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28/06/2017

Títulos Acadêmicos

foto Frederico Busch (veja.sp.abril.com.br)

Heraldo Palmeira
Encontrei Afonso afobado. Obra do acaso em plena avenida Paulista. Afinal, quem vive em Sampa um dia passa por ali. Talvez, por isso mesmo, eu tenha escolhido aquele hotel da Paulista para todas as vezes que estava na cidade.
Fazia tempo que não nos víamos, nós que havíamos sido muito próximos nos tempos em que vivi na cidade pela primeira vez, idos dos 80.
Tivemos tempo para um café no Starbucks ali perto e marcamos jantar para a noite seguinte. Como não poderia deixar de ser, direto no Gigetto velho de guerra, ainda na Avanhandava, com aqueles pães maravilhosos de entrada em seu ambiente enorme e retrô, e repleto de boas histórias da Pauliceia Desvairada.
A certa altura da conversa, pães servidos, azeite e sal à mão, ele reclamou da nova namorada. Bem mais nova que ele, ainda beirando os 30, orgulhosa do mestrado e iniciando os movimentos para o doutorado. Ele não se conformava que ela, que gostava tanto de água com gás, nunca tivesse ouvido falar em Perrier. “Como é que essa mulher não conhece a francesinha verde?” – perguntou-me indignado. “Tem mestrado na USP e vai fazer doutorado por lá!” – emendou irritado.
Tentei ponderar utilizando a lógica dali mesmo da rua Avanhandava. Quem, nessa faixa de idade mais nova, tem idéia do que significou o Gigetto na história do teatro e da melhor boemia paulistana?
Procurei relativizar a chateação do meu amigo me apoiando na mudança definitiva nos costumes, na forma atual de as pessoas se relacionarem com suas preferências. Para nossa geração, os endereços e as marcas dos velhos tempos, que ainda sobrevivem, são como santuários para onde sempre rumamos sem pestanejar. Talvez em busca de reviver certas felicidades adormecidas ou quase perdidas. As novas gerações têm outros interesses. Preferem se guiar apenas pelo que está bombando naquele exato momento. Sem esses nossos vínculos duradouros que provocam até dores de saudade.
“Como pode uma socióloga que se enche de títulos acadêmicos não compreender o cardápio, a decoração dos restaurantes e a própria rua Avanhandava como manifestação cultural fundamental de uma São Paulo cosmopolita?” – Afonso estava irredutível listando os pecadilhos da moça. “Esses meninos de hoje em dia não sabem nada de nada”.
Tentei contemporizar, lembrar a ele que nossa geração era movida por outros sentimentos, outras formas de encantamento. O sistema de comunicação era lento e romântico, muito diferente desse inferno midiático de hoje. Os ídolos do nosso tempo eram muito mais duradouros do que essas celebridades instantâneas e rarefeitas de agora, que nunca sabemos direito quem são.
Quando, agora, teríamos uma Marilyn Monroe povoando os sonhos e os desejos mais secretos de todos os homens do planeta durante anos a fio? Não vivíamos esse frisson de milhares de novidades por minuto que temos hoje. E nos dávamos o luxo de criar mitos deslumbrantes e duradouros. Mas ela também derrapava, tinha seus engasgos culturais. Ninguém se importava com isso.
A mesma deusa que foi sondada pelo armador grego Aristóteles Onassis para casar com o príncipe de Mônaco. O mesmo Onassis que queria manter sua hegemonia nos negócios a partir daquele paraíso e tratou de resolver o problema do solteirão Rainier.
Como não fazia a menor idéia de onde ficava o principado e queria saber se “o tal de Mônaco” tinha dinheiro, perdeu a vaga para uma atriz então relativamente conhecida chamada Grace Kelly. Americana, católica. E um pouco mais culta.
Afonso manteve silêncio absoluto me ouvindo desencavar essas passagens antigas. Parou de se queixar da namoradinha, quase doutora da USP, entretido com historietas que só interessavam a dois homens de meia-idade em crise de saudosismo como nós.
Marilyn, sabemos hoje, andou pela sarjeta desde cedo, enfrentou vícios, ansiedade, depressão e morreu entupida de remédios no meio de uma luta sem saída entre Norma Jean, a dilacerada, e Marilyn, a deusa decadente do cinema.
Marilyn, com o mundo aos seus pés, não sabia sequer o que era Mônaco, quanto mais onde ficava. E a gente condescendia. Por que nossa quase doutora da USP não pode ignorar a Perrier? Quem sabe, não conhece a Evian? Sem gás, mais encorpada, garrafa transparente... E daí?
Disse a Afonso que nossa guerra contra a ignorância desses acadêmicos de papel está perdida. Na verdade, temos algo muito mais importante para nos aborrecer doravante, no momento em que nossa geração já está avistando os primeiros sinais da velhice.
Por ora, vemos apenas seus contornos e fazemos o possível para que permaneçam distantes. Mas começamos a adoecer definitivamente – artroses, visão comprometida, insônia, pequenas dificuldades para fazer coisas até então tidas como simples...
É como se mudássemos de emprego para conviver com novos colegas de cotidiano, que atendem por nomes inconvenientes como consultórios, exames, fisioterapia, dieta, controle de taxas, remédios, exercícios físicos chatíssimos...
Afonso e eu nos despedimos fervorosamente, sem saber se nos veríamos de novo. Tínhamos pela frente algo muito maior do que uma simples água engarrafada, esse prazer mundano que sai na urina.
Queria muito saber o que meu amigo pensa a respeito de, depois de tanto tempo, o Gigetto ter escorregado do seu reino para uma ladeira do Bixiga. Eu me limitei a uma última visita de despedida. O velho lugar de antes está perdido. Sobrevive nos fantasmas da memória.


20 comentários:

  1. 1)Parabéns Palmeira !

    2)Boa crônica, bom cronista.

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  2. Moacir Pimentel29/06/2017, 07:19

    Mestre Heraldo,
    Eu sou sempre surpreendido pela habilidade que tem a sua Bic de transformar qualquer coisa em uma bela crônica na qual nos lemos.
    Ainda que tenha sido eu a me viciar na água mineral predileta dela: Pedras Salgadas! (rsrs)
    À beira dos nossos invernos já estamos carecas de saber que não se pode encontrar em um corpo de trinta anos - que ainda não precisa de manutenção! - a nossa cabeça cinquentona - ou sessentinha - e os nossos quilômetros rodados. As formas de "encantamento" da geração dos nossos pais eram o livro , o rádio e o cinema e daí as Marilyns eternas que eu só aprendi que se chamava Norma Jean quando escutei a canção do Elton John. Nós vivemos a era da televisão e nela as "celebridades instantâneas" se tornaram cotidianas e se multiplicaram e para poder lembrá-las hoje as dividimos em décadas.
    É realmente como se "mudássemos de emprego e tivéssemos que conviver com novos colegas de cotidiano". Mas isso não é de todo mal. Na música, por exemplo, não tive que abrir mão daquela grande que herdei de meus pais para curtir os Beatles, Stones, Pink Floyd, as canções dos exilados, Milton, Brant, o rock dos anos 80 nem abdiquei de nada disso para aprender a gostar de algumas das referências dos meus filhos - "tá ligado?" - como Gun N' Roses, U2, Foo Fighters, Evanescence, Adele, Tiê e o Teatro Mágico que canta coisas como:
    "Por que a gente é desse jeito criando conceito pra tudo que restou?
    Sempre encontro sorriso e o meu paraíso é onde estou"
    Abração

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    1. Heraldo Palmeira29/06/2017, 17:20

      Caríssimo,
      Imagino que, pelo amor descrito em vários trechos das suas letras, o sal das pedras não foi suficiente para impedir o doce da vida inteira.

      Tentei dizer ao meu amigo que somos de uma época em que quase todos tinham interesse em aprender, havia uma curiosidade sobre os tais conhecimentos gerais. Hoje, isso é algo até difícil de ser compreendido pela galera. Ponto. E teremos de conviver com isso sem maiores sofrimentos, exatamente para não sofrermos.

      Como você bem enumerou, nossas fontes de encantamento eram poucas, mas tinham grande força exatamente porque a missão era hercúlea: informar o mundo.

      Se os valores mudaram e estamos no mesmo mundo, é indicado tentar acompanhar e ter paciência. Abração.

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  3. Olá Heraldo,
    Seu amigo de tempos e belas letras como as suas, abusado que só, chegou primeiro e disse tudo. Fazer o que?
    Você escreveu: ...são como santuários para onde rumamos sem pestanejar. Talvez em busca de reviver certas felicidades adormecidas ou quase perdidas....nossos vínculos duradouros que provocam até dores de saudade."
    Exato e lindo! Posso usar? Darei os créditos, certamente.
    Até mais. E mais.

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    1. Heraldo Palmeira29/06/2017, 17:25

      Olá Ana,
      Esse amigo aí de cima é um danado.
      Pode usar à vontade. Fico honrado. Até mais. E mais.

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  4. Divertido. Ágil. Bem composto, com gosto de despedida sem saudosismo. Sim, os tempos mudaram e n´~os mudamos com o tempo. Fazer o que? Parabéns, uma vez mais. Texto muito vivo falando de coisas praticamente mortas.

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    1. Heraldo Palmeira29/06/2017, 19:48

      Ana,
      Sem dúvida, precisamos estar de olhos bem abertos. Já dizia a canção popular: "É preciso estar atento e forte/não temos tempo de temer a morte".

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  5. Heraldo, me vi em você. PARABÉNS!!!

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    1. Heraldo Palmeira29/06/2017, 19:49

      Meu caro,
      As coisas estão por aí, em todos os lugares, em todos os espelhos. Ainda bem que conseguimos enxergar.

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  6. Grande Heraldo!!!
    Estou recebendo a visita de meu Filho Jonathan e não resisti a repassar para ele o link de teu artigo e pedi para comentar, gostando ou não.
    A cada vez que leio você, pressinto o prazer que será ler teu(s) livro(s).
    Não tô cobrando ... só lembrando ...

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    1. Heraldo Palmeira29/06/2017, 20:04

      Emerson,
      Obrigado por tocar para adiante o meu texto, na direção de um jovem.
      O livro segue em seu tempo de espera.

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  7. Palavras sábias! Meu pai me indicou sua crônica!
    Obrigado pai Emerson Medeiros

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    1. Heraldo Palmeira29/06/2017, 20:04

      Jonathan,
      Espero que tenha aprendido o caminho e venha por aqui mais vezes. Abraço.

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  8. Meu grande amigo Heraldo
    Li seu texto após regressar de um almoço com meus colegas da turma de fundação do Colégio Naval,em 1951 !!!!!.... Ele ocorre todo mês no Departamento Esportivo do Clube Naval, na ilha do Piraquê, uma joia na espetacular lagoa Rodrigo de Freitas, à sombra do Corcovado, nas proximidades do Jardim Botânico e do Jóquei Clube.
    Esse ritual é cumprido por todas as turmas da Reserva, nos diferentes salões do Clube, às vezes na sede da Rio Branco, ou no Departamento Náutico, na enseada do Charitas, em Niteroi, outro lugar de beleza estonteante.
    Como bons marinheiros machistas, as mulheres só comparecem em ocasiões especiais, ou então são filhas que vêm buscar os mais velhinhos, que não dirigem mais...
    Obviamente, esse o é caso da minha turma.Éramos mais de trezentos e, hoje, os bravos sobreviventes somamos menos de cento e quarenta, o mais moços com mais de oitenta anos e os mais velhos acima de oitenta e cinco.
    Heraldo, conto esses segredos para lhe consolar da melancolia de seu artigo. Você ainda tem muito tempo para nos alcançar. Aliás, recentemente, incluímos em nosso Regulamento a meta de atingir cem anos(como bons militares, sempre planejamos o futuro e arrumamos a cama de manhã).
    Quem chegar lá, terá direito de gastar o dinheiro acumulado das mensalidades de nossa Associação (temos livro caixa) em dormir uma noite com uma linda virgem, com a obrigação de não tocá-la...(vide Gabriel Garcia Marques)
    Um grande abraço
    Domingos

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    1. Heraldo Palmeira05/07/2017, 00:30

      Almirante querido,
      E tratem de ficar me esperando.
      Sim, temos somente essas confrarias para não perder de todo o contato com aquele mundo que conhecemos antes. Grande abraço.

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  9. Querido HP, seus textos são um bálsamo a curar esses dias sem perspectiva. Obrigado, sempre! Receba meu carinhoso abraço.

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    1. Heraldo Palmeira05/07/2017, 00:31

      WA,
      Ainda bem que temos palavras e ações para buscar perspectivas. E apesar de tudo, elas estão por aí, acredite. Abraço.

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  10. Como sempre, a leveza de suas crônicas ilumina minha semana.
    Não pare de saciar nossas ansiedades.

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    1. Heraldo Palmeira05/07/2017, 00:32

      Antonio,
      Que nunca faltem as palavras porque elas são alimento. Abraço.

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