Carl Miles - Máscara na fachada do Teatro de Drama de Estocolmo (foto de Ellgaard Holger, wikimedia commons) |
Heraldo Palmeira
Eu estava no
meio da Amazônia, acomodado na cama da pousada depois de um dia de trabalho
exaustivo pela selva, quando uma amiga querida me ligou chateada com problemas
pessoais, relação amorosa morna e outras coisas comuns do cotidiano. Não aguentava
mais a censura de todo mundo – ela pagava o pato por ser uma mulher com a
cabeça muito além das fronteiras da cidadezinha em que vivia, nos pampas.
Estava
cansada daquilo tudo e decidida a aceitar o convite para morar na Itália. Queria
desabafar, ouvir minha opinião. Como não tenho competência para dar respostas,
recomendei a leitura de Advertência aos
incautos, crônica de Antônio Maria publicada no livro Seja feliz e faça os outros felizes, que estava por feliz
coincidência ali em minha cabeceira.
Escrita nos
anos 60 pela letra passional de Maria, talvez um dos mais sensíveis
observadores do cotidiano brasileiro daqueles tempos, continuava mais do que
atual:
A vida ensina que a gente
se deve dar com o menor número possível de pessoas e freqüentá-las cada vez
menos. Isto porque o “próximo” de um modo geral não nos acrescenta nada e,
quase sempre, tira.
Sem querer dizer que o
“próximo” seja, invariavelmente, um infeliz, não podemos calar que, entre dez
“próximos”, oito são infelizes. Não infelizes porque lhes faltem pernas,
braços, olhos, cabelos ou orelhas. São infelizes por dentro, porque lhes faltam
afeto, generosidade e bom gosto. Com um infeliz não se pode conviver cinco
minutos. Ele chega muito amável, mas, daí a pouco, sem se conter, dirá alguma
coisa que nos desgoste. Dirá, por exemplo, que alguém disse “isso e aquilo” de
nós. Ou então, dirá ele, fazendo a ressalva dos infelizes:
– Quer que eu lhe fale
com absoluta franqueza? Você está com uma cor muito feia. Por que não procura
um especialista?
Entre os seus conhecidos,
marque bem os infelizes. Evite-os e, não sendo possível, vista-se de uma
couraça que proteja sua sensibilidade, sua paz contra o que eles irão dizer.
Há mulheres que são
especialistas em perguntar às outras:
– Outro dia, quando você
estava no bar com seu marido, você estava loura, não estava?
É por isso que eu gosto
de chuva e, quando chove, de ficar em casa, lendo e dormindo. Ah, sou contra os
domingos e feriados ensolarados! Pelo meu gosto chovia, sem parar, aos sábados,
domingos, bem como em todos os feriados e dias santos. De que serve torcer para
abrir o sol e pegar uma praia, se na praia chegará um infeliz (com barraca e
tudo) para perguntar, com cara de anjo:
– Você está mais gordo,
não está?
Sempre fui uma pessoa
muito prevenida contra os infelizes: eles não me atingem. Ao contrário. Como já
os conheço pelos nomes e já lhes sei o grau de desgraça, adivinho o que cada um
vai me dizer ou perguntar. Divirto-me com isto. Por exemplo, já fui enorme de
gordo e encontrei sempre quem me dissesse:
– Quer que eu lhe seja
absolutamente franco?
Nunca tive tempo de
responder: “Não, não! Por favor, seja hipócrita”! Então, o infeliz usava de
franqueza:
– Você precisa emagrecer.
Primeiro, porque a gordura leva, fatalmente, ao câncer. Depois, porque você
fica tão feio assim gordo!
O tempo andou e eu
emagreci. Essas mesmas pessoas, quando me encontram, depois de duas ou três
palavras disfarçadas, entram na franqueza:
– Olha aqui, como você
sabe, sou de dizer aquilo que sinto. Você está muito magro. Por detrás de sua
magreza, deve haver alguma coisa que o médico precisa ver. E tem mais: quando
você era gordo, era muito mais bonito.
A mim, que “manjo eles”,
os infelizes divertem. Mas, a quem ainda não vestiu sua armadura contra o
Infeliz, gostaria de avisar que o melhor é ficar em casa, deitado, lendo,
dormindo. Foi o que eu fiz esta semana. Não por temor aos infelizes, mas em
prova de respeito aos burros, que também são respeitáveis e sentam sempre à
nossa mesa, nesta cidade quase sempre bonita, quase nunca sossegada.
Nota importante – Em “Les
Caves du Vatican”, de André Gide, Lafcádio matou Fleurissoire, numa viagem de
trem, só porque este lhe pareceu profundamente infeliz.
Concordamos,
minha amiga e eu, que aos infelizes falta a prudência de se olhar no espelho de
quando em vez. Talvez temam enxergar tudo que fizeram de errado pela vida,
todas as covardias que se impuseram ao fingir que não viam a realidade, ao
empurrar com a barriga o que clamava solução urgente.
Aos
infelizes, como descrito por Maria, é muito mais fácil apontar sempre o dedo na
direção dos outros, como se isso pudesse mudar o que salta aos olhos de todos,
aquilo que o tolo pensa que ninguém vê.
Lembro da
surpresa de um amigo contratado para atuar no apoio educacional à área de
gestão de pessoas de uma grande empresa. Ali ele descobriu por que os
resultados nunca apareciam: pessoas infelizes não conseguem definir uma
política de recursos humanos.
Mandaram
fazer uma pesquisa a respeito de satisfação e o resultado jogou a lógica pelos
ares: as pessoas se sentiam muito felizes trabalhando na área de tecnologia; as
pessoas se sentiam muito infelizes trabalhando exatamente na área de gestão de
pessoas!
A partir daquela
vivência profissional, ele passou a dizer que temos a obrigação de ser felizes,
mas não temos o direito de demonstrar felicidade sem correr riscos de ataques
dos infelizes.
Eles estão
em toda parte, como uma praga difícil de debelar, ainda mais quando comem o
superamendoim da inveja! Talvez minha amiga tenha cometido o pecado capital:
ser feliz no campeonato dos infelizes. Agiu como o atacante habilidoso que
enxerga o goleiro adiantado, manda a bola por cobertura e faz um golaço do meio
da rua. Mas vai pagar o preço de ser caçado em campo a partir dali.
Lembrei de
outra frase daquele camarada, que servia à amiga chateada: “Aos infelizes, sua
infelicidade. E que sigam morrendo de inveja, um pouco a cada dia”.
(*) Seja feliz e faça os outros felizes:
coletânea de crônicas de Antônio Maria, organizada pelo jornalista Joaquim
Ferreira dos Santos e publicada pela editora Civilização Brasileira.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirMais um golaço por cobertura. Não conhecia essa crônica do Antônio Maria e vocês dois me fizeram lembrar do meu simpático avô materno, um sedutor e agregador que muito apreciava gente
" menos os que não gostam de ***** ( daquilo! ), de comer, de beber e de rir". Perguntava então o querido velho:
"Pelamordedeus, como se pode confiar nos infelizes? "
Abração
1) Bom texto do Heraldo e boa crônica do Antonio Maria, que o antigo jornal Pasquim elogiava tanto, merecidamente.
ResponderExcluir2)Sou profundamente feliz, mesmo na infelicidade momentaneamente que pode nos abater.
3) Quanto aos infelizes, oro por eles, enviando boas vibrações de alegria.
Li com muito prazer. Vou divulgar mais e mais.
ExcluirBelas crônicas, Heraldo, a sua e a do seu conterrâneo embutida nela. Só não concordo com a primeira frase do Antonio Maria, "A vida ensina que a gente se deve dar com o menor número possível de pessoas e freqüentá-las cada vez menos. Isto porque o “próximo” de um modo geral não nos acrescenta nada e, quase sempre, tira." E isso porque, apesar de autor da marchinha "Ninguém me ama, ninguém me quer", ele foi homem de muitos e bons amigos e amigas. Digamos que era a licença poética para poder apresentar o seu tema...
ResponderExcluirEu, como o avô do Moacir, gosto de gente. Mas concordo que devemos querer distância dos infelizes do tipo de que o Maria conta. Alguns dos que conheço, principalmente os que são também invejosos, me lembram o título brasileiro de um filme clássico de ficção científica, "Vampiros de Almas"...
Um abraço do
Mano
"Aqui existe Felicidade" - dizer de placa sinalizadora disponível para venda em papelaria carioca. Muito apropriada para ilustrar esse texto muito gostoso.
ResponderExcluirAdorei.
Quanto ao "próximo", sempre há o risco de se encontrar uma pessoa feliz, por isso talvez ainda valha o esforço.
Felicidades
Pois eu aceito bem a sugestão de não manter amizades promíscuas. Seletividade refina. Ser feliz só se consegue com extrema maestria. Coisa para poucos. Para muito poucos..
ResponderExcluirParabéns! Um dos seus melhores textos. Muito inspirador!
ResponderExcluirObrigado, HP, por mais uma proveitosa leitura, que nos leva à reflexões às vezes nem tão agradáveis, mas necessárias. Um grande abraço, verdadeiro!
ResponderExcluirPra variar arrasou!! Parabéns queridão!!
ResponderExcluirAmigo Heraldo
ResponderExcluirEstão acontecendo coisas estranhas com você na Amazônia.
Mesmo assim, não deixe de ir lá.
Quanto à busca da felicidade, é tudo muito relativo. Por exemplo, saiu em jornal uma escala de felicidade dentre os países, com os escandinavos e a Suíça nos primeiros lugares.
Eu tenho um amigo norueguês que tem horror ao frio e a escuridão de lá. Ele se sente em paz com a vida quando faz uma caminhada no calçadão de Copacabana.
É isso aí!
Um abraço apertado
Domingos
Abaixo o amendoim da inveja!!!
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