Edmundo Migliaccio - Preto Velho - 1963 (wikimedia commons) |
Antonio Rocha
Sempre que leio algo nos jornais com o título acima, lembro dos meus
contatos com o pessoal da Umbanda, desde a mais tenra idade.
Minha formação foi bastante ecumênica, assim, vejo todas as religiões
como filosofias, aprendizados. Não consigo entender o radicalismo de alguns
contra essa ou aquela forma de culto.
Sempre no dia 27 de setembro a correria era geral. Pra lá e pra cá,
hordas de meninos e meninas ficavam atrás dos doces. Era o Dia de São Cosme e
São Damião.
Perto de casa, havia um centro de Umbanda caseiro, digo assim, pois
também era residência. Havia uma “bancada” comprida, formada por duas tábuas e
forrada por uma toalha branca, ou mais de uma toalha, penso que sim, devido a
extensão. E sobre esta mesa muitos doces, confeitos, bolos, chocolates os mais
diversos.
Essa é a minha “bancada da bala”...
Na qualidade de turista religioso já visitei “n” religiões e filosofias.
Uma vez, já no Rio e namorando Heloisa fomos em uma virada de ano com
amigos para uma praia semi-deserta, lá para os cantões de Niterói, uma bela
praia chamada Itacoatiara.
Havia um centro espírita na areia e eles marcaram o local com muitas
garrafas de cachaça, como se fosse um cercado, um terreno. No fundo do mesmo,
um banquinho de um senhor sentado, apoiando-se em um cajado. Ele incorporava o
espírito de um “Preto Velho”.
Para se chegar até o médium e fazer a consulta tinha um caminho feito
com mais garrafas de cachaça, de um lado e do outro, como se fosse uma
passarela até o altar e o religioso.
Todo o pessoal de centro vestido de branco, os visitantes como nós, em
padronagens comuns. Tempo de bastante calor, estávamos de bermudas.
Respeitosamente um a um, os amigos que nos acompanhavam e Heloisa foram
consultar o referido. Até que chegou a minha vez. Não sei se por timidez, eu
entrei no caminho das garrafas e comecei a rir, nisso esbarrei em uma das
garrafas, que estavam abertas e como um jogo de dominó com as pedras em pé, as
garrafas foram caindo e derrubando o precioso líquido na areia.
Eu fiquei nervoso, claro, misturei com a timidez e ri mais ainda em uma
crise sem graça, sem propósito e não era o local. Cheguei na frente do médium
me abaixei, fiz uma reverência budista com as palmas das mãos juntas na altura
do coração e cumprimentei:
- Oi ! Como vai o senhor ?
Era um homem idoso. Barba por fazer, joelhos na terra, sentado no
tamborete, apoiado no cajado e sério me perguntou?
- O que você veio fazer aqui ?
- Não sei, meus amigos vieram, minha
namorada veio e eu também estou aqui. Quero saber como será o Ano Novo.
- O seu lugar não é aqui não.
- Como é que o senhor sabe ?
- Você é do povo do Oriente.
- Tem razão, eu sou budista !
- Mas você também é da Falange das
Crianças na Umbanda.
- Como é que o senhor sabe ? – perguntei novamente.
E então com o cajado ele apontou as garrafas derrubadas, o líquido
misturado na areia e o cheiro da cachaça, claro e disse:
- Criança é assim, chega nos lugares
fazendo bagunça, derrubando tudo.
- O senhor me desculpe, acho que fiquei
tímido e nervoso. É a primeira vez que venho fazer uma consulta desta natureza
em 31 de dezembro.
- Fique tranqüilo, não tem problema.
Você tem que, durante sete anos seguidos, dar doces para as crianças.
- Mas eu morro de vergonha de fazer
isso, já pensou um budista distribuindo doces para a meninada.
- Mas vocês também tem festas e tem
doces que eu sei.
- É verdade, mas como é que eu faço
então ?
- Primeiro amadurece dentro de você
este ato de dar os doces, depois começa de forma bem simples. Por exemplo, em
cada 27 de setembro, você começa com um pratinho de papelão, poucos doces e
oferece para uma criança, um morador de rua etc. Pode ser pessoa de qualquer
idade. Depois você vai se desinibindo e se quiser vai aumentando as doações,
mas não é obrigado muito doce. Fica a critério das suas possibilidades.
Devia ser o ano de 1975, demorei muitos anos até tomar a decisão. Só na
década de 1980, uns dez anos depois cumpri a tarefa, sete anos seguidos.
Depois, em duas ocasiões diferentes ajudei uma amiga e uma parenta
financeiramente a aumentar a compra dos tais saquinhos de doces.
Minha madrinha que era médium da Umbanda me ensinou, através de
espíritos incorporados os detalhes místicos e esotéricos desta festa, cerimônia
anual.
Uma graça!
Depois eu conto mais.
Delícia de texto, Antônio!
ResponderExcluirEstou rindo sòzinha até agora. Mas não entendi a sua dificuldade em dar doces para as crianças. Pensando bem, poderia parecer 'estranho'.
Você realmente é um doidinho muito especial! Não deixe nunca de ser.
Até mais mesmo.
Quero te dizer ainda, da importância, para se criar um espírito livre, da exposição precoce aos credos, às raças, às músicas e meios. Toda criança deveria ter essa oportunidade. Difícil hoje com os medos,os condomínios, a busca do melhor ensino e os shoppings.
ExcluirAté.
1)Oi Ana, concordo plenamente, hoje as crianças ficam mais ou menos enclausuradas em grades, em locais com câmeras filmando tudo, em shoppings que são as tais catedrais de consumo.
Excluir2)E minha infância foi na calçada, na rua, eu tentava jogar futebol, mas era muito ruim com a bola... então virei "aprendi de escritor"...
3) Mas estou/sou feliz, cada um tem um "caminho do meio" nessa vida...
4)Gratidão a vcs, vc e o Mano, que me permitem contar essas coisas, obrigadão pelo estímulo !
1)Obrigadíssimo Ana pelo estímulo.
Excluir2) Nessa época eu estava recém formado e, na imaginação ... queria ser um "intelectual" e nunca tinha visto uma foto nos jornais e revistas de intelectual distribuindo doces no 27 de setembro para a criançada.
3)Então eu cresci e desisti de ser intelectual, acho bem melhor, bem mais espontâneo ser apenas, "aprendiz" nas/das Literaturas.
4) Bom fim de semana para vcs !
Antônio,
ResponderExcluirO seu post me lembrou das minhas férias nordestinas. Nas festas de aniversário tinha a versão pernambucana da brincadeira da Cabra Cega. A pirralhada vendada e de cabo de vassoura na mão tentava acertar em um pote de barro pendurado numa corda cheiinho de doces e balas e pirulitos e o escambau. Quando o herói do dia fazia chover as guloseimas era um Deus nos acuda. Foi o mais perto que cheguei de algo parecido com o seu Cosme Damião.
Quanto a rir na hora errada, acontece principalmente com quem nasce com "o riso frouxo", como diziam antigamente.
Quanto aos curumins temos feito a nossa parte para povoar o futuro com novas gerações de modestíssimos dom quixotes tupiniquins.
Também tenho muita curiosidade sobre outras crenças e religiões e nelas me interessa de forma especial o sincretismo. Nesse sentido muito lhe agradeceria dicas de leitura.
Abração e bom final de semana
1) Salve Moacir, eu penso que sou sincrético...
Excluir2)Nasci em lar kardecista, meu pai, ainda solteiro tinha simpatia pelos Adventistas do 7º Dia e minha mãe pelo Catolicismo. Aos 16 anos virei budista e em função da minha tia e madrinha, depois dos 21 fiquei com um pé na chamada Umbanda, mas antes estudei e pratiquei esoterismos vários: hermetismo, rosa-cruzes. Depois dos 40 fui estudar Teologia com os presbiterianos e aprendi muita coisas sobre protestantismos...
3) Esse ecumenismo aprendi com o próprio Buda e a expansão do Budismo que, pelo mundo afora, em sua expansão mistura-se aos credos locais.
4)Aos poucos irei contar essas experiências do que eu chamo de "turismo religioso".
5) Vejo as religiões como filosofias, Literaturas, saberes. Falo do lado saudável das FÉs, discordo dos fanatismos...
5)Vou pensar em bibliografia correspondente...
1) Completando...
Excluir2) Tem gente que fala: sincretismo é salada.
3) Respondo: "Uma salada bem feita é bem nutritiva"
4) Um brinde aos sincr-éticos !
Antonio, só não posso dizer que estou rindo até agora porque, claro, eu já tinha lido seu post antes quando o recebi e começado a rir antes :)
ResponderExcluirMas posso imaginar a sua expressão vendo a derrubada daquele dominó de cachaça e pensando no que diria o pai de santo sentado lá no final dele...
E assino em baixo do que a Ana disse sobre a necessidade de exposição das crianças ao mundo. E não só quanto às crenças.
No meu tempo de ginásio (jesuíta, alunos de famílias de classe média alta e alta) o padre reitor do colégio, talvez preocupado com a opinião dos pais, tentou desencorajar um grupo de garotos do qual eu fazia parte, estimulados por um padre professor mais progressista, que fazia as rondas visitando os sem teto à noite e levando junto com a nossa companhia café, sopa e sanduíches, com o argumento de que éramos "muito jovens e impressionáveis e seria perigoso sermos expostos tão cedo às misérias da vida". Lembro-me de que escrevi um poema que lá pelas tantas dizia que não tínhamos nascido para sermos "prisioneiros das gaiolas de ouro da ilusão", rodamos umas cópias num duplicador a álcool de meu pai e pregamos pelas paredes internas do colégio. Nunca mais tentaram proibir nossas saídas, e o grupo, à medida em que ficávamos mais velhos e íamos subindo de série, evoluiu para uma ação bastante interessante.
Bom domingo para você e Heloísa.
1)Oi Mano, gosto muito dos jesuítas...
Excluir2)Essas experiências de apoio social aos carentes merece pelo menos uma crônica ou mais, conte-nos...
3)O Colégio Santo Inácio, aqui no Rio, onde o meu falecido sogro estudou, tem uma clínica social que atende a população carente com preços bem baratos. Um trabalho belíssimo ! Os médicos doam gratuitamente o seu tempo...
4) Gratidão pelo espaço...
Caro Rocha,
ResponderExcluirO que encanta nos teus artigos é a simplicidade!
Fáceis de ler, de se entender, e de se constatar as razões pelas quais o Budismo é tão admirado.
Os teus textos me dão a impressão que esta filosofia oriental que praticas, nos ensina os atalhos para encurtarmos os caminhos de nossas dificuldades para viver.
- Vai por ali, aqui encontrarás perigo!
Muito obrigado pelas orientações, e meu reconhecimento pelas lições deixadas de como transitarmos por caminhos asfaltados, aplainados, com bem menos obstáculos.
Um grande abraço.
Saúde e paz.
1) Obrigadão Chicão !
Excluir2)Vc disse tudo, é uma "Filosofia Oriental que nos ensina os atalhos". Ela vai direto ao ponto.
3) Bom domingo, boa semana !