Paul Cézanne - Une Moderne Olympia - 1873 (imagem wikimedia commons) |
Cézanne abordou pela primeira vez o tema da nudez de uma prostituta
inspirado pela e em resposta à Olympia de Manet, mas com as cores escuras, dos
antigos mestres e de Delacroix, Daumier e Courbet. Mas pouco se sabe a respeito
dessa primeira Olympia do pintor pois pertence a uma coleção particular.
Quando pintou Olympia pela segunda vez o estilo de Cézanne já tinha se
aproximado do impressionismo, com suas cores luminosas e a obra teve uma
execução colorida e brilhante na qual enxergo alguma reminiscência das pinturas
de Fragonard.
Na pintura acima que descreve um servo negro e despido removendo
dramaticamente um lençol para revelar a nudez de Olympia, o contraste entre o
corpo claro e exposto da mulher e a pele escura do criado e, bem assim, do
traje elegante do homem no primeiro plano - que se parece enormemente com
Cézanne! – sentado no sofá a observar a moça, contribui para o caráter erótico
e teatral da cena. Cézanne ao criar esse esboço fez uma interpretação ousada do
que aparentemente seria um cliente visitando uma prostituta.
Durante a primeira exposição impressionista em 1874 essa tela foi
desprezada tanto pelo público como pelos críticos que acusaram Cézanne de ser
uma espécie de louco, pintando em um estado de “delirium tremens”.
E a Olympia de Manet?
Essa sim foi um verdadeiro e grande escândalo!
Manet inspirou-se na Vênus de Urbino de Ticiano para pintar, em 1863, a
sua Olympia. Como o nome da obra indica – naquela época um dos mais comuns dos
nicknames usado pela meninas dos bordéis de Paris era Olympia - a moça já não
era uma deusa, mas uma prostituta, que na tela enfrenta o espectador com um
olhar determinado e provocador.
Desafiando a tradição do nu classicamente idealizado, Manet forçou seus
espectadores a olhar para uma mulher real e contemporânea, descaradamente
confortável e orgulhosa de sua nudez, olhando diretamente para o espectador e
contrariando a convenção artística das mulheres como ícones e deusas da beleza.
Manet foi um pintor treinado na tradição acadêmica mais sisuda, mas demasiado
exuberante para ser condicionado por ela.
Inspirado pelo realismo audacioso de Gustave Courbet e pelas trevas dos
mestres espanhóis como Velázquez e Goya, o jovem Manet foi inevitavelmente
atraído para longe dos temas convencionais, das telas insossas, das cores
suaves, do desenho de sala.
Já na primeira semana do Salão de Arte de Paris de 1865, a Olympia de
Edouard Manet atraiu multidões - dizem que milhares de curiosos a cada dia! –
empurrando-se uns aos outros para chegar mais perto da pintura infame. Relatos
afirmam que vários espectadores foram pisados e que a turba chocada e revoltada
teve que ser reprimida fisicamente para não destruir a pintura.
Seria de se esperar que os críticos de arte tivessem uma visão mais
analítica e sóbria e colocassem a pintura em um contexto mais amplo e histórico
de arte. Mas os críticos eram pagos por jornais para vender jornais e assim
tendiam a escrever para a plateia, embora muitos críticos respeitados e
normalmente independentes também tenham feito críticas contundentes à obra.
Na verdade e em meio à repercussão retumbante a pintura não podia ser
ignorada e, entre dezenas de estudiosos que se manifestaram sobre Olympia,
apenas dois não foram definitivamente hostis.
Para entender a reação é necessário contextualizar, definir a cena em
1865 em termos do ambiente social e das expectativas do prezado público. O
Segundo Império estava motivado a fazer do progresso a sua marca através da
industrialização, das novas ferrovias e de novas invenções, como a fotografia.
Os trens transformaram o conceito de velocidade, as fábricas o de tempo,
e a iluminação artificial possibilitou a vida boêmia. A Paris da época era
vibrante, alegre e estava em constante movimento. Sua ascendente classe média –
os novos ricos! – ditavam o gosto e as diversões.
No entanto, embora tenha havido um ressurgimento do feminismo e de
outros movimentos radicais, como o socialismo e o comunismo, a burguesia
continuava burguesia e sexualmente reprimida.
O reflexo deste cenário na arte resultou no movimento realista, que
buscou retratar o dia-a-dia do homem comum, a banalidade do cotidiano, o
trabalho na cidade ou no campo, a espera pelo bonde ou o trem, a boemia, a
prostituição, enfim, a realidade das ruas no momento presente.
Edouard Manet foi fruto dessas transformações, um precursor que colocou
na sua arte todas as inovações técnicas e temáticas que inspiraram a
modernidade que estava por vir.
Em 1865, os críticos e o público foram simplesmente incapazes de lidar
com tantos fatores novos e por isso eles não conseguiram categorizar a imagem
de Olympia ou analisá-la ou compreendê-la em qualquer contexto. Eles
simplesmente não sabiam o que dizer.
Observando a tela hoje é quase impossível imaginar o porquê dela ter
provocado tanto assombro, confusão e rejeição.
À primeira vista não dá para não se perguntar:
“Mas por que cargas d’água fizeram tanto
alarido a respeito desse quadro?”
Para entender o escândalo sem tamanho causado por essa Olympia de
Edouard Manet em 1865 é preciso olhar bem para a tela. O que vemos?
Uma mulher apoiada em grandes travesseiros em uma cama de lençóis
brancos. Ela tem uma orquídea no cabelo castanho, uma fita em volta do pescoço,
uma pulseira de ouro em seu pulso direito superior e chinelos dourados, um dos
quais caiu de seu pé direito. Está deitada sobre um xale de seda amarela e
atrás dela uma mulher negra parece estar lhe entregando um ramalhete de flores
embrulhadas em papel em branco.
Na parte inferior da cama, perto dos pés da moça, se encontra um gato
preto com as costas arqueadas e a cauda levantada na forma de um ponto de
interrogação invertido. O fundo é o de uma sala escura com cortinas verdes e um
biombo decorado por desenhos aparentados com os japoneses.
A mulher olha para fora da tela diretamente para seus observadores com
um olhar confiante, um pouco entediado. A mão esquerda é mantida firmemente
sobre sua região pubiana com os dedos tensos e em arco em torno de sua coxa
direita.
Muito bem. Sucede que essa Olympia era diferente de qualquer mulher nua
que já tinha sido pintada antes. Ela não era Eva no Jardim do Éden ou Vênus em
uma cama de espumas sobre as ondas do mar. Ela não era uma deusa ou um anjo ou
uma banhista tímida pega de surpresa. Ela era uma mulher contemporânea -
ousada, exposta, em nada alegórica. E ela mudou tudo.
A coisa foi séria! De saída todos ficaram indignados como essa imagem
nua que, com sua pele pálida, quase que se tornava uma com a própria cama.
Tente se imaginar na mirada de um habitante do século XIX diante desse
quadro com a esposa de um lado e as filhas solteiras do outro, toda a família
habituada, é claro, a ver as deusas e ninfas peladas e muitos “ferrolhos” nas
exposições e salões mas não seres alienígenas como essa espantosa Olympia.
À primeira vista Olympia deve ter lhes parecido um mistério. Ela está lá
no seu espaço pictórico serenamente exposta e dura e estrategicamente adornada
- a fita preta, um único chinelo no pé esquerdo, uma flor voluptuosa no cabelo
– incisivamente não fazendo nada, com a mão firmemente bloqueando o sexo, os
cantos externos da boca levemente levantados apenas uma fração de segundo antes
de um sorriso de escárnio.
Seus olhos são sonolentos, de pálpebras pesadas, mas sua postura é
inconfundivelmente alerta. E, se a compararmos com algumas das ninfas do
barroco ou do rococó, ela parece até recatada.
Mas há algo diferente sobre essa mulher. Ela ignora tanto o ramalhete de
flores que a serva negra lhe oferece quanto o gato ao pé de sua cama. Ela não
se encontra no banho ou sonhando ou no espelho ou penteando os cabelos ou a se
vestir.
Uma série de detalhes na imagem fazem com que, lentamente, os seus
observadores processem o significado da cena: a orquídea no cabelo, as joias, o
chinelo, o xale oriental, símbolos de sensualidade à época. A fita negra em
volta do pescoço, em forte contraste com a sua pele pálida também sublinha a
atmosfera voluptuosa.
E de repente caía a ficha do distinto público: Olympia estava ali nua na
cama para fazer simplesmente o que uma mulher nua numa cama geralmente faz:
sexo. Ela era uma amante, ou mais provavelmente uma prostituta – toma lá dá cá!
- e não o Espírito da Primavera, uma das Três Graças e muito menos uma cortesã
refinada como as dos romances.
Quelle horreur!
O fato de que a esta mulher, uma vadia, foi dado um rosto e uma
identidade foi motivo de muita comoção. Olympia humanizou a prostituição, numa
época hipócrita, em que ninguém queria ser lembrado do lado mais sombrio da
vida, aquele no qual a sexualidade e o dinheiro se misturam e se degradam.
Foram escritos dezenas de textos criticando a pintura. Os críticos
estraçalharam a figura feita com fortes pinceladas, e a consideraram uma forma
tosca, infantil e não qualificável como arte. Tem mais.
As pessoas percebiam as similitudes entre as duas obras - a erótica e
politicamente correta Vênus de Urbino e a estranha e despropositada Olympia de
Manet - mas quando verificavam que, no lugar de uma composição clássica de
cores refinadas, a execução e o tema eram contemporâneos, que a nudez ali fora
cruamente representada, diferentemente do suave e belo nu renascentista, elas
caíam na gargalhada, pensando que a coisa toda era uma grande piada, uma
paródia.
Quando entendiam que, em vez, o quadro era para valer, que Manet tivera
a audácia de retratar uma vagabunda como a deusa Vênus... aí a coisa pegava.
Olympia passara dos limites. Ela não era uma deusa coisa nenhuma mas sim
uma mulher da vida, que desavergonhadamente posava nua oferecendo-se aos amantes
da boa Arte.
Degenerada e simiesca foram dois dos mais leves adjetivos com os quais
descreveram a pintura. Se a pele da Vênus de Ticiano fora descrita como
nacarada, a da pobre Olympia tinha a cor dos “cadáveres expostos nos
necrotérios”. Se a mão da Vênus era casta, a de Olympia foi descrita como
crispada, suja, grotesca, numa espécie de contração impudica.
Édouard Manet - Olympia (detalhe) |
E por toda Paris todos discutiam a mão da moça! Pois enquanto a mão
esquerda da Vênus de Urbino parecia seduzir, a de Olympia estava firmemente plantada
sobre o sexo - para ela o instrumento de trabalho e subsistência! - como que a
afirmar que, mesmo dependendo do desejo dos homens, ela ainda estava no
controle daquela parte de seu corpo.
A mão de Olympia parecia bloquear, o que foi interpretado como um
símbolo de sua independência sexual e do seu papel como prostituta, concedendo
ou restringindo o acesso a seu corpo em troca de pagamento. Aquela mão só se
moveria dali por dinheiro!
A antiga deusa de olhar inequivocamente convidativo mas de sexualidade
sutil não podia ser preterida por essa rameira, essa Olympia que era uma
declaração carnal, uma criatura do presente, desafiadora, disponível e
consumível.
Manet não pintou uma mulher ideal, mas uma mulher de verdade, e isto,
então, era inaceitável. A maneira como a prostituta foi pintada, o contraste
surpreendente entre o escuro do fundo e a luz do corpo deitado em uma cama,
chamava ainda mais atenção para o tema da pintura.
Olympia era por demais real, falha, envelhecida, entediada e, pasme,
olhava fixamente para fora da tela, confrontando a todos com um olhar firme.
Isso por si só era ofensivo! Como se atrevia esta mulher a olhar nos olhos de
gente decente? Uma mulher - e muito menos uma da vida! - simplesmente não podia
ser assim tão descarada e olhar diretamente para ninguém.
O mais engraçado é que a composição de Manet não é nada original. Na
verdade é, de cabo a rabo, uma homenagem à Vênus de Urbino. O pintor foi muito
inteligente nas alterações que fez no enredo original. Vejamos quão direta foi a
inspiração na fonte de Ticiano...
As duas figuras foram pintadas languidamente em suas camas: a pose é
mesma, a italiana segurando minúsculas rosas e a francesa com uma orquídea nos
cabelos. As camas e travesseiros e babados são quase idênticos e ambas as
pinturas são voyeuristas. Tudo como dantes no quartel de Abrantes?
Nada disso!
Foram as qualidades de autonomia e auto possessão da Vênus desnuda do
italiano o que atraiu Manet. Porém ele estava decidido a pintar em vez da divina
noiva veneziana uma prostituta parisiense imaginária, que mostra o corpo
disponível não simplesmente como um objeto à venda, mas como dona dele e
negocia-o em seus próprios termos.
A serenidade independente da mulher pintada por Ticiano não seria, é claro,
credível para uma praticante da mais velha profissão do mundo. Algo mais duro e
mais conflituoso foi necessário.
O pequeno cão branco que dorme enrolado, simbolizando a fidelidade, foi
substituído por um gato preto agitado em uma alusão rude do orgão sexual
feminino. Manet substituiu os detalhes: o sono do leal cão pela excitação do
arredio gato, as doces madeixas por cabelos presos e duros. Tudo o que em
Ticiano é macio e cálido, no mundo de Olympia é duro e frio.
No lugar das jeitosas criadas venezianas ao fundo, uma serva negra e
volumosa carrega as flores que, provavelmente, eram um presente do cliente que
não aparece - como na obra de Cézanne - mas que parece estar presente no
ambiente.
A forma que Manet pintou também era incompreensível para os padrões da
época: ele criou uma pintura chapada dando a impressão de que Olympia fora
colada à tela. As tintas não pareciam ter sido misturadas, dando um
aspecto sujo à composição.
Em resposta aos olhares horrorizados o de Olympia simplesmente se recusa
a ser expressivo, afirmando indiferente que a venda do seu corpo podia até
resultar na posse mas nunca na propriedade. Muita coisa havia mudado nos mais
de trezentos anos entre 1538 e 1863 quando tais pinturas foram executadas, e no
entanto os mesmos termos de possessão e propriedade ainda estavam em jogo.
É bem verdade que nós ainda somos desafiados por Olympia: ela é tão
crua, tão evidente e vulgar que nossos olhos não podem passear pela imagem como
se estivessem em um mundo de sonho pictórico. É impossível não ver os
pormenores, se deter nos detalhes, tentando dar um sentido ao todo. É atraente
essa nudez ornamentada por ouro e o pé descalço de onde um tamanco já
escorregou.
Termina-se diante de um mundo onírico, fragmentado por um erotismo que
mesmo em tempos de porno-internet ainda é eficiente.
Agora... essa composição é primorosa!
Veja a forma como a roupa de cama é dobrada, note os travesseiros
brancos com babados, o pano de seda colorido, a maciez das franjas. Eles são a
extensão do corpo da garota. Sua pele é de um brilhante branco total, sem meios
tons, sem nuances de cores, de modo que as transições visuais da luz para
sombra são duras.
E o olhar de Olympia é indizível.
Suas grandes pupilas negras são desiguais em tamanho.
Esta assimetria não foi um erro do pintor. A quase deformação foi
intencional e é reforçada pelos cabelos e a posição da cabeça. É impossível
sacar o foco de seus olhos, ou decidir sobre seu estado de espírito: melancolia
ou desprezo?
Manet planejava minuciosamente seus quadros. Tinha um método espartano
de desenho e pintura, seu estilo foi influenciado pela arte japonesa – note o
painel no fundo - e pela fotografia contemporânea, fazia centenas de esboços e
até pinturas preliminares, buscava modelos que se adequassem à ideia de que ele
tinha conceituado para o tema.
Outra coisa: Manet simplificava a realidade e / ou a natureza em vez de
retratá-las ao pé da letra. Como se as pintasse de forma mais dura,
resumindo-lhe as nuances: os tons eram mais claros, as cores mais vivas, os
valores mais próximos, os contrastes mais variados e profundos.
Na arte, essa concisão de Manet é, ao mesmo tempo, uma necessidade e um
luxo. Dizem que um artista conciso provoca pensamento, enquanto os prolixos
provocam tédio. Talvez pintar bem - ou escrever (rsrs) - seja tirar, cortar, em
vez de acrescentar. Veja como nesta tela, se a gente olhar para a luz e a
sombra principais, o resto vem por si mesmo.
Essa capacidade de síntese do artista era uma meta perseguida, uma dura
tentativa de atingir o conceito que imaginara para o quadro da forma pictórica
mais simples para quem a observasse. Ou seja, talvez ele se recusasse a fazer uma pintura cheia de detalhes, com
qualidade quase fotográfica, por acreditar que o significado do trabalho
poderia se perder devido à sua ênfase na real.
Em vez de pintar uma fotografia da realidade, Manet deformava a pintura
para ser o que ele queria, trabalhava- a de uma forma conceitual, a fim de
obter uma atmosfera diferente e mais dramática do tema.
Ele minimizou as linhas que compõem o corpo de Olympia, o sombreamento
escasso, a boca pequena, o corpo compacto, o pequeno nariz pontiagudo e os
grandes olhos fixos tão despudoradamente.
Nos anos entre 1857 e 1864 Manet fez para essa tela vários esboços de
nus reclinados, em diferentes posições .O fato de que tais esboços não têm
rosto indica que Manet estava se questionando sobre como desenhar a face e é
provável que ele tenha feito vários testes até que encontrou uma modelo
adequada em Victorine.
O artista parece ter pensado que era importante ter um rosto específico
para a sua idealizada Olympia, que jamais poderia ter uma expressão resignada,
mas um olhar corajoso e ousado e ao mesmo tempo enfadado, indiferente, como se
ela estivesse acostumada a ser observada.
Veja como Manet traça de forma diferente as suas figuras em movimento e
as suas figuras estáticas. Suas figuras em movimento são borradas, a fim de
criar a sensação de velocidade, ao passo que suas figuras estáticas nos são
mostradas cruas, afiadas, com contornos bem definidos, a fim de enfatizar a
suas imobilidades.
Em Olympia a única coisa que é borrada e, portanto, tem movimento é o
gato no qual o fálico rabo levantado se contraindo para trás simboliza a
atividade animal e a sexualidade.
Perceba como o uso das sandálias, da fita no pescoço, da pulseira e
brincos, das flores do admirador, do gato etc, etc, etc nos mostram um grau de
complexidade e simbolismo que não foi atingido por acaso, indicam que Manet
pensou minuciosamente em relação à forma da obra e provam que a imagem, o
conceito que o artista tinha na cabeça da sua Olympia está profundamente
enraizada na forma como ele a pintou.
Ele substituiu a luz típica, a pele alva do nu clássico, por uma epiderme que escurecia com sinais de pelos sob as axilas e entre o umbigo e costelas.
Manet tinha uma forma especial de trabalhar a cor: ele fazia com que sua
qualidade se identificasse com a quantidade de luz, e assim conseguia criar o
efeito chiaro-scuro clássico. Como tudo se apresenta à vista através da cor,
utilizando-a ele conseguia ressaltar as partes que queria que fossem vistas em
primeiro plano, criava uma hierarquia visual ditada pela cor e pelo seu efeito
chiaro-scuro, onde a sombra era apenas uma mancha que se justapunha às outras
cores, mais ou menos luminosas.
Já a escuridão da tela, em oposição ao fato luminoso que é Olympia,
composta pela negritude da empregada e do gato praticamente se fundindo num só
fundo sombrio, apenas enfatiza a impressão de haver uma luz sobre Olympia, uma
claridade que também se derrama sobre a roupa de cama, o vestido da criada e as
flores.
Na verdade, não há qualquer iluminação sobre essas figuras. É a cor que
as destaca, colocando-as em primeiro plano. Finalmente, perceba que a figura do
gato à direita, ao triangulizar o espaço cênico, dá ao mesmo equilíbrio.
Hoje quase todos os fatores que tornavam Olympia repulsiva em 1865 foram
empurrados pela poeira de um século e meio. Mas mesmo assim a originalidade da
imagem permanece e ela ainda tem poder e relevância.
Muito tem sido dito pelos especialistas sobre as ramificações
psicológicas de uma mulher nua que olha para fora do seu território, fixa e
diretamente para a sua plateia. Normalmente, um espectador - o voyeur! - é
capaz de examinar uma imagem da sua zona de conforto e, portanto, exerce uma
forma de controle e poder sobre a imagem.
Quando essa imagem inventada por Manet apareceu muito mais semelhante a
uma mulher real do que aos canônes de beleza numa aula sobre nus e encarou de
igual para igual os seus observadores ela se apropriou do poder exercido por
eles e, em certa medida, assumiu o controle.
Acho a teoria meio louca de pedra mas com certeza e pelo menos, o
equilíbrio de poder entre o espectador e o objeto foi alterado talvez pela
primeira vez por Manet, nessa Olympia que com certeza perturbou o voyeurismo do
público masculino de seu tempo.
Talvez o que tenha deixado a todos furiosos é que Manet não se limitou a
pintar uma praticante da mais velha profissão da Terra. Mais do que expor a
prostituta aos olhos do mundo, ele teve a audácia de transformá-la numa deusa e
de adorá-la.
Era blasfêmia!
O fato é que Olympia é uma obra prima, que encara, provoca, espera,
mostra-se e seduz, perfeita na sua serenidade distraída e sensualidade óbvia,
nas suas cores fortes e, muito principalmente, no radical contraste do
claro-escuro, dessa luz versus sombra, que faz com que o seu corpo adquira uma
qualidade 3D, saia da moldura e arraste o observador para sua cama.
Arrasou! Comparada com as fotos de hoje em dia a Olímpia é um amor de menina kkk Agora falando sério, Moacir. O quadro é lindo. Acho que o que provocou o furdunço não foi a nem a nudez mas a atitude. Ela ser dona do corpo e do nariz dela. Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirLamento mas dessa vez peço vênia para discordar. O que provocou a gritaria foi sim a forma inédita do pintor retratar não só um dos temas clássicos da pintura - a mulher reclinada -como também uma prostitura. E vale questionar se é dono de si mesmo e livre quem não pode dizer a libertadora palavrinha "não": não quero, não estou a fim, não vai rolar!
Abração
1) Parabéns Moacir, dizer que escreves bem é chover no molhado, o que adorei foi o detalhe das pupilas, uma maior do que outra.
ResponderExcluir2)Belas fotos, pinturas idem; mas o que me chamou a atenção: as modelos estão sérias, nenhuma está sorrindo, não parecem alegres...
Vizinho Antonio,
ExcluirJá que você gostou dessa assimetria digamos visual saiba que ela rola de vez em quando nas telas do Manet. Note, por exemplo, os olhos do cara no trabalho de nome "No Conservatório"
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/3/33/In_the_Conservatory_-_edited.jpg/1280px-In_the_Conservatory_-_edited.jpg
Abração e bom final de semana
Moacir,
ResponderExcluirAchei o artigo muito bem escrito e você explica a obra de arte maravilhosamente. Mas por mais que eu entenda que o quadro teve papel importante na modernização da pintura e não veja nada de chocante nele não gosto. Um quadro precisa passar emoção que não sinto nada olhando para a Olympia. Eu adoro retratos porque quando são bons eles falam muitas coisas.Tem um de uma mulher em um café pintado pelo mesmo artista que é maravilhoso. Não lembro o nome mas o rosto dela é expressivo diferente deste semblante fechado.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirO que seria do azul se todos gostassem do amarelo? Mas eu acho que foi exatamente essa a intenção do Manet : que a Olympia nos encarasse e desafiasse e que nos fosse impossível lê-la e traduzí-la.
Quanto ao "semblante fechado" você me fez lembrar uma anedota de viagem. Dizem que um casal já idoso foi assistir ao show do Lido em Paris . E eis que estavam lá felizes da vida e bebericando vinho quando surgiu no palco uma deusa: alta, esguia, loura, linda e quase nua debaixo de raríssimas plumas. A senhora encarou a moça e, em seguida, cutucou o marido:
- " Amor, você viu que ela não tem queixo?"
Ele , sem desgrudar os olhos do espetáculo, retrucou:
- " Tenha calma que ainda não consegui sair do sul"
- "Que sul, amor ?"
- " A região abaixo do pescoço" (rsrs)
Quanto à tela de Manet que você aprecia veja se é essa:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/0d/Edouard_Manet%2C_A_Bar_at_the_Folies-Berg%C3%A8re.jpg
Se for o nome da melancólica garota é Suzon e ela era uma das garçonetes do bar da Folies Bergère que, pelo menos segundo às pretinhas de Guy de Maupassant " vendiam bebidas e amor".
Outro abraço para você
Bravos! O pintor, o autor e a paisagem.
ResponderExcluirMárcio,
ExcluirObrigado pela leitura de "paisagens" virtuais mesmo em um feriadão
Pimentel,
ResponderExcluirOlympia é fora de série embora não tenha a audácia dos nus de Courbet. Mas ainda que eu discordasse de tudo que você escreve continuaria lendo seus textos brilhantes e agradecendo a você pela diversidade dos temas.
Olá Moacir,
ResponderExcluirtão atrasada que você nem vai ler. Ando às voltas com dores fantásticas num tal de trocanter, nominho chic que preferia nunca ter conhecido!
As Olympias são sempre lindas, mas entre Urbino e Manet sou mais Manet. Mas a minha preferida é a gorduchinha de Cezanne.
O que é interessante no Manet, e acho que é o que me atrai mais, é a quase ausência de sombras . Êle não precisa delas para criar volumes no corpo. Sua Olympia parece simplesmente um desenho. E o olhar e o quase sorriso...são lindos.
Sua aula,para variar, está óóóótima. Sabe aquilo, "quando acaba a gente quer de novo"?Pois é.
Até sempre mais.
Caríssima Donana,
ExcluirComo não ler a senhora? Ainda mais se fala do OLHAR? Talvez para além do uso inédito da cor o que Manet fez de melhor nos seus nus modernistas tenham sido essas miradas de Victorine Meurend. Tanto na Olympia quando no Almoço na Grama, a musa olha direta e descaradamente para o prezado público.Veja...
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/90/Edouard_Manet_-_Luncheon_on_the_Grass_-_Google_Art_Project.jpg
Victorine não está nua, ela É nua e crua por causa do olhar. Talvez o Almoço na Grama mais ainda que a Olympia tenha sido o ponto de partida para a arte verdadeiramente moderna, aquilo que resultou em um Picasso capaz de evoluir e contrariar o próprio modernismo ao pintar outras cinco prostitutas em outro bordel olhando-nos diferentemente de Victorine, mas com olhos cheios da mesma inquisição e confronto com o passado em pinceladas de futuro.
"Até mais"
Caro Pimentel,
ResponderExcluirNão tenho o dom de apreciar a arte da pintura, certamente porque não sei desenhar uma árvore ou qualquer outra imagem.
No entanto, reconheço e dou imenso valor à escrita, os textos, aos artigos, às crônicas, ensaios, aos romances, e tu escreves a respeito de artes como um especialista com tanto talento e vocação que suscitam nas pessoas o gosto por quadros e pintores antes negado!
Assim, agradeço pelo despertar que deste aos meus sentidos de valorizar esta arte, na razão direta que continuo sendo um admirador do que escreves porque se trata de outra peça da capacidade do ser humano em demonstrar a sua criatividade, seus dons, sua expertise.
Um grande abraço.
Saúde e paz.