Ana Nunes
A noite
redonda de lua clara se fecha em dia de bagunça. Sol branquinho, flores frescas
e pão quente cheirando na padaria.
Dia de
Bazar.
A
primeira luz se faz feixe pela fresta da janela e brilha nas contas coloridas.
Pedras presas em cordões de couro, correntes de elos pequenos com barulhos
delicados. Um colar de brilho falso quem sabe procura por uma vênus reclinada
na espera ilusória do seu grande amor? Formas modernas penduradas num cabide
antigo e madeira clara, grande, pesado, quase desajeitado. O velho e o novo. O
ontem e o hoje. Eu e você.
Nas
araras roupas democráticas pequenas e grandes, curtas ou compridas, sem
preconceitos partilhando o mesmo espaço. Na desordem dos cabides “meu casaco
enlaça o seu vestido” e não são mais o meu e o seu, são de quem vier, são de
quem quiser. Mas carregam histórias, talvez uma lágrima escondida e seca na
dobra do tecido ou um beijo carregado de paixão. Quem saberá dizer?
Balança
triste o jeans rasgado que solta fios compridos no esforço inútil de juntar as
bordas.
A saia
plissada traz ainda um pouco de música da última festa e a camisa de renda a
saudade de um perfume.
A jaqueta
preta, de couro macio, tem franjas vivas se ajeitando no espaço apertado. O
casaco de camurça ferrugem tenta acenos irresistíveis.
Vestidos
longos de duas ou três saias vaporosas, que se sobrepõem fazendo sombras inesperadas
e farfalhares sussurrantes. Alças finas em memórias de ombros desnudos.
Lenços
delicados esperam impacientes por pescoços outros, para cobri-los e enfeitá-los.
Eles trazem notícias de Paris, New York e até do Oriente em “bordados e fiados”
em formas de amebinhas exóticas. Na aragem da manhã se esticam no desejo de um
abraço.
As
pashminas enroladas, dobradas, macias e sedosas sequiosas do agasalhar.
Cintos
que apertaram cinturas tantas, finas, largas, fofinhas... não importa, se se
comportaram bem em seus furos espaçados.
Sapatos
despudorados e oferecidos, querendo logo saber dos caminhos a percorrer, portam
sonhos dos antigos donos. Outros, novos, de solas impecáveis, curiosos dos pés
e dos passos.
As bolsas
no cabideiro branco tagarelam sem parar. Se exibem num fictício concurso de
beleza, se expõem, gritam e soluçam.
Que
carregaram elas de tão emocionante? Cartinhas de amor oculto, bilhetes furtivos
, um escandaloso batom vermelho, ou contas a pagar? As chaves de uma casa
acolhedora? Ou balinhas doces para momentos amargos? Nunca saberá a nova dona
que outros pertences trará consigo.
Tem porta
retrato de infeliz vazio se não porta nada. E livro de arranjos florais para um
almoço formal ou apenas um chá das cinco ao por do sol ou um jogo de buraco.
Sei lá, são tantas horas desejadas!
Uma
borboleta aprisionada em pedra verde abre a enfiada de anéis.
Tem jarro
do Sobral e jogos premonitórios.
E a manhã
acaba de acordar. O sol sobe e invade a fresta que já é uma janela e uma manhã
inteira e um dia.
As coisas
no bazar cheias de estórias e notícias já não cabem em si. O mundo parece
suspenso como um suspiro não suspirado ou um espirro contido no tiquetaquear
insano do relógio inocente.
De
permeio passa um gato devagar, observador, orgulhoso, soberbo no seu
inigualável casaco de pelo cinza.
Tempo de
começar. Tempo de bazar.
Ah... se
os homens pudessem nos ouvir nesses momentos! e desfrutar um pouquinho dessa
vida eufórica e quase sem sentido. Parvos que são! Ouviriam coisas não ditas e
nos amariam mais nas nossas fragilidades femininas. Divertidas porque humor e
alegria, uma tristeza dissimulada, sonhos não sonhados se escondem entre pedras coloridas e franjas
irrequietas e se amarram nos cordões de couro e nas bolsas assanhadas.
Até mais.
Até mais.
1)Parabéns Ana,que desta vez assinou bonito, nome e sobrenome, o belo trabalho.
ResponderExcluir2) Bico de pena com ares de charge e/ou cartum. Vc pode investir nessa área...
3)O texto é poesia em forma de prosa.
4)Bom domingo !
Olá Antonio,
ResponderExcluirFoi você que me alertou para a assinatura.
Gratíssima por tudo, elogios doces como bala de caramelo.
Até mais.
arrependida de não ter ido ao bazar...
ResponderExcluirSeus desenhos são perfeitos e o texto pura poesia, amei !!
Olá prima querida,
ExcluirPena mesmo!
Esqueci a máquina fotográfica e não pude captar flagrantes...pena também!
Você sempre elogiosa. Obrigada. Um beijo.
Minha cara dissidente e notável escritora,
ResponderExcluirMesmo doente eu não poderia deixar de te parabenizar por mais este texto primoroso, que retrata com perfeição a desorganização "organizada" feminina, que somente ela entende as suas arrumações.
Artigo com detalhes extraordinários a respeito do universo que cada bolsa contém, e como são guardadas nos armários e guarda-roupas, a descrição desses objetos é feita com humor sutil e refinado, evidenciando talento e vocação à arte da escrita, e pelo seu elevado nível narrativo.
Humildemente eu sugeriria, Aninha, que escrevesses um livro com essas crônicas, artigos, ensaios - não importam os nomes -, de modo que teus leitores e admiradores pudessem tê-los condensados e deleitarem-se com a prosa e poesia tão magistralmente registradas neste blog não menos extraordinário.
Um forte e amistoso abraço.
Muita saúde e paz, extensivo aos teus amados.
Olá amigão dissidente,
ExcluirObrigada pelo comentário. Fiquei pensando no seu conselho e cheguei à seguinte conclusão: como rebelde, dissidente e meio doidinha, quero ser uma escritora panfletária, com os meus escritos em folhas soltas voando ao sabor do vento, sem eu saber onde vão parar e com quem vão conversar.
Já escrevi um livrinho de poemudos, Inteira aos Pedaços, no desejo egoísta de me fazer mais conhecida pelos meus. Duas edições esgotadas, uma de dez volumes e a outra de cinco. Mesmo esse foi feito em folhas soltas guardadas em caixinha amarrada com fita. Copiei descaradamente do Manoel de Barros, sabe?
Se consegui meu objetivo egocêntrico, não sei. Mas fiquei feliz.
Belo domingo para vocês. E muita saúde.
Donana,
ResponderExcluirUm texto delicado e cheio do seu espírito. Confesso que, pelo menos no meu planeta, a "balbúrdia" quando rola não é nada silenciosa. Quando eu era menino tinha bazar de Natal mas eram proibidos para os de Marte. Pudera! As senhoras decididamente não lidam com roupas e sapatos e que tais com a indiferença que fazemos nós. Tem mais. Acho que nesses ambientes e momentos elas não querem os seus homens por perto. Antigamente quando as curumins eram miúdas as lojas até que eram parques de diversão:
-"Tem desse vestido pra mulher pequena?" (rsrs)
Hoje acho que o bazar virou brechó. Mas tudo é a mesma coisa: um universo compartilhado por mãe e filhas para além da minha pouca pouca noção masculina. O discurso oficial é que elas vão lá porque são contra o consumo e o excesso , contra as coisas da moda e a favor do desapego e para comprar roupas mais baratas em tempos de crise. Mas não é nada disso e sim algo muito feminino, a caça ao tesouro delas. A verdade é que as senhoras simplesmente adoram tocar e provar tudo e se fantasiar e mexer nas bugigangas e conversar sobre como as peças de segunda mão, que já não fazem mais sentido para outras mulheres, poderão "combinar" com as roupas infinitas que já têm entulhadas nos guarda-roupas.
Confesso que viajando a coisa pega e que às vezes fujo desses lugares como o diabo da cruz e que geralmente elas me contam fora dessas e então lá vou eu todo feliz para os "alfarrabistas" onde sim penso de onde teriam vindo os meus amigos livros. Tudo bem que é divertido, de vez em quando, dar uma espiada nos chapéus e bengalas e nos discos de vinil antigos e que aprovo todos os lugares onde se é feliz. Mas não identifico na real a ausência do prazer de comprar e a linda poesia dos seus textos e desenho que bebem do passado para conjugar o presente de um jeito completamente novo e seu.
"Até mais"
Olá Moacir,
ResponderExcluirJá disse Adélia Prado que as poesias estão no ar, àa vezes a gente estende a mão e pega alguma.
Assim penso que é.
Como assim escuto coisas das coisas, elas me falam. Falam de suas estórias e é irresistível não ouvir. Por isso falei delas antes do Bazar abrir, como se estivessem vivas. E para mim estavam, na expectativa, tensas , curiosas e desejosas.
Penso também que você tem uma alma feminina (não toda, espero!) porque só assim descobriria nosso segredo: " a caça ao tesouro, o tocar, o provar e o fantasiar".
Poesia é o que você escreveu sobre minha escrita!
Grata, grata, grata.
Até mais.
Como sempre incrível.
ResponderExcluirOlá Tita,
ResponderExcluirDe novo fico feliz que tenha gostado!
Obrigada. Um abraço para você.
ResponderExcluirSensacional, divertido, poético,alma de artista e tantos outros maravilhosos adjetivos, para quem ainda não conhece de fato e de verdade esta linda pessoa que convive em meu coração. Não tenho a oratória do chicão e nem do Moacir e tão ´pouco a leveza do Antônio mas tudo que ela toca é coração. beijocas !
Anna Paula
Caramba, menina! Chegou de vez e chegou com tudo. E já está íntima dos íntimos do blog... Garota perigosa! Beijocas mil para você!
ResponderExcluirPrezada Sra. ANA NUNES,
ResponderExcluirComo não admirar a sua bela Literatura. Que criatividade, bom humor e harmonia. Genial sua descrição dos artigos do Bazar, e muito bonito o desenho (Quadro) de sua Autoria que encabeça o Escrito.
Pedras presas em cordões de couro, raras roupas democráticas, saias plissadas, jaquetas de couro, vestidos longos, lenços delicados, Pashminas enroladas ( aqui Googlei e descobri que são grandes lenços de pura lã de Cashemere que se usam quase como cachecol - esconde pescoço), cintos bem comportados, bolsas tagarelas, porta retrato infeliz vazio, enfiada de anéis...
"De permeio passa um gato devagar, observador, orgulhoso, soberbo no seu inigualável casaco de pele cinza".
Faço minhas as palavras da brilhante ANNA PAULA, pois também não tenho a oratória do CHICÃO ( também meu Mestre, a quem desejo pronta Recuperação), e nem do MOACIR ( que nos leva a viajar junto com ele e nos ensina ARTE), e tão pouco a leveza do ANTÔNIO, (com a Filosofia), e também acho que tudo o que a grande Escritora Sra. ANA NUNES toca, é coração.
Dessa vez a Autora Sra. ANA NUNES estendeu a mão no ar, e pescou uma tarrafada de POESIAS.
Deveria publicar.
Saudações.
Obrigada Flávio pelas suas palavras brilhantes!
ResponderExcluirAnna Paula
Olã Flávio Bortolotto,
ResponderExcluirVocê é sempre gentil com as palavras e generoso com os elogios. Se eu toco o coração você toca de volta. Adorei a "tarrafada"!
obrigada pelo comentário.
Até mais.