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Wilson Baptista Junior
Houve um tempo em que essa chaminé que abre o post podia ser vista de
boa parte de Belo Horizonte.
Com mais de cinquenta metros de altura ela era um marco no bairro
Cachoeirinha. Parecia ter sempre feito parte da paisagem e a gente pensava que
sempre faria.
Era a chaminé da caldeira de uma grande fábrica de tecidos. A fábrica
principal de uma companhia que chegou a ter cinco mil empregados espalhados por
três cidades, e a produzir cinco milhões de metros de pano por ano. Eu conheci
essa companhia logo que comecei a trabalhar. Um dos primeiros sistemas que
ajudei a implantar em computador foi um controle de estoque para seu
almoxarifado. Que eu mais o gerente da fábrica tivemos trabalho para conseguir
fazer funcionar porque os funcionários desconfiavam daquela novidade.
Depois passei quinze anos sem voltar lá.
Nestes quinze anos trabalhei em empresas de processamento de dados (era
assim que se chamava a informática naquele tempo, hoje se chama de TI), em
empresas de consultoria econômica, em empresas de projeto de engenharia pesada,
dei aulas, fiz consultoria independente.
Muita coisa interessante. Muitos desafios. Muitas lembranças boas de
trabalhos feitos, de bons companheiros com quem eu tinha feito esses trabalhos.
Mas comecei a sentir que me faltava alguma coisa.
Porque um consultor, independente ou de empresa, trabalha com papel.
Estuda, planeja, calcula, projeta, e produz uma quantidade de papel que depois
é entregue a alguém que vai construir o que ele projetou, e que por sua vez
entrega o que foi construído a outro alguém que vai fazer aquilo funcionar. E
enquanto esse alguém vê o resultado de tudo isso, o consultor volta para os
seus cálculos, sua prancheta, seus desenhos, seu papel.
E eu sentia falta de ver aquilo que eu projetava do lado de cá sair como
uma coisa concreta lá na outra ponta da cadeia de máquinas e de poder sentir
que naquela coisa estava embutida um pedacinho do meu trabalho, um pedacinho de
mim. Mexer na ponta de cá e ver melhorar alguma coisa na ponta de lá.
Então um dia eu deixei a última empresa de projetos de engenharia em que
eu tinha trabalhado. E um dos diretores da fábrica de tecidos, quem em outras
empresas eu já tinha trabalhado para, trabalhado com, sido concorrente,
trabalhado junto, no Brasil e fora dele, e que de tanto tempo atrás até hoje
tem sido um daqueles meus amigos que, como cantou o Milton, é pra se guardar do
lado esquerdo do peito, me convidou para ir trabalhar com ele lá na fábrica.
E quando cheguei lá para ser apresentado ao presidente da companhia, que
depois virou também um desses amigos até que foi embora lá para o andar de cima,
quando eu disse que tinha prazer em conhecê-lo ele me interrompeu e disse: “Eu me lembro dessa voz...” e era o
gerente da fábrica para quem eu tinha feito aquele sistema quinze anos antes...
Vindo de empresas onde o pessoal era sofisticado, viajado, tratávamos
com governo e altos executivos, onde eu e meus colegas todos éramos formados em
pelo menos um curso superior, às vezes nas reuniões falavam-se duas ou três
línguas, tínhamos terminais de computador em nossas salas (foi antes dos
micros), fui para uma empresa de gente simples, funcionários que, em muitos
casos, eram filhos de pais e netos de avós que tinham trabalhado ali também. E
que pensavam que, pela ordem natural das coisas, seus filhos também
trabalhariam ali. Gente de fábrica, no velho estilo mineiro.
E o que mais me impressionou foi como fui recebido pelo pessoal. É
difícil cair de paraquedas, como eu caí, lá em cima, junto da diretoria, numa
empresa tradicionalíssima, um ilustre desconhecido que não entendia nada de
pano passando por cima de todo o mundo e querer que o pessoal antigo goste dele.
Pois nunca me senti tão bem onde eu trabalhava. Trabalhei lá oito anos. Dos
gerentes das fábricas e os gerentes administrativos, passando pelo médico do
trabalho, pelo pessoal das oficinas e do escritório, até a velha senhora que
fazia o café do prédio da administração e o velho faxineiro do escritório, fiz
uma porção de amigos, muitos, literalmente, para a vida toda.
Nesses oito anos esses amigos, do presidente até o pessoal da copa,
fizeram muita coisa boa. Modernizaram as fábricas. Introduziram os
computadores. Aumentaram o mercado de exportação. Abriram o capital da
companhia. Participaram das grandes feiras nacionais, a Fenatec, de tecidos, e
a Fenit, de moda.
Quando a companhia fez oitenta anos, foi escolhida como a Empresa do Ano
entre todas as indústrias brasileiras.
Gosto de pensar que o meu trabalho ajudou um pouco nisso tudo.
Mas um dia os acionistas da companhia se desentenderam. Os grandes
grupos acionários começaram a brigar. Filosofias diferentes, projetos
diferentes, objetivos diferentes. O espírito de trabalhar juntos que a tinha guiado durante gerações
já não valia mais.
Como eu era ligado a um dos grupos rivais, tive que sair. E ficar
olhando, de fora, toda aquela história, todo aquele esforço de mais de oitenta
anos se desintegrar.
A companhia faliu. O que sobrou foi vendido e hoje, muitos anos depois,
os enormes galpões da fábrica estão desmoronando, as vidraças quebradas, os
pátios desertos. A chaminé orgulhosa foi demolida antes que eu saísse de lá,
quando trocaram a caldeira antiga por uma nova em outro lugar.
Dizem que agora tem gente querendo construir um shopping no lugar. Não
sei.
Procurei fotografias das fábricas antigas para mostrar a vocês. Tirei
muitas, muitas, durante aqueles oito anos. Só não consegui tirar uma do alto da
chaminé – fui proibido de subir, tinham medo do mau exemplo. Minha fama na
diretoria não era lá de muito comportado - tá bom que eu era trinta e tantos anos
mais moço e durante as reformas da fábrica tinha me pendurado em lanças de guindaste
para ver os telhados de cima e subido pelas obras acima com a nossa equipe de
rali de moto para produzir matéria de jornal...
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Mas era época do filme, as fotografias ficaram nos arquivos da
companhia, eu não fiz cópias para mim. E hoje, sabe Deus onde, e se, estarão...
Nem na internet achei nenhuma imagem das fábricas. Mas achei nos meus
armários algumas de uma parte muito interessante de lá – uma usina hidrelétrica
que a companhia construiu na Serra do Cipó. Esta, que eu saiba, ainda existe. Produzia
energia que ia da Serra do Cipó para a fábrica de Pedro Leopoldo, e de lá para
a de Belo Horizonte, numa rede de treze mil e tantos volts. Então vou contar um
pouquinho dela pra vocês.
Perto da cidade de Santana do Riacho, do alto da Serra do Intendente, desce
um curso de água que se chama Riachinho. No alto de um paredão de rocha com
mais de duzentos metros de altura foi feita uma represa, que formou um lago.
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A água que escapa da barragem desce serra abaixo por uma garganta de
pedra, alta e estreita. Eu quis entrar pela garganta para fotografá-la, mas
ninguém nunca quis me ajudar a descer nas cordas (ordens do meu amigo gerente
da hidrelétrica, imagino)...
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Mas não é da barragem que desce a água para fazer funcionar os
geradores. Um túnel de quatrocentos metros de comprimento, escavado na rocha,
atravessa o paredão e leva a água dentro dos canos do conduto forçado, que
então cai duzentos e vinte metros até os geradores. Só a descida da entrada
do túnel, para se chegar aos canos, já é uma aventura.
Guardei o retrato de uma polia de ferro por onde passava um cabo de aço,
usado para puxar os vagonetes cheios de rochas durante a escavação do túnel. A
força no cabo era tanta que o cabo de aço estampou na polia de ferro o desenho
de seu trançado.
Do cano a água entra pelas turbinas dos geradores, passa para eles a energia da queda de
mais de duzentos metros, sai por um canal
cavado na rocha e volta a se encontrar com o rio.
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Isso tudo hoje são apenas lembranças. Mas a lembrança melhor que me ficou da companhia foi a de um tempo alegre, em que fazíamos as coisas acontecer, e
o melhor retrato que tenho dela está estampado no rosto feliz deste senhor, de
quem não guardei o nome, músico da nossa banda de música de Pedro Leopoldo, tocando
para nós numa festa de Natal...
1) Parabéns Mano, lembranças são boas, ajudam a indicar que nós somos co-partícipes da Vida que envolve tantas gentes, coisas, fatos e afins.
ResponderExcluir2)Gosto muito de Mnemósine (outros falam Mnemosine)a Deusa da Memória na Mitologia Grega.
3) Seu belo texto também exemplifica a impermanência da vida...
4)Bom fim de semana !
Mestre Antonio,
ExcluirLembranças são boas, algumas são muito boas, e algumas são mais sentidas quando, como você diz, retratam a impermanência das coisas e da vida.
Obrigado e um abraço do
Mano
Prezado Sr. WILSON BAPTISTA JÚNIOR,
ResponderExcluirParabéns pelo bonito Artigo, onde nos contas um pouco de tua brilhante Vida Profissional como um dos Pioneiros Engenheiro de Processamento de Dados, Programador, Consultor... TI, e Administrador.
Como não ser otimista com o futuro do Brasil, quando o senhor nos conta resumidamente a história dessa grande e centenária Companhia de Tecidos Mineira, cuja elegante chaminé da caldeira da Fábrica Matriz no Bairro de Cachoeirinha Belo Horizonte - MG, aparece na foto, da belíssima Usina Hidro-Elétrica da Serra do Cipó que energizava o complexo de + de 5.000 Empregados e que produziam + de 5 milhões de m2/Ano de Tecidos.
Se há +- 100 anos atrás o competente Povo Mineiro já produzia Obra de Arte como essa Empresa Industrial, quanto mais agora.
E não importa que essa centenária Empresa Industrial hoje, tenha mudado muito, tenha menos Empregados e até tenha parado de produzir Tecidos, porque ao longo do tempo ela foi uma sementeira de outras Empresas.
Como não admirar a competência Industrial do operoso Povo Mineiro que há tanto tempo atrás já fez Obras deste porte. E produziu Energia Hidro-Elétrica de baixo Custo como essa eficiente e belíssima Usina da Serra do Cipó que a julgar pelo tamanho dos Turbo-Geradores deve ter Potência firme de pelo menos 60 Mega-Watts.
Mas o mais importante de tudo, como o senhor bem caracteriza era o Bom Ambiente de Trabalho entre TODOS, Diretoria e Trabalhadores.
Abração.
Caro Flávio,
ExcluirSeus comentários são sempre oportunos, bem escritos e muito bem vindos, só espero ver ainda você parar de me tratar de senhor, senão vou ter que começar a trata-lo por exmo. Sr. Dr. Flávio Luiz Bortolotto, e fica complicado :)
A indústria têxtil, principalmente aqui em Minas, foi o começo da industrialização no nosso país. As duas maiores e das mais antigas de Minas eram a Companhia Industrial Belo Horizonte e a Companhia de Fiação e Tecidos Cedro Cachoeira, esta até hoje ainda em franca atividade. Eram concorrentes no mercado mas formadas pelas mesmas famílias acionistas originais, chegaram inclusive, por incrível que pareça, a ter numa época o mesmo Gerente-Geral e, até eu entrar para a Industrial, dividiam o mesmo centro de processamento de dados. A Cedro também tinha usinas hidrelétricas (duas) situadas na mesma região da Serra do Cipó, que tive ocasião de visitar.
O ambiente de trabalho nessas antigas companhias era alguma coisa que dificilmente se conseguirá repetir hoje. Deixou saudade em quem conheceu.
Grande Wilsão (não aprendi a chamá-lo Mano): ao ler o seu texto com extrema atenção, me percebi traído por enorme ponta de saudade e saudosismo! E o pior: não seria este escriba o gerente castrador de suas reprimidas aventuras "canyônicas"? (rsrsrs) Grande abraço, Mano! Betão
ResponderExcluirAmigo Betão, a saudade é minha também... Fizemos muita coisa boa por lá, você bem mais tempo do que eu. E eu gostei muito das vezes em que fui à usina. Revendo hoje, trinta e poucos anos mais velho, as fotografias do canyon pelo lado de fora, penso que talvez fosse você quem estivesse com a razão, afinal :) ... mas bem que naquela época eu quis descer lá.
ExcluirMe lembrei também da colônia de morcegos que vivia dentro da barragem, e de um de seus ajudantes me pedindo, preocupado, que não usasse o flash lá dentro com medo de acorda-los. Bons tempos, muita saudade também.
Fico muito feliz de ver você nos lendo por aqui. Um grande abraço.
Wilson,
ResponderExcluirEu muito apreciei conhecer a velha Companhia de Tecidos Mineira através das suas ótimas fotos e desse texto teclado com o coração na ponta dos dedos. Quem já não viveu um caso sério e estimulante com uma grande companhia com infra e filiais, seguro de saúde, programas de treinamento, cursos de formação profissional, eventos no exterior, equipamentos e ferramentas e tecnologias de ponta? Quem já não deu duzentos por cento de si mesmo ao então emprego da sua vida, aquele que lhe permitia viajar, se globalizar, aprender e enfrentar o desafio de novas funções mudando não de empresa mas apenas de departamento? Quem já não foi posterboy do bordão " nunca deixe para amanhã o que pode fazer hoje", o rei dos emails às duas da matina porque se sentia parte importante de algo maior e por isso trabalhava quinze horas/dia feliz da vida e saía do escritório às vinte e uma horas para continuar falando de trabalho com a galera "motivada" no boteco da esquina? Quem já não experimentou e se embriagou com esse tipo de realização profissional?
Porém o seu post é muito mais que isso tudo, é sobre uma companhia que oferecia aos seus funcionários - até mesmo para o caçula caído de paraquedas do mundo estranho da computação - a alegria da velha cantina, um sentido de comunidade e um sentimento de família. Isso eu acho que não existe mais. Décadas de dedicação e imersão na "cultura" de uma só companhia podem resultar na perda de rumo no mercado no day after depois dos ruídos das "filosofias", da contenção de despesas, da falência, da privatização, da surpreendente demissão. Sou de opinião que hoje é preciso separar as estações e colocar a própria carreira na frente e saber que as companhias não são nossas famílias e priorizar as verdadeiras e equilibrar as lida e vida e aprender a apertar o botão do off depois das oito horas devidas. Tornou-se por demais arriscado amar um CNPJ. Desculpe se me alonguei e/ou me afastei do humor nostálgico do seu belo post.
Abração
Moacir, é bem como você disse. No mundo de hoje, nessa competição feroz onde parece que a busca de eficiência se resume à redução de custos e a da qualidade à eficácia do poder de convencimento do marketing, e onde as pessoas são apenas recursos de produção para serem trocadas ou descartadas conforme a conveniência, não há mais lugar para essas velhas companhias. Nem é mais prudente ficar por muito tempo em lugar nenhum.
ResponderExcluirQuando penso nisso tenho uma sensação parecida com a de quando ando pela minha cidade e vejo as belas casas e seus jardins do século passado sendo substituídos por prédios imensos e condomínios fechados blindados contra o lado de fora, e o trânsito desenfreado transformando as ruas que uniam os vizinhos e onde as crianças jogavam bola e soltavam papagaios em barulhentos canais de escoamento para a massa de automóveis em perpétua correria de um lugar para outro.
Não, não dá mais para "amar um CNPJ". E é preciso saber apertar o botão do off. Mas é pena que não sintamos mais que o nosso trabalho esteja construindo, para além de nosso bem estar, alguma coisa que nos sobreviva. Perdemos aquele pouquinho da sensação que deviam ter os artífices que construíam catedrais…
Um abraço do
Mano
Mano,
ResponderExcluirDiante dessas formas completamente sem forma que temos hoje, pergunto como pode o mundo perder coisas tão significativas em tão pouco tempo. Claro que compreendo a necessidade de as coisas todas se modernizarem, mas não dá para entender como o "novo mundo" tem tão pouco apego às grandes construções, às grandes conquistas que nos trouxeram até aqui.
Seu relato é maravilhoso não só porque é uma parte importante da sua história, mas porque nos lança às nossas próprias histórias de vida, da fonte de nossos aprendizados. Abraço.
Heraldo,
Excluirrespondo com atraso; é sempre uma alegria ver um comentário seu.
Sim, dói-me não ver mais a chaminé e os prédios e as máquinas que foram parte de minha vida e da de tantos que me precederam. E dói-me ainda mais pensar no que podia ter sido, em tudo que queríamos fazer em vez das ruínas de hoje. Mas a alegria da lembrança de ter feito parte, ainda que pequena, daquela história, e ter sido também uma partezinha da vida das pessoas que conheci lá, essa fica comigo.
Obrigado e um abraço do
Mano
MEU PAI ,ARISTIDES MAGALHÃES FERREIRA, AÍ TRABALHOU COMO MÉDICO ATÉ FALECER EM 1957 .
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