Johannes Vermeer - A Leiteira (detalhe) imagem wikipedia |
Moacir
Pimentel
Para começo de conversa, apresento a vocês apenas um close da Leiteira, uma das primeiras das trinta e
seis pinturas conhecidas de autoria do pintor holandês Johannes Vermeer. Na
tela ele pintou um de seus temas favoritos: uma criada jovem e atraente no
interior de uma casa.
Trata-se de um óleo sobre tela de apenas 45,5 x 41 cm, pintado entre os
anos 1657 e 1661, que faz parte do acervo do Rijksmuseum em Amsterdam.
Embora A Leiteira não seja um retrato, quem a olha com atenção tem a
certeza absoluta de ela foi criada a partir da observação direta. E foi. As
feições cuidadosamente retratadas pertenceram à jovem Tanneke Everpoel, que
realmente trabalhou como criada para os Vermeer.
Devo dizer que o título além de ser pouco poético não é exato, porque a
leiteira era na verdade a mulher que tirava leite das vacas nos campos ou
estábulos e que o trazia para as cidades em recipientes para vendê-lo de porta
em porta ou no mercado. Não era bem o caso. Mas como perguntou-me um filho na
mais tenra infância:
“Pai, você sabe o que é ficção, não é?” (rsrs)
“Pai, você sabe o que é ficção, não é?” (rsrs)
De qualquer forma, o quadro foi pintado sob encomenda para o único
patrono e mecenas das artes em Delft - a cidade natal do pintor - cujo nome era
Pieter van Ruijven. Diz Dona História que em 1657 van Ruijven emprestou
quinhentos florins a Vermeer e sua jovem esposa Catarina em troca do direito
não da primeira noite mas da “primeira recusa”, ou seja, de ver as obras dele
antes de qualquer outro possível comprador e, é claro, de ficar com todas
aquelas que apreciasse.
Assim o colecionador pré pagou por cerca de metade de tudo o que Vermeer
pintou no decorrer de uns vinte anos, garantindo ao artista segurança
financeira, os meios para poder trabalhar em paz e comprar os pigmentos caros
que usava em suas telas - principalmente o seu azul característico feito de
lápis lazuli moído - e para sustentar a mulher e os onze filhos.
Portanto - e atenção! - enquanto a maioria dos pintores trabalhava para
um mercado aberto e suas pinturas eram vendidas para pessoas desconhecidas
deles, sempre através de intermediários, Vermeer estava familiarizado com o
gosto e podia conversar diretamente com o futuro proprietário das suas obras,
especialmente aquelas da vida cotidiana.
Tal fato pode aparentemente parecer desimportante mas não é: Jan Vermeer
podia se permitir ser muito mais alusivo, sugestivo, sutil em seus significados
do que os demais pintores seus contemporâneos. E é justamente isso o que vemos
em Vermeer, em termos de narrativa ou imagens: muito mais poesia do que prosa,
muito mais sugestão do que drama, muito mais paisagens psicológicas do que
físicas. Só que, mesmo quando pintava uma criada às voltas com uma jarra de
leite, Vermeer banhava a cozinha com uma radiância muda.
Decidi começar a conversar sobre A Leiteira por duas razões: em primeiro lugar para
atender a um pedido do nosso vizinho Antônio Rocha que muito admira a obra de
arte e last but not least por que dia desses li que o Museu do Louvre está
sediando uma exposição de nome “Vermeer e os Mestres da Pintura de Gênero”.
Na mostra pode-se apreciar o maior e melhor conjunto dos poéticos dramas
interiores do artista, como por exemplo A Leiteira emprestada pelo Rijksmuseum,
A Mulher Segurando a Balança vinda da National Gallery de Washington, A Carta
cedida pela National Gallery irlandesa, além da Mulher com um Alaúde emprestada
pelo Metopolitan Museum de Nova York e da Rendeira que já mora no Louvre.
Mas o que seria essa tal “pintura de gênero”? Era um estilo sóbrio,
realista, tranquilo e comprometido com a descrição de cenas rotineiras, temas
da vida diária. Como por exemplo homens dedicados ao seu ofício - médicos,
professores, geógrafos, astrônomos, pescadores, lavradores – ou mulheres
cuidando dos afazeres domésticos.
O século XVII foi o período de ouro da pintura holandesa e nele, como
sabemos, se destacaram Rembrandt e Vermeer. No entanto todos os pintores
seiscentistas holandeses se afastaram dos padrões de estética e da exuberância
barroca e dos seus temas nobres e mitológicos e buscaram representar os ambientes
nos quais vivia o povo holandês com o máximo de realismo.
Encontram-se expostos no museu francês neste momento muitos quadros de
outros bons pintores holandeses, mas as telas de Jan Vermeer terminam por
deixar cinzentas as luzes menores da arte holandesa do século XVII e a gente
adianta o filminho até que apareça a próxima pérola do artista.
Johannes Vermeer e Rembrandt foram os dois mais brilhantes e agudos
pintores da vida cotidiana do século XVII tendo rejeitado os grandes e
barulhentos temas da arte tradicional - batalhas, mitos, passagens bíblicas,
martírios - e preferido pintar um homem oferecendo uma bebida a uma mulher, uma
criada observando enquanto sua patroa escrevia uma carta para um namorado
ausente, um médico dando uma aula de anatomia ou fazendo um diagnóstico,
soldados ocupados com uma ronda noturna, uma mulher dedilhando um alaúde, uma
jovem fazendo renda, episódios que ocorriam não em palácios mas em casas
populares e nas ruas ao longo dos canais.
O título da exposição - “pintura de gênero" - usa o nome
tradicional para esta arte, um termo ligeiramente depreciativo que reflete o
fato de que essas pinturas realistas já foram vistas como vulgares e triviais
se comparadas com um retrato de uma dama nobre ou o de um rei ou de uma visão
dos deuses do Olimpo.
Mas na verdade a rejeição tinha outros motivos. Como sempre, é melhor
ver para crer, ou seja, mostrar para explicar...
Hendrick Martensz Sorgh - O Tocador de Alaúde (1661) imagem wikipedia |
Diante dessa tela, por exemplo, nascida da paleta do pintor holandês
Hendrick Martensz Sorgh, na qual uma mulher escuta languidamente enquanto um
homem toca alaúde, além das duas figuras protagonistas podemos ver apenas uma
mesa cheia de frutas em uma sala que se abre para um canal ensolarado. A cena
sugere o calor e a sensualidade de um dia de verão. Um cão e um gato olham para
nós lá da pintura, compartilhando sua visão cínica dessa situação talvez
romântica e – quem sabe? – até mesmo a “tensão” entre os dois
protagonistas.
E é isso. O drama está implícito mas não é mostrado. Talvez sejamos
testemunhas de um adultério, enquanto o marido está em uma viagem de negócios
ou talvez isso seja apenas uma inocente lição de música. Não se sabe ao certo.
E esse não saber divertia muitos e desagradava outros tantos.
Tais pinturas dos momentos cotidianos transformavam o drama da arte,
interiorizam as situações, tornando-as hesitantes, incertas, complexas. O certo
e o errado não eram óbvios. Não havia vilões ou heróis, anjos ou demônios,
cavaleiros ou dragões para ajudar na “tradução”.
Aliás os holandeses apelidaram essas obras de “temas de conversas” e
elas eram concebidas para que se ficasse diante delas por um longo tempo,
jogando conversa fora e imaginando, tentando descobrir os seus significados
enquanto se saboreava as nuances artísticas e psicológicas das imagens. Afinal
naqueles tempos remotos os mortais não dispunham das novelas de rádio e TV, das Playboys da vida, dos filminhos pornô de antigamente, dos mais recentes cheios de efeitos 3D, dos games e muito menos da internet.
Dureza!
Dureza!
Vermeer desmente a teoria defendida por alguns historiadores de arte de
que cada pintura do século de ouro holandês tem uma moral clara. Longe de
advertir com cores e luzes faiscantes contra os pecados e vícios, as telas do
artista contam histórias deliberadamente inacabadas e não resolvidas.
Tendem a ter mulheres como seus personagens centrais, nos levam para um
mundo doméstico, atrás das janelas das casas dos mercadores de Delft, para os
espaços nos quais as mulheres passavam as suas vidas há trezentos anos.
Vemos algo parecido com a realidade da vida dessas mulheres e mães no
passado: um médico tomando o pulso de uma jovem mãe, enquanto um relógio
assinala as horas da vida lá fora, ou uma mulher grávida sonhando acordada ou
uma serva se concentrando em um determinado trabalho doméstico.
Mas ver a Leiteira que é bom, só no próximo capitulo...
ResponderExcluirO pouco que sei de arte aprendi aqui, Moacir. Obrigada! Não é um artigo fácil porque pra mim a pintura holandesa é grego kkk Gostei de saber como os quadros eram a distração deles tipo as novelas de hoje em dia. Acho incrível é como pra você cada quadro é uma história e o jeito que você conta explicando os detalhes. Vou esperar para dizer se gosto do trabalho do artista depois do próximo ‘capítulo’.
ExcluirMônica,
Então estamos combinados. E sim, cada tela é não uma mas várias narrativas. Se você olhar para um quadro sem saber quem o pintou ou quando foi pintado e porque ou qual é o seu tema e tentar entender o que as imagens estão dizendo provavelmente elas lhe contarão uma das suas próprias histórias.
Abração
ResponderExcluirMoacir,
Acho Rembrandt simplesmente um gênio! Por causa da dele a obra de Vermeer fica pequena. Poucos quadros podem se comparar aos autoretratos dele ou A Ronda Noturna.Vai ser interessante conhecer o trabalho de um artista do tempo dele que nunca prestei atenção. Destaco o resumo da pintura holandesa e da vida:
'Momentos cotidianos transformam o drama da arte, interiorizam as situações, tornando-as hesitantes, incertas, complexas. O certo e o errado não eram óbvios. Não havia vilões ou heróis, anjos ou demônios, cavaleiros ou dragões para ajudar na tradução.'
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirO seu comentário é interessante porque eu jamais pensei em termos Rembrandt versus Vermeer. Ambos deram ao mundo momentos de grande carisma pictórico. O que eu acho fabuloso em Rembrandt é como ele não só reconheceu as imperfeições e a mortalidade humanas mas, em um certo sentido, tornou-as os principais temas de sua arte. Afinal se os homens e mulheres fossem perfeitos - mental, física, moral e espiritualmente - por quais cargas d'água eles precisariam de arte, não é mesmo ? Ele foi sim um gênio de visão revolucionária por causa da sua humanidade inédita, áspera, crua, violenta e, principalmente, sem qualquer preocupação com a beleza formal que no entanto ele sempre alcançava através da compreensão da condição humana, inclusive da a sua própria.
Talvez a maior diferença entre os dois artistas seja o fato de que a pintura de Rembrandt também é - e não estou falando dos auto retratos - sobre ele mesmo. Já o encanto de Vermeer mora no fato de que ele se ausenta de suas tintas que, se por um lado são menos didáticas e retumbantes que as de Rembrandt, por outro são mais intrigantes e, de quebra, nos dão tempo de respirar (rsrs)
Outro abraço para você
Olá Moacir,
ResponderExcluirTambém fico esperando os próximos capítulos. Adoro Jan Vermeer assim como Rembrandt. Acho a pintura de Vermeer, apesar das cenas cotidianas, e talvez por isso mesmo, de um requinte total. Como o seu texto! Não sabia sobre a "pintura de gênero". Lendo e aprendendo, não é mesmo?
Até mais.
Caríssima Donana,
ExcluirÀ expressão "pinturas de gênero" prefiro a outra " temas de conversas". E é tanta coisa para conversar que às vezes a gente quase desiste de tentar. Eu também muito aprecio tanto as coisas fascinantes de Vermeer quanto as de Rembrandt às vezes de uma feiúra magistral. Veja toda a emoção que conseguiu colocar nos rostos sem graça dos noivos judeus e note como aquela Bathsheba se banhando toda nua depois de ler a carta de Davi chamando-a para sua cama é tudo menos glamorosa mas ela nos convence de que é bela e de que o rei era louco de paixão por ela e de que está pensando: vou ou não vou e se for...? (rsrs) Como esquecer a sola do pé em petição de miséria daquele filho pródigo ajoelhado com o rosto enterrado no peito do velho pai, ou do bebê sequestrado urinando de puro terror ou do Sansão, um monumento à fúria sádica, tendo os olhos perfurados? Depois de todas essas cores e emoções as penumbras serenas de Vermeer são mais do que bem vindas. Graçasadeus que não temos que abrir mão nem dos olhos assustados e das bocas convidativas ou da sensação de mistério e das perguntas sem resposta nas pinturas intimistas de Vermeer, nem do nocaute emocional, dos trovões existenciais, das vísceras e carcaças e das peles amarrotadas pelo tempo dos retratos do outro
"Até" a próxima.
1)Obrigadíssimo Moacir, gosto do quadro A Leiteira por vários motivos, mais adiante tentarei explicar ou vivenciar o que a pintura representa para os meus pensares...
ResponderExcluir2)No mais aprendendo sempre e querendo aprender mais...
Antonio,
ExcluirTeremos muito mais sobre a Leiteira de Vermeer pela frente e espero ler em breve o que a obra de arte representa para "seus pensares". Creio que o nome disso seja "conversa"
Abração