-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

29/03/2017

Os Cavaleiros de São João

fotografia WBJ


Wilson Baptista Junior
Essa muralha que se vê do lado direito da fotografia e que protege todo o porto de Akko foi construída com as pedras daquela que foi a maior fortaleza dos cavaleiros cruzados na Terra Santa.
A sua história guarda os ecos dos encontros dos inimigos, às vezes cavalheirescos e mais vezes nem tanto, das histórias da minha infância, o valente Ricardo Coração de Leão e o generoso Salah ad-Din, o sultão Saladino, heróis de tantos livros e de tantos filmes. Quem de nós, quando menino, não amarrou um pedaço de pano no pescoço e pegou numa espada de madeira para brincar de cavaleiro?
Ainda que nem todos tenhamos chegado ao extremo do velho e engenhoso  fidalgo de lança na parede e adarga antiga que foi um dos meus primeiros amigos...
Akko, ou Acre, ou São João de Acre, como era chamada pelos cruzados, fica no extremo norte da baía de Haifa, já quase na fronteira de Israel com o Líbano. Habitada desde a Idade do Bronze e através dos tempos bíblicos, porto fortificado pelos gregos e ampliado pelos romanos que construíram um quebramar para transformá-lo num porto de águas profundas (quebramar que, como o de Cesaréia, está hoje submerso), ocupado pelos muçulmanos depois da queda do Império, Akko foi sempre um dos portos principais e estratégicos na costa leste do Mediterrâneo.
Quando os cruzados tomaram Jerusalém pela primeira vez e lá estabeleceram sua sede de governo na Palestina, liderados por Godofredo de Bouillon, eles não conseguiram derrotar os defensores muçulmanos de Akko até depois da morte de Godofredo, quando seu irmão Balduíno I assumiu o trono e com a ajuda de uma frota genovesa e depois de meses de cerco conseguiu a rendição dos defensores em 1104.
Compreendendo a importância do porto para o controle da Palestina, os cruzados construíram uma fortificação imensa que protegia a cidade com muralhas e fortes do lado do mar e, do lado da terra, uma muralha com um grande fosso que isolava Akko da terra firme.
Lado interno das muralhas (fotografia WBJ)

Toda essa fortificação pouca valia teve quando em 1187 o sultão Saladino, em retaliação à quebra pelos cruzados da trégua acordada entre cristãos e muçulmanos, conseguiu atrair os cavaleiros europeus, que julgaram desonroso se esconder atrás de suas muralhas, para uma luta em campo aberto onde os muçulmanos destruíram a maior parte dos exércitos cristãos. Sem apoio, a guarnição que tinha ficado em Akko se rendeu e Saladino prosseguiu a campanha até ocupar Jerusalém.
Os cruzados que tinham sobrado voltaram e sitiaram Akko, mas não conseguiram vencer as fortificações que eles próprios tinham construído. Pelo menos tiveram a satisfação de saber que tinham construído bem...
Só três anos depois a Terceira Cruzada, liderada por Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto de França, conseguiu reconquistar Akko, que se transformou na cabeça de ponte dos cruzados numa terra dominada pelos muçulmanos.
Durante os cem anos seguintes Akko foi a capital do reino cristão reestabelecido na Palestina, até ser novamente conquistada pelos guerreiros mamelucos em 1291.
As “tropas de elite” dos cruzados, os guerreiros Teutônicos, Templários e Hospitalários, tinham forte presença nas fortificações de Akko. Os Cavaleiros de São João (os Hospitalários), de onde a cidade tomou o nome de São João de Acre, tinham lá seu quartel general.
Após a reconquista os mamelucos destruíram quase toda a cidade, para evitar que pudesse voltar a ser utilizada pelos cruzados como base naval.
No século dezesseis o Império Otomano incorporou a cidade. Novas muralhas foram levantadas, usando o material das antigas, e várias construções importantes foram erguidas, como a mesquita de Al Jazzar, construída com pedras retiradas das ruinas de Cesaréia e do castelo de  Atlit (outra fortificação cruzada naquela costa), e o banho turco. 
Pátio da mesquita de Al-Jazzar e uma das salas do banho turco (fotografias WBJ)

Para construir em cima o seu próprio palácio, o Paxá Jazzar mandou encher de terra toda a cidadela dos Hospitalários. E ao longo dos séculos a maior parte das antigas fortificações e da antiga cidade foi desaparecendo debaixo de novas ruas e novas construções.
Na segunda metade do século XX arqueólogos descobriram, debaixo da cidadela otomana, que tinha sido transformada em prisão depois que os ingleses ocuparam a Palestina em 1918, uma construção muito mais antiga, que se revelou ser parte da cidadela dos Cavaleiros Hospitalários. 
Pátio central da cidadela dos Hospitalários , debaixo da prisão de Akko (fotografia WBJ)

Na década de noventa começou uma escavação sistemática que permitiu ir abrindo gradualmente a cidadela à visitação. Quando estivemos lá, em 1998, não pudemos entrar em todas as partes que já estavam sendo abertas, ainda não eram consideradas seguras, mas o que vimos já dava para ter uma boa noção do que era o castelo.
As dimensões são impressionantes. As colunas que sustentam o teto do antigo salão do refeitório dos cavaleiros, hoje reforçadas com cintas metálicas, têm uns três metros de diâmetro e o teto está a dez metros de altura. O salão tem quinze metros de largura e trinta de comprimento. E há um outro, quase três vezes maior, que servia de hospital e do qual só pudemos na época ver uma parte. Imaginem... 
Salão do refeitório (fotografia WBJ)
Para assegurar o abastecimento de água, além de um poço dentro dos muros a fortaleza tinha um sistema de coleta da água da chuva que caía em dois grandes reservatórios interligados, com tetos abobadados de mais de sete metros de altura. Tudo lá era nessa escala... 
Um dos reservatórios, e a passagem de interligação (fotografias WBJ)
Enquanto andávamos dentro da fortaleza, impossível não imaginar e reviver o clima daquela época, a tensão permanente de uma cidadela em guerra, a vigilância das sentinelas, a entrada e saída dos batedores encarregados de vigiar a terra, o alívio ao ver chegar são e salvo um navio com notícias de longe, a preocupação com o que ia acontecer na viagem de outro que partia, e enquanto isso os afazeres cotidianos que iam acontecendo numa cidade perpetuamente alerta...
Nada muito diferente, talvez, do que vem acontecendo desde sempre naquela terra conflagrada.
Impossível também não pensar no que deviam sentir aqueles monges guerreiros, que, ao contrário da nobreza e dos aventureiros da época, que iam para as Cruzadas para ganhar indulgências e voltar, ou assim esperavam, carregados de glória e de despojos de guerra, deixavam para trás suas terras e suas famílias para ir viver e morrer numa terra inimiga, com a missão de proteger e ajudar os peregrinos em busca da Terra Santa.

Muitos deles repousam hoje na cripta da igreja da fortaleza.
Lápide do túmulo de um cavaleiro hospitalário (fotografia WBJ)

Nos anos que se seguiram à nossa visita, a maior parte da cidadela foi escavada e aberta à visitação e algumas partes restauradas. Tenho pena de não ter visto o “Túnel dos Templários”, um túnel de trezentos e cinquenta metros que ligava a cidadela ao porto e que foi aberto à visitação um ano depois que estivemos lá. Bem, quem sabe um dia...



6 comentários:

  1. Francisco Bendl29/03/2017, 08:54

    Mais um artigo importante postado pelo Mano sobre o Oriente Médio.

    As fotos, o relato bem feito, constituem um testemunho primoroso da história, onde poucas pessoas tiveram este privilégio de colocar seus pés nesta região e sentirem as emoções de um tempo que foi decisivo para o rumo da humanidade ocidental.

    Tuas postagens, Wilson, eu também as copio e armazeno em pastas especiais, diante desta importância dos detalhes mencionados e os registros feitos, que me possibilitam viajar para locais onde jamais irei conhecê-los, porém através desses artigos tão minuciosos eles me possibilitam conhecer localidades que, mesmo se eu as tivesse visitado, certamente teria deixado de lado esses locais de grande significado histórico!

    Belíssima aula de história e geografia, Wilson, pelo qual agradeço penhoradamente esta tua boa vontade em nos brindar com este registro perfeito.

    Um grande abraço.
    Saúde e paz.


    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Chicão, fico feliz de você ter gostado. Eu gostei muito de andar por lá. Gostaria de ter podido ficar um pouco mais de tempo e ido a alguns outros lugares. Mas valeu muito a pena.

      Excluir
  2. Moacir Pimentel29/03/2017, 16:27

    Wilson,
    "Quem de nós, quando menino, não amarrou um pedaço de pano no pescoço e pegou numa espada de madeira para brincar de cavaleiro?"
    Devo confessar que quando moleque não dava muita bola para os heróis da cavalaria Ricardo e Saladino mas como brinquei de capa-e-espada e destrui incontáveis inimigos - e cabos de vassoura - lutando muito melhor do que o D'Artagnan, o Robin Hood, o Ivanhoé e o Zorro, nos intervalos, é claro, das performances como Tarzan, o Fantasma e o Vigilante Rodoviário.(rsrs)
    Os seus ótimos post e fotos da Fortaleza de São João do Acre me fizeram viajar na poltrona. Viajar,seja na real ou nas leituras, é fundamentalmente o que você descreve: a alteridade.
    Imaginar outras situações, entender outros valores, valorizar outras culturas , colocar-se em outros sapatos e sacar que numa aldeia global "perpetuamente alerta" todos dependemos de todos. E torcer...
    O conflito atual não pode ser entendido sem seus meandros emocionais subjacentes, as profundas feridas que remontam às Cruzadas.
    Obrigado por uma bela viagem

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Me faz feliz saber que um viajante como você viajou um pouquinho no meu relato. De fato, daria muita conversa pensar nos dois lados das feridas, tanto nas Cruzadas como na invasão da Península Ibérica, que tanto moldou a nossa ascendência, a minha, a sua, e a de quase todo o mundo aqui.

      Excluir
  3. 1)Mano está se revelando ótimoo historiador e dos bons, acompanhando belas fotografias.

    2)Passeei, visitei e muito gostei das descrições.

    3)Me até vontade de entrevistar essas paredes milenares, partindo do ditado popular: "as paredes tem ouvidos".

    4)É possível sim, as nossas conversas ficam gravadas nas paredes, são Energias e Energias não morrem, transformam-se.

    5)Um dia escrevo-lhe sobre isso...

    6)Ditado popular = voz de Povo, voz de Deus !

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Antonio. Creio que você gostaria muito de "entrevistar" a última parede que sobrou do Templo, que os judeus chamam de "Muro das Lamentações". Imagine tudo o que já foi dito lá, antes e depois da sua destruição...

      Excluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.