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02/06/2017

Amores Incertos


imagem http://allthetropes.wikia.com/wiki/Blue_Eyes

Heraldo Palmeira
Eu apenas queria que você soubesse da minha vontade de dizer tanta coisa, escrever outras tantas. Algo que tivesse cores, nomes. Algo que me curasse de noites insones que jamais quis dormir. Coisas que nem sei dizer, aquelas certas coisas que devem ficar no silêncio. Como as velhas canções que terminam, mas nunca param de tocar.
Coisas do tempo de lua e estrela, da ternura que não se envergonhava de se envergonhar por timidez juvenil. Da flor do cáctus sob o sol de janeiro, fevereiro... qualquer sol. Das maçãs que amanheciam alvas como se meninas em flor fossem. Dos bandolins que ninguém mais ouvia, porque não havia mais ninguém além de nós.
Ah!... Eu queria poder lhe dizer tantas coisas, doces como você, que eu não disse porque não disse, porque não ouvi. Porque não deu tempo. Porque não soube do que teria havido se desdito fosse, se dito houvesse sido. Onde está você agora? Onde fomos parar?
Teu zói é a flor da paisagem
Sereno fim da viagem
Teu zói é a cor da beleza
Sorriso da natureza
Azul de prata, meu litoral
Dois brincos de pedra rara
Riacho de água clara
Roupa com cheiro de mala
Zóim assim são mais belos
Que renda branca na sala
Quem vê não enxerga a praia
Teus zói no fim da vereda
Amor de papel de seda
Teus zói clareia o roçado
Reluz teu cordão colado
Que renda branca na sala...
Nóis no lençol de cambraia!
Ah!... O tempo do vento nordeste soprando pleno, sem temores, sem madrugadas interrompidas. A música na vitrola. A toada dos afagos sorrateiros, certeiros sob a luz das estrelas tremeluzentes na direção do dia. Arrebatadores, sem dó nem piedade, como o mar se atirando nas pedras, carinho selvagem da natureza. Amor de papel de seda.
Açoite que nunca termina até a maré baixar e revelar a quietude da areia molhada, que vai secando para se espalhar por todos os ventos da rosa dos ventos. Desmantelando os pontos cardeais e colaterais, desviando as direções planejadas, desarrumando a razão. Escrevendo outra história em mal traçadas linhas. Em passos firmes e tropeços.
Onde estão as crianças que fomos, querendo ser adultas? Que bobagem tentar apressar aquele tempo para ver o que se passaria no amanhã! Para que tentar conhecer antes este agora que ainda era futuro, para, neste futuro que é presente sem futuro, sentir tanta vontade de voltar para aquele passado, que era o presente que a gente encurtou por impaciência?
Crianças nos claros da tarde
Cachorros na boca da noite
Os galos nos dentes do dia
Cada desejo é um açoite
Eu nunca volto nem vou
Apenas sou
Aberta aquela janela
Este peito estrangulado
O que não digo me queima
Não satisfaz o falado
Não te odeio nem te amo
Apenas chamo
Viaja o vento nordeste
Cavalo de meu segredo
Se estás comigo distraio
Se vais, eu morro de medo
Eu não me lembro nem esqueço
Adormeço
Não sei em que ponto sua mão escorregou entre os meus dedos, onde deixamos de sentir nossos cheiros, nos perdemos de vista e do futuro que poderia ter sido. Por mais que insista em lembrar, não sei. Não vi, não vejo, não verei o elo que se quebrou. Há uma bruma em meu olhar, que chegou no frio que a chuva trouxe batendo na janela.
Quis, quero, quererei vencer o medo de dobrar a esquina que sempre me paralisou. Ali estava o futuro que eu não quis encarar por timidez juvenil. Ali está o passado que perdi por sensatez pueril.
Por mais que se tente escapar, a vida é precisa. Nas dores, nos risos, no cortejo pelas veredas, nos sussurros que incendeiam o coração. Era assim que tinha de ser. E foi! E vai até o próximo será. Como terá sido quando eu estava no seu lábio tocando o botão vermelho, quase flor. Nosso mistério. E seguirei pela vida sendo. Ouvindo seu pensamento. Mudo. De lugar. Não falo. Dou de ombros ao grito sufocado. Contradigo e acato. Desacato conformado. Amenizo.
Neste exato momento em que você me chega escrita, estou ouvindo o seu movimento suave. Aquela canção, enquanto escrevo tudo que você reconheceria imediatamente como louvor ou réquiem que tanto podem ser. Um ou outro.
Eu precisava escrever. E escrevi pelos amores que não dão certo porque são fortes demais, líquidos e certos. Por mim. Pela distância e pelo tempo que passou. Por tudo que houve, por tudo que não houve e por tudo que haverá até terminar tudo. Ou não.
Daqui a alguns dias serão dias que passarão, que podem ser para sempre ou nunca mais. Nada demais, haverá o amanhã como houve o ontem. É certo que o hoje mata de dúvida entre o ir e o não ir. Adormeço. Quem sabe eu sonho? Assim, amanheço.
(*) Dedicado a Fulano – que não tem nome porque cabem todos os nomes –, velho amigo, que chorou comigo seu amor incerto, com dor e esperança. “Haverá”, eu disse. E calei. Não sei se por sofrimento ou sossego.
(**) Trechos de Flor da paisagem (Robertinho de Recife-Fausto Nilo) / Vento Nordeste (Sueli Costa-Abel Silva).


22 comentários:

  1. Francisco Bendl02/06/2017, 09:07

    "As mulheres que não eu tive", ontem, "Amores Incertos", hoje ... mas este blog está sendo palco de confissões até antes guardadas como segredo absoluto!!!

    Brincadeiras à parte, mais uma vez Palmeira nos brinda com um texto primoroso, arrebatador, pois aborda o amor.

    Meus aplausos efusivos pelo belo artigo.

    Um abraço.
    Saúde e paz, Heraldo Palmeira

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    1. Heraldo Palmeira03/06/2017, 15:01

      Bendl,
      Não fosse o amor assim, tão incerto, que graça teria a vida? Ouvi o amigo Fulano ao redor de uma mesa de bar, cercado de cervejas, suficientes para ambos nos embriagar de lembranças. Inclusive de futuros. Incertos como os amores. Abraço.

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  2. 1) Parabéns Palmeira. Li poesia em forma de prosa. Palavras caudalosas. Significados jorram sentimentos vários. Construiu um belo edifício literário. Arquiteto da Boa Leitura !

    2) Bom fim de semana !

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  3. Olá Heraldo,
    Belo texto, muito poético e um pouco triste!
    Parabéns.
    Até mais.

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    1. Heraldo Palmeira03/06/2017, 15:03

      Ana,
      Um amor que não tenha seu pingo de tristeza não será amor. Ele faz poesia, mas também sabe machucar. Extrato da vida, feita de vales e colinas. Obrigado. Até mais.

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  4. Lindo texto.
    Realmente um pouco triste... mas como falou não existe amor sem um pouco de tristeza... faz parte da vida.
    Um grande abraço.

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  5. Belo texto, tristeza misturada com vontade de acertar, sentir e desistir. O ser humano não gosta muito de um amor certo. Parece que tem que ser inseguro.O prazer e valorização do amor vem com mais emoção. Embora também por curto tempo. A dúvida continua.

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  6. Nas linhas embebecidas de lucidez, onde a realidade aprisiona-se a um universo de constatações fáticas, vemos surgir a beleza nos versos bem traçados que revelam os amores incertos. Eraldo escreve de forma clara, poética e com uma graça, a qual nos faz pertencer, invariavelmente, ao texto. Somos todos nós personagens da sua criação literária. Muitas vezes nos vemos ali, partícipes do seu discurso poético. É imprescindível viver a leitura, no seu sentido mais puro e contextual. Esses escritos fazem, sempre, com que busquemos novas rotas, e novos mergulhos num universo tão particular, e ao mesmo tempo tão público. Parabéns Eraldo Palmeira .

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  7. *Ops Parabéns Heraldo Palmeira

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    1. Heraldo Palmeira04/06/2017, 23:53

      Obrigado. A crônica tem essa capacidade de juntar histórias que passam e se tornam a história coletiva.

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  8. Como sói acontecer, mais uma pérola do colar de textos do meu querido HP.

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    1. Heraldo Palmeira04/06/2017, 23:54

      WA,
      A velha e boa sequência da vida rodando pelas esquinas e mesas de bares. Nada além. Abração.

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  9. Eniio de Góes04/06/2017, 14:20

    Maravilhoso!.. Simplesmente... maravilhoso.

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  10. Adecimo De Lucca04/06/2017, 22:15

    Muito bom Heraldo. Parabéns!

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    1. Heraldo Palmeira04/06/2017, 23:55

      Homem das imagens, obrigado.

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  11. Como sempre, um brinde à arte de escrever, a ponto de nos teletransportar ora para o passado, ora para o futuro.
    Fantástico"

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    1. Heraldo Palmeira05/06/2017, 19:56

      Caro Antonio,
      Enorme prazer em ter sua leitura e comentários. Que a palavra escrita siga assim, mapeando nossos passos.

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  12. Nesse vc de superou.

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  13. Wilson Baptista Junior06/06/2017, 10:18

    "Onde estão as crianças que fomos, querendo ser adultas? Que bobagem tentar apressar aquele tempo para ver o que se passaria no amanhã! Para que tentar conhecer antes este agora que ainda era futuro, para, neste futuro que é presente sem futuro, sentir tanta vontade de voltar para aquele passado, que era o presente que a gente encurtou por impaciência?"
    A vida não para, segue o seu curso, e, como o Moacir nos mostrou gravado pelo Oleiro, " o futuro tem um coração antigo". E quanto mais andamos para esse futuro, maior é a parte de nossa vida que é passado. Talvez por isso essa nostalgia que em algum ponto todos sentimos, dos tempos quando para nós não havia passado, havia apenas o presente e o futuro não tinha fim...

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    1. Heraldo Palmeira07/06/2017, 11:14

      Caro Mano,
      Avançar nos anos nos ajuda a compreender esse extraordinário mecanismo do passar do tempo, no qual a gente é ator sem controle do próprio papel. É fascinante! Abraço.

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