Patchwork (tapetes no Afeganistão - foto aérea de Andrew Smith, em "Afghanistan Matters"- wikimedia commons) |
Heraldo
Palmeira
Nos reunimos sem motivo definido, apenas pelo
prazer de estarmos juntos naquela noite pós-Carnaval. A sala ampla, arejada e
acolhedora cumpria o seu melhor e costumeiro papel: abrigar uma boa roda de
conversas para cada um relembrar momentos marcantes. Ao redor de comida e
bebida das boas, parecíamos alfaiates juntando retalhos da vida para vestir
nossas almas.
Vivemos a juventude em outra época, todos livres
e viciados em traquinagens e afetos – deve ser por isso que nossa geração tem
como característica manter tantos amigos pela vida inteira.
Os mais jovens da sala, nossos filhos e
sobrinhos, estavam incrédulos diante dos relatos das reprimendas pesadas que nossos
pais aplicavam – os mesmos velhinhos fofinhos que eles convivem hoje no chamego
de netos e avós. Palmadas, castigos e surras eram parte do cotidiano, na medida
exata das molecagens que produzíamos. Mas sobrevivemos sem traumas e nos descobrimos
agradecidos e apaixonados por aquelas figuras aparentemente severas demais, que
nos ensinaram a ser quem somos.
Alguém lembrou a história de uma tia que, com a
paciência esgotada pela arenga interminável – que começou na hora do almoço – entre
um casal de filhos, deu uma surra em ambos, obrigou-os a ficar abraçados de rostos
colados, e amarrou-os (abraçados) com uma corda de sisal pela tarde inteira
“para recuperarem a amizade de irmãos”. Os irmãos, hoje cinquentões, lembram
daquela tarde com carinho e riem juntos com a mãe noventona, tratada como
rainha por todos nós da família.
Outro lembrou do dia em que subiu no telhado,
destelhou boa parte da casa e foi para a escola. A mãe, depois de providenciar
o reparo, foi dormir o sagrado sono da tarde, mas deixou recomendado que fosse
acordada assim que o traquinas pisasse em casa. Dito e feito, aplicou-lhe uma
surra memorável e voltou tranquilamente ao quarto para completar a sesta
interrompida. Filho cinquentão e mãe setentona vivem grudados desde sempre, num
amor interminável. O velho pai, também famoso pelo rigor de outrora, acompanha
tudo com o sorriso escancarado e o ar de quem acertou nas doses.
Outra falou de Mariquita, a escova de lustrar
sapatos, madeira de um lado e cerdas do outro, que seus pais ampliaram o uso
para palmatória. Quando havia traquinagem pendente, o filho a ser punido recebia
a missão de ir buscar a danada para a expiação da falta cometida.
Uma das jovens ficou curiosa: “E se você se
recusasse a ir buscar?”. A narradora foi didática: “A quantidade de palmadas
aumentaria! Para que piorar o que já estava ruim?”. Hoje, ela cinquentona e os
pais oitentões, ao lado dos outros filhos (quarentões em diante) que foram acarinhados
por Mariquita seguem firmes rindo de suas ótimas histórias e as reuniões
familiares são esplendorosas.
Os meninos e meninas da sala pareciam perceber
que nós nos divertíamos bem mais quando passamos pela idade deles. Não tínhamos
tecnologia nenhuma, dessas de hoje que entregam tudo pronto, mas éramos
imbatíveis para imaginar e executar traquinagens e desvendar grandes segredos
da vida.
A estrutura social da época se montava com laços
entre famílias que, mesmo sem parentesco, iam se aparentando a partir das
amizades entre pais e pais, filhos e filhos. Eram tempos bem diferentes, com
poucas facilidades modernas, onde os vínculos afetivos moldavam nossas vidas.
A maioria da população vivia em pobreza digna, o
que gerava uma espécie de linguagem comum para todos seguirem avançando porque as
lutas eram muito similares. Vivíamos cercados de histórias extraordinárias e
comoventes de superação. O anfitrião daquela noite memorável lembrou de uma
delas, vivenciada por um velho amigo.
Certa noite, o rapaz foi com a mãe ao teatro
assistir a um show de um cantor famoso que ela gostava muito. Casa cheia, show
transcorrendo, o filho foi ao banheiro.
Quando voltou, já fazia parte de uma cena
inesquecível: Benito di Paula resolveu descer à plateia e sentou na única poltrona
vazia, ao lado da velha senhora. A mágica se fez quando delicadamente cantaram
em dueto.
A plateia emocionada cantou junto cada palavra
de Retalhos de cetim, com o facho de
luz transferindo para aquelas duas poltronas um pedacinho do céu da história
daquela mulher.
Na cabeça do filho paralisado pela emoção,
passou cada segundo da história da sua vida e a saudade do pai falecido, que,
homem de luta, construiu a casa da família tijolo a tijolo nos finais de tarde
depois do trabalho diário, e nos finais de semana.
O filho também lembrou do momento de decisão familiar: ou continuavam a pagar o aluguel de onde viviam e paralisavam a construção, ou mudavam para a obra em andamento. A velha senhora de agora, que ali flutuava nas nuvens da música cantando com seu ídolo, bancou o sonho do marido.
Nos primeiros tempos, ainda inacabada, a casa
não tinha portas, apenas retalhos para garantir um mínimo de privacidade aos
moradores. À noite, o gigante amoroso vestido de chefe de família dormia seu
sono aos pedaços, do lado de fora, para velar o sono tranquilo daquela senhora
e dos seus filhos, espalhados em colchões pelo chão.
As lágrimas desceram sem contenção lavando a saudade do pai, que pegava sempre o violão e repetia apaixonado aquela mesma Retalhos de cetim como hino oficial do amor de vida inteira que viveu com a esposa. Por certo a mágica do destino preparou aquele dueto acompanhado com plateia enorme, deixando no ar a suspeita de que o céu também mexeu alguns pauzinhos.
Ouvimos o relato do anfitrião com os olhos
marejados na sala ampla, arejada e acolhedora. Éramos alfaiates juntando
retalhos coloridos das nossas vidas, para vestir nossas almas e morrer de
saudade no desfile do tempo.
Cada um de nós naquela sala, navegantes do tempo,
gastou tudo em fantasia. Era tudo o que a gente queria e a vida jurou desfilar.
E desfilou.
Curta aqui uma bela versão de Retalhos de cetim:
https://www.youtube.com/watch?v=M2oJRbXLOHg
https://www.youtube.com/watch?v=M2oJRbXLOHg
(*) Dedicado às
encantadoras histórias de vida que acontecem todos os dias.
Olá Heraldo,
ResponderExcluir"Éramos alfaiates juntando retalhos coloridos da nossa vida para vestir nossas almas".
Lindo! Você faz poesia só em prosa ou também em versos?
Seu texto me faz lembrar com saudade de muitos encontros da minha casa. Como certamente vai fazer com os outros leitores. Saudade mais saudade mais melancolia mais felicidade de ter vivido tanta coisa boa!
Sabe o que é quase mais lindo nos seus textos? Os títulos!
Obrigada,
Até mais .
Ana,
ExcluirObrigado pelo comentário sempre generoso.
A poesia é muito nobre para mim, sou apenas um letrista de música ocasional. Algumas gravadas ao longo do tempo por artistas independentes. Quanto aos títulos, os textos ficam mandando recados. Até mais.
E continua poetando como"letrista de música ocasional"!
Excluir1) Lindo vídeo; belíssima canção. Grande Benito de Paula !
ResponderExcluir2)Ilustração ótima do Mano !
3)Parabéns Palmeira (eu sou torcedor do Palmeiras)um artigo importantíssimo que nos fala sobre a Educação muito boa de antigamente. Valeu !
Antonio,
ExcluirObrigado. Sim, você está certo: uma educação que hoje seria vítima dessa baboseira do politicamente correto gerou gente como nós. Por certo, não eram nossos pais que estavam errados.
Caro Heraldo confesso que chorei ao ler sua narrativa ...quanta saudade !!! Costumamos fazer também essas reuniões de amigos,e aqui em casa, quando a família está reunida , normalmente sentados à mesa , meus filhos relembram suas traquinagens. Meus netos ao ouví-los, retrucam : " Vocês tiveram infância ! " . Um " xero " para você e seus queridos amigos.
ResponderExcluirQue bom, Dulce Regina, te ver por aqui!
ExcluirAté mais mesmo! Sentimos saudades!
Dulce,
ExcluirObrigado. Sua emoção é a de qualquer pessoa que, como nós - e bem dizem seus netos - tivemos infância. E o "xêro" que usamos por aqui, escrito assim, parece ter o condão de manter o elo com esse pedaço humano que carregamos e por vezes esquecemos de valorizar. Que a saudade seja sempre porta-voz de momentos felizes assim.
Bem que eu disse que esse também ia despertar lembranças...
ResponderExcluirVocê tem o segredo de saber buscar nos casos de cada um as emoções de nós todos. É sempre um prazer ler.
Sim, senhor, você cantou a pedra. Estou feliz porque as histórias estão todas aí e tenho a sorte de juntar um pouquinho delas.
ExcluirOlá Moacir num comentário extra texto,
ResponderExcluirNa primeira vez em que aqui entrei foi para falar que não tinha jeito, jå estava amiga de vocês. E hoje descubro muitas coisas inesperadas de vocês, homens, graças aos comentários, principalmente seus e do Heraldo e dos amigos..Por exemplo, que vocês são amorosos entre si (surpresa!) e que foram muito mais levados que as meninas ( amadurecimento nosso ou peraltices de gênero?).
De qualquer maneira é muito divertido e curioso. Por favor, continuem me surpreendendo.Nós, mulheres, achamos que sabemos tudo de vocês, ilusão pura. Pare, não fique cheio de si!
Descubro muito com a dissidência carinhosa do Voz de Trovão, e a calma( não sei se benevolência) do Antônio. E por aí vai.
Até mais diabruras, para focar na geração.
Aninha,
ExcluirApesar da minha inata rebeldia e permanente dissidência, Voz de Trovão também diminui o som da sua fala quando diante de pessoas que tanto estima e admira, que deseja tanta alegria e felicidades, e consegue murmurar em tons serenos, Muito Obrigado!
Abraço, forte, caloroso e fraterno, extensivo ao Mano.
Saúde e paz.
Lindo Heraldo, me fez chorar de emoção.
ResponderExcluirSeu texto em prosa é também poesia.
Abraços
Ana Lucia
Oi Heraldo.
ResponderExcluirpai e mãe são para a vida além da morte, lembranças mil.
Você sabe que meu pai me deu uma única palmada? Mas inflou a minha calcinha, eu só estava de calcinha, era muito menina.
Ele passava a enceradeira no meu quarto pra minha mãe, que tinha DUAS mineiras pra fazer tudo dentro de casa, Margarida e Geralda. Assim mesmo, ele ajudava de vez em quando.
Sabe por que levei palmada? A janela estava aberta e eu queria ver o pai da Lúcia passar, porque ele acenava pra mim. Eu não alcançava a janela e ficava pulando pra ver. Quando ameacei botar o pé na enceradeira parada, meu pai avisou pra não 'subir', que eu jogaria a enceradeira no chão. Mas a vontade de ver o rosto roliço do seu Paulo, de óculos, dando adeuzinho pra mim foi mais forte. Botei o pé, a enceradeira caiu e lá veio a palmada. Os dedos dele ficaram impressos na bundinha. Chorei toda a vida. Minha mãe e Margarida sorriam enquanto passavam algo que já não lembro mais o que era no meu traseiro. Gelo? Álcool? Pomada? Sei lá.
Palmada de amor não dói, ou se dói passa logo. Pouco depois eu estava de pé e sem nenhuma mágoa no coração por aquele homem que me amava mais que tudo.
Acho, Heraldo, que onde tem música tem alegria, felicidade. Gostei de ver o Benito, o Zeca...
Não ouço falar do Benito faz tempo. Ele é vivo? Mora no Rio? Toca piano muito bem.
O que você escreve sempre me traz boas recordações, Heraldo poeta.
Boa tarde, até mais ver.
Ofelia
Simplesmente FANTÁSTICO!!!! Eu diria "do c.....", mas seria sensurado!!Ahahaha...Como sempre você arrasa e brinca com as palavras numa maestria invejável meu querido!! Parabéns pra tu!! Bjoss
ResponderExcluirPalmeira,
ResponderExcluirBelo texto. Nostálgico, bem escrito, irrepreensível.
Não devo me alongar em elogios porque o artigo não pode ser melhorado desta forma, pois completo, absoluto.
Um abraço.
Saúde e paz.
Interessante. Nossos pais eram pais. Nós, filhos, reconheciamos sua autoridade. Em que dobra do tempo perdeu-se essa noção?
ResponderExcluirAmigo, suas narrativas são enebriantes!
ResponderExcluirA propósito do assunto, lembrei-me que minha filha, na reunião pós batizado de sua filha Pietra, minha quinta Neta, confessou diante do marido e dos sogros que na época de sua adolescente não entendia porque eu era tão severo (confesso que eu mesmo não entendia; apenas seguia meu instinto de Pai) mas que agora, tendo um filho de 5 anos e uma bebê de 4 meses, entende perfeitamente ...
Mestre Heraldo e Donana,
ResponderExcluirMais um grande texto dessa BIC inspirada e movida pela exigência de talento e coração verdadeiros.Clap,clap,clap!
Quanto às diferenças e igualdades e essas coisas ótimas do enredo Me-Tarzan-You-Jane, ainda estou me alfabetizando e ficando esperto na matéria (rsrs)
Sobre as histórias de ontem e nelas os nossos pais-heróis, acho que o que nos ficou de todas elas, profundamente, foi que ao crescer e perceber que eles não eram todo-poderosos e imortais , nós entendemos o quanto foram homens e mulheres formidáveis.
De resto a vida continua do jeito que sempre foi e nela os elos inquebrantáveis. Tudo bem que nós soltávamos pipa na rua e nossos filhos brincavam nos plays e nossos netos brincam nas brinquedotecas...Tudo bem nossos avós nos contavam histórias sob à luz de candeeiros e eu hoje as invento disputando com os aplicativos. Mas como nós ontem os netos de hoje ainda dizem: Conta mais , vô!
Então vamos à lida e à vida sem esquecer que há muito fomos pais e que os modestos heróis tupiniquins dos nossos moleques e dos moleques deles, os amados velhinhos de amanhã , embora ainda "em formação" já somos todos ....NÓS!
Abração
Texto maravilhoso. Para mim, foi como uma viagem no tempo, só que para o passado, onde as palmadas se misturavam com riso tardio a comemorar a fuga do ardor das marcas deixadas pelo cinto de couro.
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