fotografia WBJ |
Wilson Baptista Junior
Essa muralha que se vê do lado direito da fotografia e que protege todo
o porto de Akko foi construída com as pedras daquela que foi a maior fortaleza
dos cavaleiros cruzados na Terra Santa.
A sua história guarda os ecos dos encontros dos inimigos, às vezes
cavalheirescos e mais vezes nem tanto, das histórias da minha infância, o valente
Ricardo Coração de Leão e o generoso Salah ad-Din, o sultão Saladino, heróis de
tantos livros e de tantos filmes. Quem de nós, quando menino, não amarrou um
pedaço de pano no pescoço e pegou numa espada de madeira para brincar de cavaleiro?
Ainda que nem todos tenhamos chegado ao extremo do velho e engenhoso fidalgo de lança na parede e adarga antiga que foi um dos meus primeiros amigos...
Akko, ou Acre, ou São João de Acre, como era chamada pelos cruzados, fica
no extremo norte da baía de Haifa, já quase na fronteira de Israel com o
Líbano. Habitada desde a Idade do Bronze e através dos tempos bíblicos, porto
fortificado pelos gregos e ampliado pelos romanos que construíram um quebramar
para transformá-lo num porto de águas profundas (quebramar que, como o de
Cesaréia, está hoje submerso), ocupado pelos muçulmanos depois da queda do
Império, Akko foi sempre um dos portos principais e estratégicos na costa leste
do Mediterrâneo.
Quando os cruzados tomaram Jerusalém pela primeira vez e lá estabeleceram sua sede de
governo na Palestina, liderados por Godofredo de Bouillon, eles não conseguiram
derrotar os defensores muçulmanos de Akko até depois da morte de Godofredo,
quando seu irmão Balduíno I assumiu o trono e com a ajuda de uma frota genovesa
e depois de meses de cerco conseguiu a rendição dos defensores em 1104.
Compreendendo a importância do porto para o controle da Palestina, os
cruzados construíram uma fortificação imensa que protegia a cidade com muralhas
e fortes do lado do mar e, do lado da terra, uma muralha com um grande fosso
que isolava Akko da terra firme.
Lado interno das muralhas (fotografia WBJ) |
Toda essa fortificação pouca valia teve quando em 1187 o sultão
Saladino, em retaliação à quebra pelos cruzados da trégua acordada entre cristãos
e muçulmanos, conseguiu atrair os cavaleiros europeus, que julgaram desonroso
se esconder atrás de suas muralhas, para uma luta em campo aberto onde os
muçulmanos destruíram a maior parte dos exércitos cristãos. Sem apoio, a
guarnição que tinha ficado em Akko se rendeu e Saladino prosseguiu a campanha até
ocupar Jerusalém.
Os cruzados que tinham sobrado voltaram e sitiaram Akko, mas não
conseguiram vencer as fortificações que eles próprios tinham construído. Pelo
menos tiveram a satisfação de saber que tinham construído bem...
Só três anos depois a Terceira Cruzada, liderada por Ricardo Coração de Leão e
Filipe Augusto de França, conseguiu reconquistar Akko, que se transformou na
cabeça de ponte dos cruzados numa terra dominada pelos muçulmanos.
Durante os cem anos seguintes Akko foi a capital do reino cristão
reestabelecido na Palestina, até ser novamente conquistada pelos guerreiros mamelucos
em 1291.
As “tropas de elite” dos cruzados, os guerreiros Teutônicos, Templários
e Hospitalários, tinham forte presença nas fortificações de Akko. Os Cavaleiros
de São João (os Hospitalários), de onde a cidade tomou o nome de São João de
Acre, tinham lá seu quartel general.
Após a reconquista os mamelucos destruíram quase toda a cidade, para
evitar que pudesse voltar a ser utilizada pelos cruzados como base naval.
No século dezesseis o Império Otomano incorporou a cidade. Novas
muralhas foram levantadas, usando o material das antigas, e várias construções importantes
foram erguidas, como a mesquita de Al Jazzar, construída com pedras retiradas
das ruinas de Cesaréia e do castelo de Atlit (outra fortificação cruzada naquela costa), e
o banho turco.
Para construir em cima o seu próprio palácio, o Paxá Jazzar mandou
encher de terra toda a cidadela dos Hospitalários. E ao longo dos séculos a
maior parte das antigas fortificações e da antiga cidade foi desaparecendo debaixo
de novas ruas e novas construções.
Na segunda metade do século XX arqueólogos descobriram, debaixo da cidadela otomana, que tinha sido transformada em prisão
depois que os ingleses ocuparam a Palestina em 1918, uma construção muito
mais antiga, que se revelou ser parte da cidadela dos Cavaleiros Hospitalários.
Na década de noventa começou uma escavação sistemática que permitiu ir
abrindo gradualmente a cidadela à visitação. Quando estivemos lá, em 1998, não
pudemos entrar em todas as partes que já estavam sendo abertas, ainda não eram
consideradas seguras, mas o que vimos já dava para ter uma boa noção do que era
o castelo.
As dimensões são impressionantes. As colunas que sustentam o teto do antigo
salão do refeitório dos cavaleiros, hoje reforçadas com cintas metálicas, têm
uns três metros de diâmetro e o teto está a dez metros de altura. O salão tem quinze
metros de largura e trinta de comprimento. E há um outro, quase três vezes
maior, que servia de hospital e do qual só pudemos na época ver uma parte. Imaginem...
Para assegurar o abastecimento de água, além de um poço dentro dos muros
a fortaleza tinha um sistema de coleta da água da chuva que caía em dois
grandes reservatórios interligados, com tetos abobadados de mais de sete metros
de altura. Tudo lá era nessa escala...
Enquanto andávamos dentro da fortaleza, impossível não imaginar e reviver
o clima daquela época, a tensão permanente de uma cidadela em guerra, a
vigilância das sentinelas, a entrada e saída dos batedores encarregados de
vigiar a terra, o alívio ao ver chegar são e salvo um navio com notícias de
longe, a preocupação com o que ia acontecer na viagem de outro que partia, e
enquanto isso os afazeres cotidianos que iam acontecendo numa cidade
perpetuamente alerta...
Nada muito diferente, talvez, do que vem acontecendo desde sempre
naquela terra conflagrada.
Impossível também não pensar no que deviam sentir aqueles monges
guerreiros, que, ao contrário da nobreza e dos aventureiros da época, que iam
para as Cruzadas para ganhar indulgências e voltar, ou assim esperavam, carregados de
glória e de despojos de guerra, deixavam para trás suas terras e suas famílias
para ir viver e morrer numa terra inimiga, com a missão de proteger e ajudar os
peregrinos em busca da Terra Santa.
Muitos deles repousam hoje na cripta da igreja da fortaleza.
Lápide do túmulo de um cavaleiro hospitalário (fotografia WBJ) |
Nos anos que se seguiram à nossa visita, a maior parte da cidadela foi
escavada e aberta à visitação e algumas partes restauradas. Tenho pena de não
ter visto o “Túnel dos Templários”, um túnel de trezentos e cinquenta metros que
ligava a cidadela ao porto e que foi aberto à visitação um ano depois que
estivemos lá. Bem, quem sabe um dia...
Mais um artigo importante postado pelo Mano sobre o Oriente Médio.
ResponderExcluirAs fotos, o relato bem feito, constituem um testemunho primoroso da história, onde poucas pessoas tiveram este privilégio de colocar seus pés nesta região e sentirem as emoções de um tempo que foi decisivo para o rumo da humanidade ocidental.
Tuas postagens, Wilson, eu também as copio e armazeno em pastas especiais, diante desta importância dos detalhes mencionados e os registros feitos, que me possibilitam viajar para locais onde jamais irei conhecê-los, porém através desses artigos tão minuciosos eles me possibilitam conhecer localidades que, mesmo se eu as tivesse visitado, certamente teria deixado de lado esses locais de grande significado histórico!
Belíssima aula de história e geografia, Wilson, pelo qual agradeço penhoradamente esta tua boa vontade em nos brindar com este registro perfeito.
Um grande abraço.
Saúde e paz.
Chicão, fico feliz de você ter gostado. Eu gostei muito de andar por lá. Gostaria de ter podido ficar um pouco mais de tempo e ido a alguns outros lugares. Mas valeu muito a pena.
ExcluirWilson,
ResponderExcluir"Quem de nós, quando menino, não amarrou um pedaço de pano no pescoço e pegou numa espada de madeira para brincar de cavaleiro?"
Devo confessar que quando moleque não dava muita bola para os heróis da cavalaria Ricardo e Saladino mas como brinquei de capa-e-espada e destrui incontáveis inimigos - e cabos de vassoura - lutando muito melhor do que o D'Artagnan, o Robin Hood, o Ivanhoé e o Zorro, nos intervalos, é claro, das performances como Tarzan, o Fantasma e o Vigilante Rodoviário.(rsrs)
Os seus ótimos post e fotos da Fortaleza de São João do Acre me fizeram viajar na poltrona. Viajar,seja na real ou nas leituras, é fundamentalmente o que você descreve: a alteridade.
Imaginar outras situações, entender outros valores, valorizar outras culturas , colocar-se em outros sapatos e sacar que numa aldeia global "perpetuamente alerta" todos dependemos de todos. E torcer...
O conflito atual não pode ser entendido sem seus meandros emocionais subjacentes, as profundas feridas que remontam às Cruzadas.
Obrigado por uma bela viagem
Me faz feliz saber que um viajante como você viajou um pouquinho no meu relato. De fato, daria muita conversa pensar nos dois lados das feridas, tanto nas Cruzadas como na invasão da Península Ibérica, que tanto moldou a nossa ascendência, a minha, a sua, e a de quase todo o mundo aqui.
Excluir1)Mano está se revelando ótimoo historiador e dos bons, acompanhando belas fotografias.
ResponderExcluir2)Passeei, visitei e muito gostei das descrições.
3)Me até vontade de entrevistar essas paredes milenares, partindo do ditado popular: "as paredes tem ouvidos".
4)É possível sim, as nossas conversas ficam gravadas nas paredes, são Energias e Energias não morrem, transformam-se.
5)Um dia escrevo-lhe sobre isso...
6)Ditado popular = voz de Povo, voz de Deus !
Obrigado, Antonio. Creio que você gostaria muito de "entrevistar" a última parede que sobrou do Templo, que os judeus chamam de "Muro das Lamentações". Imagine tudo o que já foi dito lá, antes e depois da sua destruição...
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