um oásis intelectual de refinadas, sofisticadas e privilegiadas mentes.

    No entanto, lendo os teus relatos tão bem escritos, tão bem narrados, e temas escolhidos que atraem o leitor pelos detalhes e informações, não só agradeço ao convite como também mesmo ausente nesses últimos dias abrir este espaço e ler os artigos publicados, confesso que me ajudam na recuperação da minha saúde, que tanto necessito.

    E, a minha existência nessas alturas, mal comparando com a maratona do japonês, encontra neste blog o descanso natural e necessário para seguir em frente, sempre impulsionada por contos memoráveis e inesquecíveis, e que tens a qualidade indiscutível de escolhê-los com rara felicidade!

    Obrigado, meu amigo, pelo prazer, satisfação e honra de eu poder me manifestar neste espaço tão salutar à cultura e conhecimentos, que agem como se remédios fossem às minhas deficiências físicas e mentais.

    Um grande abraço, meu caro.
    Saúde e paz, extensivo aos teus amados.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amigo Chicão, que bom te encontrar de volta comentando no blog! E que bom saber que o blog pode estar ajudando a tua recuperação!
      Torcemos todos para que te livres dessa pneumonia que te tem atrapalhado a vida, e para que voltes a nos encantar com tuas histórias.
      Um abraço do amigo
      Mano

      Excluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.