La Closerie des Lilas - 1909 (wikimedia commons) |
Moacir Pimentel
La Closerie des Lilas, o café parisiense preferido
de Ernest Hemingway, foi um dos primeiros a funcionar na região de
Montparnasse, talvez pela proximidade das universidades e dos salões de dança.
Além de ser um dos pioneiros no bairro era o café predileto dos poetas,
inclusive de Paul Fort, também chamado de O Príncipe, que todas as terças
feiras à noite lá organizava uma reunião com amigos para declamar seus versos,
cantar e fazer novas amizades.
Essas reuniões não atraíam somente os
frequentadores habituais dos cafés da rive gauche, mas começaram a despertar
também o interesse dos artistas e literatos de Montmartre, servindo como porta
de entrada para que Picasso e a sua turma se ambientassem nessa atmosfera mais
sofisticada, até então desconhecida por eles.
Nos anos vinte do século passado ainda não tinha
sido construído o terraço envidraçado atual, e as mesas do Café debaixo dos
toldos e de frente para o bouvelard Montparnasse não eram frequentadas por
pessoas famosas, que queriam ser vistas e noticiadas, como acontecia com o
pessoal que circulava, a várias quadras de distância, pelos Cafés Dôme e La Rotonde e Le Select.
A proximidade do café - cujo nome foi inspirado pelo jardim de lilases
murado que fora um dia – com o pequeno apartamento que Ernest Hemingway
alugara em cima de uma barulhenta serraria na Rua Notre- Dame des Champs e a
tranquilidade do local possibilitavam
ao escritor, como era de sua preferência, uma certa privacidade para escrever seus pensamentos.
Hemingway gostava muito de estar ali no encantador
e aconchegante La Close, onde o outro profeta da era do jazz, F Scott Fitzgerald, leu
para ele o seu livro O Grande Gatsby.
Fitzgerald muitas vezes interrompia o trabalho do
Papa para confessar ao amigo, por exemplo, que costumava fazer alterações nos
contos que julgava bons demais, piorando-os para que se tornassem comerciais e
pudessem ser publicados pelos jornais e revistas.
Hemingway descreveu não o café de seu encanto mas
como se sentia bem naquelas paragens onde ainda hoje se pode ver, em destaque,
o seu canto favorito, a sua foto e, no cardápio, um steak au poivre que leva
seu nome porque supostamente teria sido seu prato predileto.
A estátua do Marechal Ney - de
bronze esverdeado sobre um pedestal de pedra a apenas uma dezena de metros do
Café - chamava a atenção do escritor lá de pé, majestosa, olhando indiferente para
os bulevares, as pernas abertas, o braço erguido desafiadoramente.
O marechal, que fora um dos generais
de confiança de Napoleão, virou traidor para a monarquia restaurada depois que,
tendo prometido trazer o ex-imperador de volta a Paris numa gaiola de ferro,
foi enviado para rastrear Napoleão após sua fuga da ilha de Elba.
Sucede que ao encontrar
Bonaparte, Ney ajoelhou-se e ofereceu-lhe o comando de seu exército de sessenta
mil homens. Juntos lutaram e perderam a batalha de Waterloo e, por sua ação
traidora, os realistas executaram o marechal em dezembro de 1853, exatamente na
Rua de l'Observatoire, onde se encontra o seu bronze.
imagem Mbzt - 2010 (Wikimedia Commons) |
Hemingway escreveu sobre como certa
vez, estando ele a caminho de casa, resolveu parar no Closerie des Lilas para
ver o seu velho amigo e o encontrara “tão sozinho ali com sua
espada desembainhada” brilhando na luz do final da tarde com as sombras dos
ramos das árvores dançando no verde escuro do bronze:
“Lembrei-me de seu fiasco em Waterloo e concluí
que todas as gerações eram perdidas, sempre haviam sido e sempre haveriam de
ser”.
Olhando para o marechal Michel
Ney, Hemingway pensou na valentia dele lutando pessoalmente na retirada de
Moscou e na fidelidade canina que dedicara a Napoleão e lembrou da sua própria
amizade com Gertrude Stein, a sua advogada no mundinho da literatura parisiense
de quem começara a divergir. O jovem Hemingway concluiu então que todas as gerações
de alguma forma perdem alguma coisa.
Então ele brindou ao marechal,
e prometeu a si mesmo ser amigo de Gertudre e honrá-la só que nos termos dele...
“Enquanto eu puder e com a ajuda de Deus e de Mike Ney! Mas para o
inferno com essa conversa dela de geração perdida" (rsrs)
Aqui é preciso um tanto de contextualização. Uma
das frases mais conhecidas da escritora Gertrude Stein é justamente aquela na
qual ela se refere à geração de escritores e artistas franceses e expatriados
que viveu em Paris entre as Guerras Mundiais:
“Todos vocês, jovens que serviram na guerra são uma geração perdida”
Também Scott Fitzgerald nos
seus escritos ecoou o mesmo sentimento e versou sobre uma geração criada com valores e perspectivas que
já não significavam quase nada no mundo do pós-guerra, uma geração que
precisava se reencontrar:
“Era uma nova geração que cresceu para encontrar todos os
deuses mortos, todas as guerras travadas, toda a confiança no homem abalada.”
Hemingway, apesar da bravata,
algum tempo depois pensou melhor e percebeu o quanto a frase de Gertrude era
adequada para o romance O Sol Também se Levanta e, com alguma ajuda do
Eclesiastes, cravou no livro:
“Uma geração vai e outra geração vem e a Terra permanece para sempre.”
Mas não a fachada do La
Closerie des Lilas. Hoje a área externa do Lilas é agradavelmente cercada por
arbustos verdes, criando uma pitoresca área isolada onde se encontram algumas mesas,
das quais acho que Hemingway teria gostado, porque as sebes teriam impedido que
ele fosse visto sentado ao ar livre enquanto criava depois de uma boa noite de
sono.
“Eu já tinha aprendido a nunca
esvaziar o poço da minha escrita, mas sempre parar quando ainda havia algo lá
na parte mais profunda dele e deixá-lo transbordar à noite das fontes que o
alimentavam.”
Em dias e noites de clima
agradável Hemingway sentava-se nas mesas quadradas de mármore, sem quaisquer
paredes de vidro, e desfrutava o ar livre. Lá, com seus dois lápis curtos escrevia,
saboreando o cheiro da madrugada e os sons: dos garçons varrendo e esfregando o
Café, dos cascos dos cavalos, das rodas sobre as pedras do bulevar à sua
frente.
Em seu bolso direito Hemingway
carregava sempre uma castanha e um pé de coelho, ambos esfregados tantas vezes
para dar sorte que a castanha adquirira o preto do ébano e o pé do coelho
perdera a pele.
As altas árvores que cercavam o
café para lhe dar sombra e um ar campestre eram castanheiros no começo do
século. Hoje são plátanos. Nenhuma carroça puxada por cavalos ressoa sobre os
paralelepípedos e tudo o que se escuta vindo da avenida é o zumbido constante
do trânsito, mas ainda há lilases nos canteiros de madeira em volta do pátio e
das mesas.
Lá dentro, ao longo do bar e
em todas as mesas moram pequenas placas de bronze brilhantemente polido com os
nomes gravados dos personagens literários e artísticos do passado que
- dizem! - sentaram-se em cada uma delas.
A placa de Hemingway fica no
bar, contrariando seus escritos nos quais ele se descreve muitas vezes em uma
das mesas laterais, longe e à direita do bar com as costas para a parede e a
visão plena do ambiente. Um lugar claro e bem iluminado de onde ele podia olhar
por cima do ombro para a Avenida de l'Observatoire e mais além para o distante “verde
dos Jardins de Luxemburgo”. E se deliciar observando as mulheres:
“Eu vi você, beleza, e você me pertence agora, não
interessa quem você esteja esperando e se eu nunca irei te ver de novo, eu
pensei. Você me pertence e toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno
e a este lápis. Então eu voltei a escrever e mergulhei na história e nela me
perdi (...) Então a história terminou e eu estava muito cansado. Li o último
parágrafo e então eu olhei para cima e procurei pela garota e ela tinha ido
embora. Espero que ela tenha ido com um homem bom, pensei. Mas eu me senti
triste.”
Os cafés -creme são deliciosos
e os garçons normalmente não apressam ninguém pois sabem que por ali a preguiça
é contagiante. No almoço o Café é invadido por turistas mas antes da refeição
da noite é frequentado por gente de todas as idades e ocupações, se bem que a
maioria parisiense da gema.
Os fregueses sentam-se diante
de suas bebidas lendo livros, jornais ou revistas, saboreando a luz âmbar de um
dia minguante enquanto degustam um café, um copo de vinho ou talvez um pernod
leitoso com sabor de anis, um estimulante agradável para celebrar o fim do dia.
É exatamente nessa hora, a do
lusco-fusco, quando se a gente capricha na Dona Imaginação, ouve novamente os
sons do passado: os clique, clique, clique de saltos altos e afiados na calçada,
o ranger das cadeiras, o folhear dos jornais, o som sibilante da cafeteira, um
balbuciar confuso de vozes, garçons tomando pedidos, bandejas de metal batendo
levemente em mesas com tampo de mármore e o tilintar do vento contínuo nos
vidros e Let’s Do It do Cole no piano.
A mesma música que é tocada nos
cafés de Paris para todas as gerações. Todas elas colegas na falta de rumo
daquela perdida nos anos vinte. De repente se pensa que deve ter sido essa a
música de fundo que Hemingway ouvia enquanto escrevia sobre como Nick Adams
pescara trutas no Michigan após a Primeira Guerra Mundial, a trilha sonora enquanto
inventava a história do amor impossível de Jake Barnes e Brett Ashley em O Sol
Também Se Levanta.
Sem dúvida, é a mesma música. Do
tipo que parece ressoar uma riqueza histórica, uma civilização antiga,
primaveras e verões e outonos vividos plenamente e escuridões invernais
superadas. O jeito é pedir outro café-crème e um licor para encompridar um
pouco mais o momento e nele não o jovem que Hemingway foi, mas aquele que, em
algum lugar perdido dentre de nós, ainda somos.
Ernest Hemingway in Paris - 1924 (JFK Presidential Library) |
Em 1956 Hemingway encontrou quase que por acaso, em
um dos porões do Hotel Ritz, em Paris, uma mala que fora perdida pela primeira
de suas mulheres, muitíssimos anos antes, com os cadernos de capas azuis nos
quais ele diligentemente rascunhara durante aqueles primeiros anos vividos em
Paris.
Tinha sido na Closerie des Lilas que Hemingway
fizera todas aquelas anotações, rodeado pela fumaça de muitos cigarros entre
uma xícara
quente de café-crème e outra no interior da casa durante o inverno ou
numa das mesas do terraço externo ou sob a sombra das árvores do pátio, olhando
para a estátua do Marechal Ney.
Ele transcreveu lentamente tais cadernos e, em
1961, durante o período em que também trabalhou no romance-reportagem O Verão
Perigoso, deu a compilação como concluída.
Todos aqueles rascunhos foram publicados postumamente
em 1964, transformados no livro mais confessional de Hemingway, de nome Paris é uma Festa, nas traduções para o
português e o francês mas que, no original em inglês ostenta o título de The Moveable Feast – a festa “móvel” ou “ambulante” em livre tradução.
O título original fazia referência aos feriados que
mudam de dia conforme o calendário do ano como, por exemplo, o Carnaval e a
Páscoa. Mas na realidade foi principalmente uma metáfora jocosa de Hemingway, para
o sentimento de feriado permanente vivido por ele e por mais uma plêiade de
intelectuais na Paris daquele tempo.
O título foi sugerido por um amigo de Hemingway, de
nome Aaron Edward Hotchner – autor do livro Papa Hemingway, Um Relato Pessoal, por causa de uma conversa que os
dois tiveram sobre a cidade durante as primeiras visitas de Hotchner à Paris:
“Se você
tiver a sorte de ter vivido em Paris, quando jovem, então onde quer que vá para
o resto de sua vida, ela permanecerá com você, porque Paris é uma festa móvel".
O livro Paris é uma Festa é, entre todos os demais da lavra de Hemingway,
aquele que mostra a relação vida versus obra mais explícita. O próprio
Hemingway adverte no início do livro:
"Se o leitor preferir, este livro pode ser
considerado como ficção. Seja como for, ficção ou não, há sempre a possibilidade de que o livro possa iluminar o
que foi escrito como fato."
As páginas do livro nos presenteiam com as memórias
de Hemingway dos seus anos em Paris mas nos surpreendem pelos sentimentos contraditórios que ele cultivava
por alguns dos convidados da festa e pelo detalhamento seco, duro e límpido com
que ele relata momentos, fatos, pessoas e situações, que nos permitem
visualizar, sentir e - porque não dizer? - viver o que Hemingway viveu.
Sem
dúvida, o livro é uma incrível fotografia da Paris dos anos vinte, onde
conviveram e criaram alguns dos maiores escritores e artistas do século XX.
O encanto da obra - que não é absolutamente o
melhor trabalho de Hemingway! - é que o autor nos faz sentir parte da tchurma.
É bom reconhecer, nas páginas do livro, entre os amigos do autor quando ainda eram
reles mortais em vez de verbetes da Wikipedia, os hoje lendários Gertrude
Stein, Ezra Pound, Scott Fitzgerald, Ford Madox, James Joyce, Henry Miller, T.
S. Elliot, Aleister Crowley, John Dos Passos e muitas outras figuras
polêmicas e brilhantes.
Nos primeiros dos anos vinte nenhum
desses gigantes literários sabia quem era Ernest Hemingway nem muito menos que
ele estava na cidade, mas antes da década acabar Paris o conheceria muito bem. E
essa conjunção de influências literárias que estava prestes a acontecer mudaria
para sempre a topografia da literatura americana e mundial.
Papa Hem nos faz, em Paris É Uma Festa, observações
e relatos pessoais e até íntimos sobre todos esses gênios imortais em encontros e desencontros vivenciados nos bares e
hotéis e restaurantes que todos frequentavam, nas ruas por onde caminhavam, nos locais onde se divertiam e trabalhavam.
A menos de dois quarteirões da
mesa de Hemingway no Café, o que restara de Charles
Baudelaire e Guy de Maupassant dormia na paz do cemitério de Montparnasse,
enquanto que, a cinco minutos a pé do Boulevard Raspail, Gertrude Stein e sua
fiel amiga Alice Toklas viviam sua relação homossexual.
Aliás, naquelas páginas
ficamos amigos de infância de Gertrude Stein, pois
Hemingway dedicou um capítulo inteiro a essa senhora à frente do seu tempo, uma
locomotiva cultural ferina e implacável, mas que recebia o conterrâneo de braços abertos em
seu belo apartamento atrás
do Jardim de Luxemburgo.
Eram famosos os regabofes oferecidos pela americana
aos sábados, reunindo escritores e artistas em volta da sua mesa. A comida era
farta e cortesia da casa e a frequência alta e diversificada, se bem que eram
constantes as presenças de Picasso, Apollinaire, Max Jacob, Braque, Vlaminck,
Matisse, Derain, Scott Fitzgerald e Hemingway entre vários outros, que
compartilhavam muito talento e nenhuma grana.
Em uma mesa vizinha à do Papa Hem no Closerie, o
poeta Ezra Pound - “homem íntegro e
sempre disposto a ajudar a todos” - leu um manuscrito que era “de um jovem com os nervos despedaçados a caminho de uma cura de
descanso em Lausanne”. O poema era da lavra de Tom Eliot e acabou sendo
batizado de Terra Devastada.
A menos de duas quadras do
modesto apartamento de Hemingway, James Joyce comemorou as revisões finais de
seu manuscrito Ulisses na livraria Shakespeare and Company.
E isso foi antes da bela
modelo, pintora e atriz chamada Alice Prin tornar-se a musa dos pintores e
escritores e escultores franceses da época, adotando o nome de Kiki e sendo
coroada Rainha do bairro. Kiki de Montparnasse é famosa como a musa e
companheira do genial Man Ray, o fotógrafo, cineasta, pintor e anarquista responsável por grandes inovações artísticas na
fotografia, mas foi, por direito próprio, uma artista muito talentosa.
Os dias de trabalho e as
noites de prazer de Hemingway eram compartilhados por Luis Buñuel, Anaïs Nin, Cole Porter, todos os cubistas e o
surrealista Salvador Dalí. Foi essa concatenação de oportunidades literárias e
artísticas que fez o jovem Hemingway e tantos mais sentir que Paris era o
centro do mundo.
É impossível não sentir atração pela Paris de
Hemingway, descrita no período entre as guerras mundiais. A narrativa é tão
fantástica que nos faz sentir como parte da família Hemingway, amigos do autor,
bebendo café e fumando e até sentindo fome junto com ele, perdendo aquela luta
de box no Clube Americano na qual apanhou do adversário e do “juiz” Fitzgerald,
pendurando contas nos bistrôs, curtindo as corridas de cavalos onde às vezes ganhava
um bom dinheiro mas nas quais se viciou e que abandonou ao perceber que o
afastavam da literatura.
De certa forma é inimaginável que alguém tenha
convivido com todas essas pessoas célebres de uma vez e, se isso fosse uma obra
de ficção, beiraria o ridículo.
A escrita de Hemingway é uma delícia despretensiosa
que nos leva àqueles dias e nos faz sorrir a cada capítulo, dos quais os três
sobre Scott Fitzgerald e sua mulher Zelda são o melhor da festa, pois desvelam
a aparentemente ambígua relação do autor com o colega Scott Fitzgerald, outro
escritor indispensável da literatura americana.
Hemingway conheceu F. Scott
Fitzgerald no Café Dingo na Rua Delambre. Fitzgerald morava perto da Étoile e
muitas vezes ia ao Bar Ritz, onde os amigos bebiam e jogavam conversa fora. Hoje
o bar principal no Hotel Ritz ainda é conhecido como o Bar Hemingway. Só estive uma única vez na vida naquelas paragens onde os mortais escolhem o que vão
beber pela coluna de preços à direita. Só pude saborear um café e um licor mas
fiz questão de homenagear a biografia em pauta: foi uma poderosa variante verde do Chartreuse. Timtim!
À medida que a leitura da
Festa avança, Fitzgerald vai revelando-se cada vez mais neurótico, obsessivo e
hipocondríaco, talvez como uma reação à natureza controladora da mulher Zelda,
que odiava vê-lo escrevendo. Uma relação complicada!
Entre outras intimidades, Hemingway nos conta, como
se fossemos amigos de longa data, que Fitzgerald casara-se virgem, que era
muito inseguro do seu desempenho sexual e atormentado de amor por Zelda de quem
tinha ciúmes imensos pois ela já o havia traído.
Ao mesmo tempo Hemingway descreve a genialidade do
amigo com admiração e quase ternura:
“Seu talento era tão espontâneo como o desenho que
o pó faz nas asas de uma borboleta. Houve uma época em que ele tinha tanta
consciência disso quanto a borboleta, não ligando para o fato de que seu
talento podia apagar-se ou desaparecer de todo. Mais tarde começou a
preocupar-se com as asas feridas e sua estrutura; aprendeu a refletir, mas já
não conseguia voar porque o amor ao voo o abandonara. Restava-lhe apenas as
lembranças dos dias em que voar fora um ato natural”.
Ele acreditava que o talento de Fitzgerald era
prejudicado por Zelda e, pelo menos nas suas pretinhas, Hemingway desenvolveu por
ela uma verdadeira antipatia.
Encontrei-me diversas vezes inserido no ambiente da
história, como por exemplo, ao ler Hemingway tomando um xerez seco com o James
Joyce e contando-lhe como planejava livrar-se das funções de jornalista e se
entregar ao mundo da literatura... no Café Les Deux Magots.
No livro quase que podemos ver como o autor fez, o
ambiente, as mulheres, as mesas, o território da atriz e dama Diana Cooper, da poetisa Nancy
Cunard, da pintora Tamara de Lempicka e last but not least da Vênus Negra Josephine
Baker cuja dança erótica no palco do Teatro des Champs-Élysées
em 1925 fez tanto sucesso que a americana se
transformou, em seguida, na nua estrela das Folies Bergère.
Todas essas mulheres da
geração entre as guerras, atraentes e polêmicas - americanas, britânicas,
russas - tinham uma coisa em comum: o desejo de liberdades que antes eram
inéditas. Elas abriram portas perigosas para a sua época e isso significava
saias mais curtas, fumar em público e uma revolução sexual.
E, é claro, seguimos pelas pretinhas de Hemingway afora
com todos os sentidos, experimentando os cheiros e sabores, os pratos e bebidas
servidos por garçons mal-humorados dos cafés e restaurantes que ouviam Cole
Porter day and night e night and day...
Como ler Hemingway sem perambular pelo triângulo formado pelo Café Flore, o Les Deux Magots
e a Brasserie Lipp, todos na
confluência do boulevard Saint-Germain com a Rua de Rennes? Como não fazer uma escala
na banca de jornal que fica em frente e comprar uma revista qualquer com
destino a uma mesa qualquer e a um bom café?
Como não sonhar provar na Brasserie Lipp os
descendentes diretos daqueles salsichões que Hemingway devorava com mostarda de
Dijon contornados por batatas e maionese de picles?
Como não salivar enquanto Hemingway e ses amis
beliscavam – sem nenhuma pressa! – uma terrine de foie gras, enquanto davam
cabo de todas aquelas garrafas de Chablis Laroche e esperavam pelas suas carnes
brancas de mare e monti entre piadas e galanteios e olhares cobiçosos para as
senhoras?
No final do capítulo – faminto! - o jeito é ir para
a cozinha para tentar fazer se não o paillard de fazer inveja aos deuses pelo menos um
substancioso fettucine de fazer chorar os mortais. (rsrs)
É impossível não tomar chá com Ernest e sua
adorável esposa Hadley no Hotel
d’Angleterre, na Rua Jacob. Ou não tomar pelo menos uma colher daquela
sopa de cebola do Le Pré aux Clercs,
na esquina das Ruas Jacob e Bonaparte. Faz bem à alma sair caminhando com o
casal pela Bonaparte afora, atravessar o rio Sena pela Pont des Arts, para um
sereno almoço de Natal no conhecido Café
de la Paix, próximo à Ópera Garnier.
É divertido visitar através “da bic” de Hemingway
tantos recantos no Quartier Latin, em Saint- Germain- des-Prés, na Rua Mouffetard.
E o Jardim de Luxemburgo? Com a palavra o Papa Hem:
“… passar pelos jardins e depois ir ao Museu de
Luxemburgo, onde se encontravam os grandes quadros que, em sua maioria, hoje
estão no Louvre ou no Jeu de Paume. Ia lá quase todos os dias, por causa
dos Cézannes e para ver os Manets, os Monets e os outros impressionistas”
Na real os Cézannes e os
Manets se mudaram faz tempo para o Museu D’Orsay e os lírios d’água que Monet
abstraiu da luz dos seus jardins em Giverny hoje cobrem imensos os salões
ovalados da Orangerie.
Mas Hemingway tem o dom fantástico de nos fazer
sentir à vontade na Paris dele, talvez porque lendo
um Mestre a gente
imagina - pessoas, coisas, lugares - e tem a crença bobóide de que se apropria
do que foi imaginado e passa a ter a sensação de que tudo aquilo, está aqui
dentro da gente e que portanto nos pertence.
Enfim, a Paris de Hemingway é tão irresistível quanto a escrita de seu
autor.
Hemingway escrevendo num acampamento no Kenya - 1953 ( Look Magazine - Wikimedia Commons) |
É interessante ler Hemingway descrevendo os seus
problemas matrimoniais com a primeira esposa em Paris É Uma Festa:
“O problema
ocorrera como começam as coisas verdadeiramente perversas: inocentemente! Uma
jovem solteira se torna a melhor amiga de uma jovem casada e vai morar com o
casal. Então, inconsciente, inocente, inexoravelmente termina por se casar com
o marido da outra”.(rsrs)
A amiga da onça era a jovem e bela e chique editora
de moda da Vogue Paris Pauline Pfeiffer, a segunda das quatro mulheres do escritor.
“Mas Paris era uma cidade muito antiga e nós éramos
jovens e nada era simples, nem mesmo a pobreza, nem o dinheiro súbito, nem o
luar, nem o certo e o errado, nem a respiração de alguém que estava ao seu lado
à luz da lua”.
Depois de terem enfrentado
juntos os anos mais intelectualmente profícuos e criativos e o período
financeiramente mais inseguro da vida de Hemingway, em 1927 Hadley se divorciou
dele depois de descobrir seu caso com a repórter de moda. Hemingway e Pauline
Pfeiffer casaram-se apenas alguns meses depois e deixaram Paris para viver em Key
West no extremo sul da Flórida no ano seguinte.
Eu visitei a casa nos anos setenta. Povoada pelos gatos descendentes da matilha do escritor a casa de amplas
varandas fica próxima do farol. Cuja luz – dizem as más línguas –era
fundamental para que o escritor encontrasse o caminho de casa depois de virar
incontáveis copos em inenarráveis noitadas.
Paris é uma Festa é um livro curto, para ser
degustado lentamente e relido algumas vezes ao longo da vida, que faz quem ama
Paris a amar ainda mais, ao redescobrir a verdadeira e antiga essência da
capital francesa que tanto inspirou e inspira grandes escritores e artistas.
“Paris não tem
fim. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o
façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ela
acabamos regressando. Paris vale sempre a pena e retribui tudo aquilo que lhe
damos”.
Foi verdade. Paris retribuiu o afeto de Hemingway e
– pasme! – em uma de suas horas mais escuras após um dos piores momentos da
história da cidade.
No dia 7 janeiro de 2015,
depois do assassinato de doze pessoas nos escritórios da revista satírica
Charlie Hebdo que sangrou a tradição de
liberdade criativa da França, o Tratado de Tolerância de Voltaire, escrito do século XVIII, alcançou
o topo das listas de best-sellers no país.
Da mesma forma, depois dos
ataques da sexta-feira negra 13 de novembro de 2015 quando, pelas ruas de Paris
foram assassinadas a sangue frio cento e trinta pessoas e sangrada a tradição
da joie de vivre da capital francesa, rolou o renascimento, cinquenta anos após
a sua edição, do livro Paris é Uma Festa.
De acordo com Le Monde, as vendas aumentaram de uma média de dez a quinze
cópias por dia para chegar a quinhentas.
Parte do fenômeno se explica pelo simbólico e
desafiante título do livro em francês: “Paris est une fête”. O certo é
que nos dias que se seguiram aos ataques terroristas, o título em francês do
livro tornou-se uma das duas hashtags campeãs no Twitter e nas mídias sociais, sendo a outra: “#Je suis en terrasse".
Sim, os parisienses ainda
estão do lado de fora, sob o céu de Paris, nas esplanadas e terraços. Não se acovardaram
e continuaram a beber e a comer nos restaurantes, cafés e bares em toda a
cidade. E o livro “Paris É Uma Festa” se tornou um símbolo dessa resistência contra a
brutalidade, orgulhosamente erguido nas mãos das pessoas, sobre as mesas dos
cafés ou deixado entre as flores e velas que homenageavam os mortos nos locais
dos ataques.
Mas o livro também renasceu porque nenhum outro
autor não francês amou Paris tanto quanto Hemingway. Esse sentimento está em
cada parágrafo de Paris É Uma Festa,
mas também nas muitas cartas que o escritor enviou a amigos.
“Estar de
volta a Paris é excitante como o diabo!”
Depois dos atentados, os parisienses feridos
precisavam reencontrar o amor por sua cidade e fizeram isso através dos olhos
de Hemingway e de tantos outros estrangeiros que prestaram tributo à capital
francesa ajudando a manter intacta a imagem brilhante que Paris tem no
imaginário coletivo mundial.
Talvez Paris tenha se lembrado
de Hemingway ao enfrentar o terrorismo porque foi muito amada por ele em meio a
duas outras barbáries. Antes de completar vinte anos, Hemingway testemunhara muito
sofrimento em uma guerra na qual teve uma experiência de quase morte e
ferimentos graves e graças a qual sofreu de terrores noturnos com amigos que
haviam morrido e/ou enlouquecido.
Sim, Paris era uma festa mas
muitos daqueles seus convidados em 1920 já haviam atravessado um inferno. Foi
esse inferno tanto quanto a joie de vivre que ajudaram a criar o escritor Ernest
Hemingway empurrando-o para o pleno conhecimento de seus poderes e tornando-o a
figura de proa da geração perdida.
Assim as páginas de Paris é uma Festa nos levam a
uma introspecção sobre as inseguranças intelectuais da transição para a
maturidade, sobre a submissão da expressão artística às necessidades
financeiras e, principalmente, sobre a percepção um tanto dolorosa da passagem
do tempo, que resta evidenciada quando Hemingway retorna a Paris e nota os
espaços da sua juventude ocupados por outros artistas e movimentos insurgentes.
Um dos relatos parisienses que jamais esquecerei
teve lugar na Rua des Grandes-Augustins, onde Picasso morou enquanto a era do jazz
findava e ele pintava Guernica, com as tintas nubladas pela guerra.
Dizem que em 1944, quando
Paris foi liberada, Hemingway dirigiu um jipe do exército até o prédio de
Picasso e pediu para ver seu velho amigo. Picasso estava no sul da França e o porteiro,
é claro, não o deixou o “americaine” entrar. Ele então teria deixado na
portaria uma caixa de champanhe em cuja tampa teria escrito: "De Hemingway para Picasso". Quando
Picasso finalmente a abriu semanas depois, não encontrou o néctar dos deuses
mas granadas de mão (rsrs)
Naqueles tempos difíceis, em
meio à confusão reinante, a clareza, o senso de humor e de dura realidade de
Hemingway devem ter feito bem a muita gente.
O mundo mudou e muita ação rolou desde o tempo que
Hemingway escrevia no La Closerie des Lilas, mas ele continuou fazendo a vida
toda exatamente o que recomendava nos seus escritos juvenis:
“Escreva
bêbado mas edite sóbrio” (rsrs)
A jornada cheia de confrontos e de tomadas de
consciência experimentada pelos jovens personagens do livro póstumo de
Hemingway pode servir como um abraço a todo jovem adulto que busca descobrir
seu lugar no mundo moderno.
"Quando
se é rapaz e se anda em companhia de homens feitos tem-se de estar preparado
para matar, saber como fazê-lo e realmente ter certeza de que se é capaz de
fazê-lo para que não se metam na sua vida."
Aprisionado no estereótipo do
homem de ação literário romântico e viril, tão americano em essência e tão
pouco propício ao desenvolvimento intelectual ou emocional, Hemingway amadureceu
para se tornar um ícone - o benigno "Papa" da ficção americana - e
também um homem muito doente e infeliz que não nos foi possível ler como lemos
Walt Whitman gritando ao seu Criador:
"Velho, pobre e paralisado, eu Te agradeço".
Mas a caneta mágica do talento
autêntico de Hemingway nunca o abandonou, nem o estilo simples, a descrição
literal e factual do modo como as coisas são e a visão singular da experiência
contemporânea. Hemingway foi o encontro perfeito de um temperamento e de um
tempo, ambos igualmente moldados por agonias de destruição e morte.
Eu diria que tendo conquistado um lugar cativo na
Literatura e no coração de milhões de leitores e iniciado em tantos jovens
tanta paixão literária, tendo sobrevivido a duas guerras, a inúmeros
ferimentos, bombardeios, quedas de avião e desastres amorosos, foi uma imensa
pena e uma perda incomensurável que esse homem tenha posto termo à própria
existência com um tiro de um fuzil de caça, quando tinha a minha idade.
A escrita de Ernest Hemingway
bela e exata e com uma classe eterna e as suas incríveis histórias me acompanharão
por toda a vida. Sempre li o autor com muito respeito acreditando que, tendo
ele visto e compreendido o melhor e o pior da vida, usara seu talento para
abrir o mundo a seus leitores.
Como um desses grandes e raros
professores com quem a gente aprende a aprender e a ser homem, e mais, a ser
humano.
Ernest Hemingway, mais até do que
Paris, é a festa que jamais se esquece:
“Não
existe um assunto para se escrever. Tudo o que você tem que fazer é sentar
diante de uma folha de papel e sangrar.”