Heraldo Palmeira
Manhã fria e apressada na região da avenida Paulista. A menina devia ter
seus oito anos, no máximo. A mãe e a avó, conversando animadamente, desciam a
escada rolante que levava à garagem do supermercado. Lá em cima, a menina ficou
naquela brincadeira perigosa de subir pelo lado da escada que está descendo,
incomodando os outros clientes que precisavam driblar a pestinha para seguir
caminho.
Mãe e avó ignoraram solenemente todos os avisos para não deixar crianças
sozinhas na escada rolante, e só quando chegaram lá em baixo se deram conta de
que a menina ficara entregue à tarefa de vencer pela enésima vez seu desafio
infantil. Pararam seus três carrinhos repletos de compras exatamente naquele
local onde a esteira se encontra com o chão firme e todos precisam ter atenção
redobrada e passagem livre para não cair. E deram início a um verdadeiro ritual
de clamores para que a criaturinha descesse até elas.
Mamãe invocava seu rol de compromissos, enquanto vovó prometia uma série
de recompensas quando chegassem em casa. E a menina, impassível na sua
olimpíada particular, avisava que iria daí a pouco naquele tradicional e
insuportável “Já voooou!”. Outros clientes começaram a quase trombar com a
pequena frota de carrinhos das duas mulheres, que muito a contragosto tiveram
de mover uma palha para evitar algum acidente iminente.
Lembrei imediatamente de algumas matérias que as revistas semanais
andaram publicando a respeito de crianças e adolescentes ditadores. Há muitos
anos insisto que toda criança nasce como um carro standard e nós vamos
colocando os acessórios.
No grupo dos que apenas não se incomodam em pagar mico por mau gosto, há
quem opte por bichinhos, redinhas ou luzinhas atrás do banco traseiro. Até os
que instalam néon embaixo do veículo.
O nível piorado é composto por aqueles que instalam escapamentos livres
para zoar a paciência alheia, faróis que cegam quem vem na direção contrária e
equipamentos de som que poderiam sustentar até shows de pequeno porte. Em
qualquer destes casos, o resultado é devastador para o convívio social
civilizado.
Adultos cada vez mais incapazes de orientar os filhos que “cometeram”,
transformam essas crianças e adolescentes em criaturas incontroláveis e viram
seus reféns. Manipuladores extremados, quase sempre nossos pestinhas estão na
verdade clamando por limites que tememos apresentar. Por covardia,
condescendência ou irresponsabilidade pura e simples.
Parece mais simples pagar pelo sossego e entupir as crianças com
bugigangas eletrônicas, sem qualquer controle de um uso que se torna obsessivo
num piscar de olhos. Algo que já preocupa especialistas e autoridades de saúde
de países mais avançados, que já preveem novas doenças a caminho, especialmente
as emocionais.
O não se tornou quase impronunciável para a maioria dos adultos, abrindo
as portas para todo tipo de chantagem emocional dos pequenos. A repetição de
nãos não ditos cria o maldito sim automático, pedra fundamental do desastre
quase certo que se abaterá sobre a vida de quem cresce sem conhecer limites.
Há também, como boa desculpa dos adultos, o mito do trauma emocional das
crianças, que virou um bom instrumento de omissão, sedimentado nos últimos
tempos – fundamento psicológico que não fazia nenhum sentido no tempo dos
nossos avós e pais, que aprenderam e nos ensinaram compostura e respeito como
valores incondicionais. E responsabilidade como elemento indispensável no
caminho da vida.
Por causa dos acessórios que recebeu, aquela criança tornou-se um modelo
SL (Sem Limites). E obrigou todo mundo que estava nas redondezas da escada
rolante naquele pedaço de manhã a correr pequenos riscos de acidentes e a
ouvir, um zilhão de vezes, a frase lapidar, em tom cada vez mais insuportável: “Vem,
Maria Fernanda. Vem!”.
Como é normal nestes tempos, Maria Fernanda só foi quando bem quis.
Mandou o mundo se danar com seu mau humor infantil, pronto para virar alienação
juvenil e depressão adulta. E o tempo parece correr mais ligeiro para crianças
mimadas, é bom lembrar.
1)Só elogios Palmeira, por este brilhante artigo.
ResponderExcluir2)Concordo plenamente.
3) Bom domingo a todos (as).
Obrigado, Antonio.
ExcluirO cenário é mesmo complicado.
Triste realidade desse mundo da compensação do material sobre o emocional. O mundo vai educar na pancada.
ResponderExcluirChico,
ExcluirE quase sempre as pancadas do mundo machucam demais.
Grande Mestre Heraldo,
ResponderExcluirOutra crônica magistral. Dizem que o genial é simples e o seu conceito da "criança SL" é simplesmente brilhante! Na testa! Porque é bem mais fácil comprar penduricalhos do que investir energia na vida de um filho para educá-lo, ou seja, para estabelecer dia após dia, noite e madrugada uma diretriz para o comportamento das “pestinhas manipuladores”.
É como se os pais do terceiro milênio se sentissem culpados ao dar limites, como se tivessem medo dos pitis e mimimis pueris ou desejassem evitar que seus pequenos “sofram” ou desmoranassem ao ouvir de um aborrecente um “ você é o pior pai do mundo” quando é necessário decretar um bom toque de recolher ou um "saia da internet já" (rsrs)
Acontece que a tristeza faz parte da vida, que para eles poderá madrasta no longo prazo, e então é melhor que todos aprendam o quanto antes a lidar com Dona Frustação.
Definir limites é se importar , é estar presente e atento, é dar segurança , é tomar as providências para que os miúdos não precisem adivinhar o que se espera deles nas escadas rolantes ou quebradas da vida, é ensinar os pirralhos a ser responsáveis pois ela nem sempre está para brincadeiras e nela há que se ter autodisciplina. É claro que quanto mais responsabilidade eles forem demonstrando ter , menores serão os limites pois afinal os criamos para ser independentes e andar sobre as próprias pernas
Novas teses juram de pés juntos que o bom mesmo é evitar o “não”. Discordo veementemente do boicote à mais libertadora das palavras. Como pode ser livre quem é incapaz de dizer um sonoro “não”? A moda agora é a tal da“negociação”. Ainda é cedo para comentar os resultados. O fato é que aos seis meses um dos meus netinhos quando queria o meu relógio, me oferecia em troca o seu bem mais precioso: a chupeta! (rsrs)
Abração
Caríssimo,
ExcluirVocê disse tudo!
É impressionante ver a incompetência desses pais do terceiro milênio - desdobramento da incompetência que foi se estabelecendo desde o final dos 80. Enquanto não se resgatar a força libertadora do "não", veremos o sim empurrar essas vaquinhas de presépio para o brejo.
Muito bom, Heraldo. Ainda bem que nossos pais souberam nos colocar os limites indispensáveis e, espero, nós tenhamos também sabido com nossos filhos. Porque a vida vai ser complicada não só para as meninas mimadas como para os que estiverem perto delas. E a vida, diferentemente dos pais de hoje, não costuma pegar leve na hora de ensinar essas coisas...
ResponderExcluirMano,
ExcluirFelizes de nós que tivemos os pais que tivemos, de pouca frescura e muita eficiência na hora de educar. Acho que consegui com minha filha, que há muito toca a vida sem me causar sobressaltos.
Vejo muita gente refém de filhos mimados, que se tornam incapazes, que se tornam dependentes, que se tornam doentes ao fim e ao cabo. Até que os pais protetores se vão e o desastre está concretizado. Porque, como você bem disse, "a vida não costuma pegar leve na hora de ensinar essas coisas...".
Diferente de "A rosa púrpura do Cairo", gostaria de entrar no conto e bater um papo, tanto com a protagonista quanto com os coadjuvantes, para dizer "não é assim que a banda toca". rsrs. Parabéns! Belo texto.
ResponderExcluirRafael,
ExcluirO pior é prever que esses personagens não estão muito interessados em saber do jeito do toque. Obrigado.
Excepcional, meu querido HP! Vou compartilhar com o pessoal do Facebook, pois muita gente vai gostar de ler esse texto esclarecedor!
ResponderExcluirWA,
ExcluirEspero que o texto possa ter alguma validade para seus destinatários. Abraço.
Palmeira,
ResponderExcluirMais um texto relevante e incontestável de tua autoria.
Escreves maravilhosamente bem, e teus registros são absorvidos com facilidade pela forma atraente e clara como te expressas.
Minha reverência por mais esta publicação, que tem sido a tônica de teus artigos irrepreensíveis.
Um abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ExcluirMuito obrigado mesmo por palavras tão gentis e animadoras. Espero continuar merecendo sua leitura. E desejando que seus escritos permaneçam nos levando a refletir. Abraço.
Olá Heraldo,
ResponderExcluirMuito bom te ver aqui!
Acho muito difícil criar, educando, um criança, porque ser coerente e persistente demanda esforço contínuo. É muito mais fácil dizer sim do que dizer não e explicar, e ás vezes dizer não porque é não e fim de papo.
Acho que fui muito brava. Quando meus filhos tinham dez anos um chefe e amigo do Mano perguntou-lhes quem era mais bravo em caso, o pai ou a mãe. E um deles, muito engraçadinho, disse " são dez anos de mamãe no poder". Virei piada, até porque o chefe também era muito engraçadinho.
Até mais e mais.
Ana,
ExcluirÉ bom demais estar aqui, acredite.
Tenho absoluta certeza de que, apesar do seu relato, seus sabem o valor de ter uma mãe assim, durona. Sorte deles, viu? Até mais.