Shizo Kanakuri, o único deles que competiu na maratona, era um dos
melhores corredores do Japão, que tinha quebrado o recorde mundial durante as
provas eliminatórias. Para chegar aos jogos teve que viajar dezoito dias,
primeiro de navio do Japão até a Sibéria e depois pela ferrovia Transiberiana,
atravessando a Sibéria e a Rússia, e de Moscou até a Suécia, uma viagem de mais
de sete mil quilômetros de trem. Chegou a Estocolmo tão cansado que precisou de
cinco dias de recuperação para conseguir começar a treinar.
Na manhã da maratona a temperatura era de mais de trinta graus, e os
corredores cobriram as cabeças com lenços molhados para enfrentar o calor.
Trinta e dois deles abandonaram a prova, e o favorito português, Francisco
Lázaro, de vinte e um anos, desmaiou depois de trinta quilômetros, foi
conduzido ao hospital e morreu pouco depois, segundo os médicos de “meningite
induzida pelo calor”.
Na linha de chegada, os juizes iam conferindo a lista de abandonos
anotada pelos fiscais contra os competidores que chegavam com. Mas faltou um -
Shizo, que não figurava na lista, também não chegou.
Os juizes esperaram, esperaram, e por fim desistiram. Comunicaram o
desaparecimento de Shizo à polícia local, que realizou investigações mas não
conseguiu encontrá-lo. As hipóteses mais desencontradas foram levantadas pela
imprensa, mas nenhuma se confirmou. E durante quarenta anos o seu nome figurou
na lista de pessoas desaparecidas de Estocolmo.
Shizo Kanakuri - antes da partida e na linha de chegada - foto publicada em ABC.ES |
Em 1952, no cinquentenário dos jogos modernos, um repórter de um jornal
sueco resolveu recomeçar as buscas. E acabou conseguindo localizar Shizo, que
estava vivendo em sua cidade natal de Tamana, na prefeitura de Kumamoto, no
Japão. como professor de geografia, e que afinal desfez o mistério daquele dia
de 1912.
Quando se aproximava dos trinta quilômetros já Shizo estava tão cansado
e desidratado por causa do calor que só conseguia pensar em parar e encontrar
água para beber. Viu pessoas bebendo numa casa ao lado da estrada, parou e,
como não falava sueco, pediu água por gestos. A família lhe deu água e o levou
para descansar um pouco na sombra, dentro de casa. Shizo se recostou numa cama
pensando em descansar por alguns minutos e voltar à corrida. Seu cansaço era
tanto que só foi acordar no dia seguinte...
Quando acordou, morto de vergonha, não teve coragem de se apresentar aos
juizes e pensou mesmo em não voltar nunca mais ao Japão.
Foi convencido a voltar pelos donos da casa, que lhe deram roupas e
dinheiro e o colocaram discretamente num trem.
De volta ao Japão, Shizo voltou a correr; competiu nos Jogos Olímpicos
de 1920, em Antuérpia, onde foi o 14º na maratona e o corredor asiático mais
bem classificado, e depois nos de 1924, em Paris, onde abandonou a prova. Mas,
incrivelmente, repórter nenhum associou o seu nome ao desaparecimento de 1912; para
o resto do mundo Shizo continuava sendo o misterioso desaparecido. Durante todo
este tempo, a lembrança de não ter completado a corrida o incomodava.
Depois da descoberta do repórter, em 1966 a televisão sueca procurou
Shizo e perguntou se ele gostaria de completar a prova interrompida em 1912.
Shizo foi a Estocolmo, entrou no estádio olímpico e trotou até a linha de
chegada, que cruzou afinal cinquenta e quatro anos, oito meses, seis dias,
cinco horas, trinta e dois minutos e vinte segundos depois da partida.
Entrevistado pelos repórteres, Shizo declarou que “tinha sido uma
corrida bem longa, afinal pelo caminho eu me casei, tive seis filhos e seis
netos...”
Shizo morreu em Tamana, aos noventa e três anos de idade, em 1983, dono
de um recorde que provavelmente nunca será batido - o da maratona mais longa da
história.
A reportagem original
que me levou a escrever este post está em http://www.lepoint.fr/culture/les-mysteres-de-l-histoire-1912-le-disparu-des-jeux-olympiques-de-stockholm-23-07-2012-1488164_3.php
Wilson,
ResponderExcluirSeus posts têm sempre temas interessantes.Confesso que hoje, por um momento, bem ali quando o atleta desapareceu da sua ótima narrativa e da face da Terra , eu temi o pior e pensei na possibilidade dele ter se atirado de cabeça num fiorde (rsrs) ao perceber que não teria condições físicas para persistir até o fim do "caminho". E não se espante! Afinal quando se trata dos sans a hipótese do suicídio vem sim à mente exatamente porque esse é um dos conceitos do "bushido" - o ancestral "caminho do guerreiro" - que não pode ser facilmente deletado da "psique" japonesa tanto que ainda hoje ressurge em alguns lugares inesperados.
O fato é que lembrei que na primeira década do último século - exatamente à época das Olimpíadas de 1912 - o Japão fervilhava de orgulho imperial, de interpretações nacionalistas do código samurai, esse conjunto único de valores, de honra e dedicação ao dever totalmente incompreensível para nós pobres mortais ocidentais, como pudemos constatar na Segunda Grande Guerra.
E então me recordei de algumas imagens perversas e/ou escritos inesquecíveis não tanto os dos pilotos kamikaze compondo poemas de morte nos cockpits de seus aviões mas, muito principalmente, dos relatos sobre civis, os homens e mulheres e crianças de Okinawa,por exemplo, que depois de sobreviver a uma das mais cruéis batalhas do Pacífico preferiram se lançar dos penhascos em vez de reedificar a sua frágil cultura nativa incinerada, a exemplo dos míticos guerreiros samurais que não sabiam conviver com a vergonha do fracasso e que, em vez da rendição , escolhiam o auto-aniquilamento.
Daí os fiordes (rsrs) Fiquei muuuuito satisfeito de saber que, em vez, o prezado Shizo-san simplesmente dormiu para depois mesmo morto de vergonha, ir tratar da vida, casando e fazendo um monte de herdeiros! Que bom que ele, são de corpo e mente, teve uma vida longa e só ultrapassou a linha de chegada com mais de noventa anos, depois de recuperar a "honra" e confirmar a vocação humana : sacudir a poeira e seguir em frente superando limites.
Abraço
Moacir, talvez o que tenha salvo Shizo-san do suicídio tenha sido justamente que o governo japonês não era o seu patrocinador, e no conceito olímpico da época os Jogos eram uma competição entre atletas amadores, e não entre países (por certo que alguns países já encaravam isso de modo diferente). Então a vergonha dele era mais para com os amigos que o ajudaram do que para com o Sol Nascente e o bushido...
ResponderExcluirOu talvez ele tivesse um pouco mais de bom senso e os conselhos dos seus hospedeiros involuntários tenham sido bons. Tanto que em 1920 ele estava alegremente de volta aos Jogos.
Quando você fala dos kamikazes me lembro de Tetsuo-san, o piloto que, após Hiroshima e Nagasaki e a rendição do Japão aos aliados, quando a Rússia aproveitou a situação e declarou guerra ao Japão para se apoderar das ilhas do norte, partiu com seu esquadrão da Marinha Imperial para um último ataque contra os russos... e levou sua mulher com ele no avião.
Se bem que os kamikaze eram mais um ato de sacrifício do que de desespero. De qualquer modo, difícil para nós ocidentais...
1)Adorei o texto, gostei muito de saber a história do atleta.
ResponderExcluir2)Eu, místico, logo deduzi: Foi abduzido, levado por alguma espaçonave invisível para outro planeta.
Meu caríssimo Wilson,
ResponderExcluirQuando me convidaste para participar deste teu blog extraordinário confesso que senti não pertencer a este universo cultural que caracteriza o Conversas do Mano, um oásis intelectual de refinadas, sofisticadas e privilegiadas mentes.
No entanto, lendo os teus relatos tão bem escritos, tão bem narrados, e temas escolhidos que atraem o leitor pelos detalhes e informações, não só agradeço ao convite como também mesmo ausente nesses últimos dias abrir este espaço e ler os artigos publicados, confesso que me ajudam na recuperação da minha saúde, que tanto necessito.
E, a minha existência nessas alturas, mal comparando com a maratona do japonês, encontra neste blog o descanso natural e necessário para seguir em frente, sempre impulsionada por contos memoráveis e inesquecíveis, e que tens a qualidade indiscutível de escolhê-los com rara felicidade!
Obrigado, meu amigo, pelo prazer, satisfação e honra de eu poder me manifestar neste espaço tão salutar à cultura e conhecimentos, que agem como se remédios fossem às minhas deficiências físicas e mentais.
Um grande abraço, meu caro.
Saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Amigo Chicão, que bom te encontrar de volta comentando no blog! E que bom saber que o blog pode estar ajudando a tua recuperação!
ExcluirTorcemos todos para que te livres dessa pneumonia que te tem atrapalhado a vida, e para que voltes a nos encantar com tuas histórias.
Um abraço do amigo
Mano