Homem da Meia Noite - fotografia de Antonio Crus (Agencia Brasil / Creative Commons) |
Heraldo Palmeira
A maioria
dos tambores já silenciou, depois do repuxo de tantos dias de folia. Sobraram
os foliões profissionais dos principais templos do Carnaval, esticando a corda
com blocos criados para dar sobrevida ao reinado da alegria.
Um amigo
querido ligou indignado com a quantidade de pessoas que a mídia estipulou para
alguns momentos do último Carnaval – fato comum nos grandes eventos brasileiros,
e que vira manchete dos telejornais por falta de assunto melhor.
Instigado por
esse amigo, convido você a marcar no chão um quadrado simples. Deve, apenas, ser
um quadrado perfeito, com quatro lados de um metro cada. Agora chame três
pessoas que estiverem por perto e entre com elas nessa trapizonga.
Pois bem,
quatro pessoas por metro quadrado é o padrão para medir grandes multidões,
quando se diz que o lugar está superlotado, “botando gente pelo ladrão!”.
No Rio, o
Cordão do Bola Preta teria arrastado 2,5 milhões de pessoas em seu cortejo
folião. “Não cabe!” – vociferou aquele meu amigo indignado do telefonema. “É
uma questão simples de matemática. Basta calcular a metragem do espaço e
colocar quatro pessoas por metro quadrado, que já significa um aperto danado”,
complementou o arquiteto que também pilota helicópteros, experimentado em fazer
coberturas jornalísticas aéreas.
Matéria de
jornal lançou realismo sobre o número ao afirmar que, com muito boa vontade, o
cortejo alcançou 540 mil pessoas – colocando dez pessoas por metro quadrado no
espaço urbano em que passou o cortejo, o que seria insuportável e praticamente
impossível sob as leis da física. Basta a gente olhar para aquele quadrado
perfeito de um metro por um metro e tentar colocar dez pessoas dentro dele.
E o meu
amigo volta à carga, implacável. “Trabalhei com o helicóptero fazendo cobertura
aérea durante o Carnaval. Dois milhões de pessoas no Galo da Madrugada? A
população da cidade do Recife é de cerca de um milhão e meio! Enquanto o bloco
desfilava, também sobrevoei Olinda. Estava tudo lotado por lá. Será que não
tinha ninguém do Recife nas ladeiras da vizinha?”.
Para esse
número bater com a realidade, é como se todo mundo que vive no Recife estivesse
em cima daquela ponte ou nas ruas do derredor. Sem ficar ninguém em casa.
Ninguém. Nem os velhinhos que já não se locomovem. Até os internos das UTIs e
os presidiários precisariam ajudar na conta. Motoristas e cobradores de ônibus,
funcionários do metrô, taxistas, vigilantes, garçons, cozinheiros, técnicos de
emissoras de rádio e de televisão, frentistas de postos de combustível,
funcionários do aeroporto, da rodoviária e dos hotéis, militares de todas as
fardas, médicos e enfermeiros de plantão, recém-nascidos, religiosos, freiras
enclausuradas... Nem o bispo escaparia da farra. Muito menos o piloto do
helicóptero.
Noutra
opção, supondo que 500 mil recifenses decidissem não ir atrás do Galo, o que é
muito provável, e “somente” um milhão dos habitantes sentassem praça nesse
frevo, teria de chegar outro milhão à cidade para completar os dois milhões
anunciados.
Se esse milhão
de visitantes viesse de ônibus, lotaria 20 mil daqueles modernos e enormes. Onde
ficariam estacionados tantos busus? Se
optassem por chegar espremidos em carros, seriam 200 mil automóveis lotados brigando
por uma vaguinha. Ah, viriam de avião? Nada menos de 5 mil aeronaves comerciais
desceriam no Aeroporto dos Guararapes, num fuzuê que tiraria Boa Viagem do prumo.
Onde se hospedariam
esses foliões visitantes? Seriam necessários 833,3 hotéis de 20 andares, com 30
quartos por andar – totalizando 600 apartamentos em cada hotel e dois hóspedes
por apartamento. Nem São Paulo tem essa capacidade instalada, mesmo juntando
hotéis, flats, pousadas, pensões, albergues e mosqueiros em geral.
Outro amigo
que gerenciou grandes hotéis e hoje atua como consultor na hotelaria paulistana
é taxativo: “Temos em São Paulo 46 mil apartamentos, distribuídos em 450 hotéis
e diversos outros meios de hospedagem”. Ou seja, a maior cidade da América do
Sul só consegue acolher 92 mil pessoas ao mesmo tempo, se colocar dois hóspedes
em todos os apartamentos oferecidos pela rede. Resignado, refiz as contas com
os parâmetros corretos. Dessa maneira, seriam necessários 5 mil hotéis com cem
apartamentos na Veneza Brasileira, um parque hoteleiro 11 vezes maior do que o
paulistano.
Tá bom,
mesmo que o festivo povo recifense hospedasse em casa a metade do milhão de
pessoas que chegasse – haja espírito de acolhimento! –, ainda precisaríamos de
2,5 mil hotéis para acomodar o resto. Nada menos do que 5,5 vezes mais do que o
que Sampa oferece!
Ah, ia me
esquecendo: e o povaréu que meu amigo viu lá do céu, lotando os becos
históricos de Olinda na mesma hora em que o Galo da Madrugada reinava absoluto?
Outro milhão?
Nos últimos
anos, São Paulo vem observando um novo fenômeno: o crescimento exponencial do
seu Carnaval de rua. Em 2015, os blocos receberam pouco mais de R$ 800 mil em
patrocínios, já que tudo aquilo parecia aventura passageira num lugar que já
foi chamado de “Túmulo do samba”. Em 2016, os investimentos subiram para quase
R$ 5 milhões. Este ano, os anunciantes meteram a mão no bolso e liberaram mais
de R$ 17 milhões para animar a festa.
Os
organizadores informaram que a folia na Terra da Garoa acabou de juntar nada
menos do que 1,4 milhão de pessoas nas ruas. Inclusive, gente da própria cidade
ou do interior do Estado, que sempre viajava para outros lugares mas resolveu
conhecer a festa paulistana. Há quem aposte que, em dois anos, esse fluxo vai
superar o do Rio de Janeiro.
Felizmente, esses
exageros numéricos são incapazes de tisnar o extraordinário espetáculo
carnavalesco que o brasileiro promove a cada fevereiro em diversas cidades. Uma
multidão querendo apenas se divertir, sem fazer qualquer conta de chegada, ignorando
solenemente os milhões de pessoas que povoam o universo dos organizadores e dos
exagerados em geral. Um povaréu que deseja ser feliz por quatro dias, sem lenço
e sem documento, tendo como único guia a batida do surdo.
Matemática simples. A mídia procura vender a imagem de um povo feliz. Mas, quem pode ser feliz no país da roubalheira? Apenas os otarios que em um gol resolve todos os problemas da nação.
ResponderExcluirBom hospital para todos! E que seus filhos continuem nas mãos de uma educação que não educa e da insegurança que somos submetidos. Você foi ao carnaval? Parabéns! Você é um sobrevivente.
1) Importantíssimo artigo, parabéns Palmeira.
ResponderExcluir2) As mídias exageram para melhor ou para pior, mediante patrocinadores.
3) Neste caso, as cervejarias que patrocinam as festas carnavalescas (nada contra, oferecem trabalho para muita gente).
4) Li, certa feita, que o Brasil é o segundo maior produtor e bebedor de cerveja do mundo, após os EUA.
Muito bom, como sempre, querido HP. E com um toque humorístico de classe...
ResponderExcluirHeraldo, vou ao dicionário conferir o significado correto de tisnar. Tomo banho, almoço e volto.
ResponderExcluirMas, antes de ir e voltar, pensa bem: com tanta notícia falando de milhões e bilhões, não ficava nem bem expressar foliões aos milhares.
Eu volto, com a graça de Dio. Inté.
Ofelia
Heraldo, contar multidões é difícil demais, não é não? Lembro de quando trabalhava na rua, pro jornal. Sem ter a quem recorrer, nós nos reuníamos e chegávamos a um número igual pra todos, pra que um veículo não dissesse uma coisa muito diferente do outro.
ExcluirPra mim, tanto faz se dão 2 milhões de pessoas no carnaval sei lá de onde. Pior é nas passeatas, quando cada uma quer ser mais que a outra.
Acho até divertido, mintam quanto quiserem, achem o que acharem. Que importância tem?
Lembrei agora do Lula comentando que falou lá fora: "no Brasil há 25 milhões de crianças nas ruas". Alguém, que já não lembro quem, falou pra ele que era impossível esse cálculo, ou ninguém andaria nas ruas.
Lula riu. Todos riram com ele. Os estrangeiros acreditaram (?). Era o que tinha pra vez.
Como agora, era o que se tinha a dizer frente aos assuntos políticos que o carnaval desarmou e jogou por terra.
O brasileiro ainda prefere ser feliz. E o bom da multidão, fabricada ou não, é isso, SER FELIZ, demonstrar FELICIDADE.
Cochiche com seu amigo, bem baixinho, pra ele ser exigente assim nas passeatas, Heraldo. Coisa boa a gente não mede, deixa passar como água de aluvião, carregando tudo.
Estou ouvindo aqui em uma televisão da vizinhança as notas das escolas de samba. Não vou ver. Não vi o desfile, nem um bocadinho.
Abs
Ofelia
Palmeira nos brinda um artigo importante sobre a participação do povo no carnaval de rua, de grandes multidões no Rio, São Paulo e Recife.
ResponderExcluirOs dados apresentados mostram que seria impossível a quantidade de foliões mencionada pela mídia, um exagero, se levarmos em conta o metro quadrado e quanta gente caberia nesta superfície.
Se enganosa ou não, pouco importa, a meu ver.
Na razão direta que o reinado de Momo é uma ilusão, uma festa profana, secular, os números apresentados não têm o menor significado e, se mentirosos ou tendenciosos, seguem de acordo ao momento alegre, descomprometido com a realidade, a fuga tão esperada por milhões para poderem mentir a si mesmos que são felizes, que estão animados, que pulam e dançam porque a vida lhes é agradável.
Não há qualquer interesse pela estatística, mas a constatação se o povo se diverte, pois neste período que esquece seus problemas e as dificuldades enfrentadas pelo País, a população deixa de lado o governo, não cobra, não exige, não clama pelos seus direitos.
Com o término dos festejos momescos, a preocupação é tanta em pagar as contas, a escola do filho, pagar a água, luz, aluguel, empréstimo, financiamento do carro, IPTU, vem o IR, que este folião continuará deixando de lado o governo, e este terá momentos para pular o seu próprio carnaval enquanto nos desesperamos com as crises que nos rodeiam!
Valeu, Palmeira!
Um abraço.
Saúde e paz.
Meu caro Bendl,
ExcluirNo imaginário popular, o Carnaval é rota de fuga para uma felicidade efêmera e fundamental na cultura popular. Para o folião, pouco importa se tem cem ou mil.
Trabalho na área de eventos e sei que esse tipo de número ganha importância porque, manipulado, dá suporte a requerimentos de verbas mais altas para produção, para serviços públicos. E não se fala de auditoria em contas. Penso que a mentira, nestes casos, manipula as coisas e beneficia poucos. Por isso, dei voz à indignação telefônica do meu amigo. Abraço.
Diz Dona História que em fevereiro de 1912, o presidente Hermes da Fonseca estava com o Ibope mega baixo , cheio de problemas, fugindo de mais sarna para se coçar. Foi então que, de repente, pouco antes do Carnaval, bateu as botas sua excelência o Barão do Rio Branco, o Ministro das Relações Exteriores, aquele que dizia que "só havia duas coisas bem organizadas no Brasil: a desordem e o carnaval".
ResponderExcluirPense em um presidente vacilante entre o velório e o reinado momesco. Depois de muito consultar seus então especialistas em marketing, Hermes resolveu na canetada adiar o Carnaval para o mês de abril. Não deu outra : apesar do decreto presidencial o povo saiu às ruas , o centro do Rio de Janeiro foi tomado pelos foliões, mesmo sem patrocínios oficiais.
Não satisfeita a galera fez outro Carnaval na data marcada pelo prezado presidente: 8 de abril de 1912! Na ocasião o hit foi a seguinte
marchinha:
"Com a morte do Barão
Tivemos dois carnavá
Ai que bom, ai que gostoso
Se morresse o Marechá”
Portanto para o Mestre Heraldo, que marchou sóbrio da matemática à folia incontornável nessa "quarta-feira ingrata que chegou tão depressa só pra contrariar":
Dez! Nota Dez!
Caríssimo,
ExcluirVocê, som sua capacidade memorialista, nos brinda com mais e mais informações sempre. Esse seu relato apenas nos comprova que somos atraídos pela leniência, pelos atalhos. E o povo terminou ganhando dois carnavais. Honras merecidas ao Barão.
Rsr. Mesmo método utilizado pelo Plano Collor. Qual vai ser o numero de corte? Ah, bota aí 50. A própria ministra declarou. Não se tratava de cifra calculada para manter o fluxo. Cinquenta foi um número simpático para uma medida ardida e para lá de antipatica! Que importavam as consequências de tal desastre? O mais absoluto abuso de poder, que passa batido até hoje. Exagero para mais ou para menos? Dá no mesmo, quando as irresponsabilidades imperam. Heraldo. Para de ser chato e realista! Rsrs Nao basta pular Carnaval. Tem que sofrer Carnaval! E nos, que conservamos a singela vontade de simplesmente viver bem a vida, podemos escolher: ou a gente se diverte com os descalabros alheios ou com os próprios. Também são muito bom dendê. Rsrs patrocinador quer escala? Manda milhares em forma de desesperados folioes. Alguém quer sensatez em forma de estatísticas no Brasil? Esquece. Confiáveis? Menos que a mulher do sargento. Foi instrutivo ler este seu artigo. Belo exercício matemático. Vai mudar nada! Lamento.Rsrsr Legal mesmo é sair do Carnaval com os dois pés inflamados e com a contagem de trinta milhões de passadas de mão na única própria bunda.Rsrs
ResponderExcluirAna,
ExcluirNão estou querendo mudar nada, nem tentando ser chato e realista. Apenas, um amigo trouxe uma visão interessante dos números, trabalhamos dados e fizemos nossa festa sem qualquer preocupação. Vimos como esses números manipulados podem movimentar recursos (públicos, inclusive) superfaturados. Vimos também como uma festa organizada pela população pode terminar fisgada pelos que se acham donos da festa - e virando bela fonte de renda desses sabidos de plantão. Da minha parte, continuo gostando de Carnaval e reverenciando a festa. Nada além.
Olá Heraldo, Que bom que seu amigo querido ligou e você transformou em um texto bem interessante! Muitas vezes me pergunto quanta gente é esta? De onde veio, como cabe? E por que as informações divergem , e divergem de acordo com a fonte? Até mais.
ResponderExcluirAna,
ExcluirPensemos que os números podem alterar contas de forma muito simples: por exemplo, serviços de limpeza, paramédicos e distribuição de camisinhas gratuitas mudam muito de custo se forem para 500 mil ou 2 milhões de pessoas. Portanto, quanto mais gente na contagem, melhor para os mesmos! Abraço.
Amigo HP,
ResponderExcluirMais um belo texto! Esses números nos mostram uma coisa que nem sempre levamos em conta na vida, principalmente no carnaval: a LÓGICA..!!
Devemos considerar sim, esses sabidos de plantão para ludibriar incautos.
Parabéns por um mais irretocável texto!!!
Wagner Monteiro