Pés pra que te quero

Ana Nunes

A sola dura

guarda e protege.

O cadarço amarra

e segura as pontas.

O couro liso e brilhante

aprisiona o espaço.

O salto do equilíbrio

na forma projetada.

Na curva da sola

mora a sombra do arco.

No bico estreito e pontudo

o preço da vaidade.

A passarada amanhece ensandecida, bem-te-vis trocando mensagens nos muros, maritacas “barulhando” entre as árvores, e outros tantos pioscantos não sei de quem. Certamente aproveitam esses últimos dias azuis-amarelos de verão nesse quase outono, minha estação preferida.

E eu não canto, mas pego um lápis, tenho sortimento colorido à minha frente (outros preferem bic e outros mais não podem deixar de teclar) e já sonho com botinhas macias e meias pretas e listradas, em sapatos fechados com cadarços roliços que teimam em se bagunçar e soltar quando andados.

Sapatos parecem mágicos. Se não são, como nos enfeitiçam, as mulheres? Que mistério é esse? Que desejo corrompido de ver vitrines e comparar preços, e muitas vezes levar o mais caro? Ou sonhar impossíveis sonhos Louboutin, Gucci, Prada, Miu Miu, Jimmy Choo e outros, outros...

Pensamos assim: vou só à farmácia em busca de sobrevivência e em todo lugar, em cada esquina tem vitrines chamando “Comprem sapatos, comprem sapatos”. E vou sonâmbula como Garotos em busca de “Baton”!

Não se seguram os olhos e o coração já aos saltos leva o caminhar. Fazer o que?

São assim também os homens? Não sei. Talvez não. Mas se tiver algum, avise, para mostrar que não estamos sós.

E é bom quando entramos, olhamos, às vezes até experimentamos, e conseguimos sair como chegamos.

Mas é ótimo quando balançando nas mãos vem uma sacola de papel colorido com uma misteriosa caixinha dentro! Ou três - levando dois, o terceiro é metade. Ou entre dois ou três, o melhor é o caminho do meio?

Ou então quando a irmã vaidosa compra um número menor e não aguenta, e a gente se acomoda nele achando que esse número folgado está muuuito bom! Confortável!

Esses sapatos nas vitrines são como bilhetes coloridos, azuis, verdes, pretos, amarelos, vermelhos descrevendo saltos tacos baixos ou agulhas finíssimas, plataformas indescritíveis e meias-patas enganadoras, fivelas e amarrados. Leitura que, uma vez começada, já não se pode parar de ler. 

De tão juntos

formam o par.

De tão usados

tomam a forma.

De tão caminhados

carregam os sonhos.

E contam uma história

e descrevem o dono.

E de tanta história,

e tão atrelados,

já não se pode jogá-los fora.

Mas bom mesmo é um sapato usado e gasto, que agasalha os pés sem concessões ou exigências. Um chinelo esfarrapado e macio onde um gatinho possa se aninhar.

E as bolsas combinando? Sim, bolsas também sofrem com as estações do ano! Pois é. Mas isso já é “outra história”!

E toda essa falação começou há algum tempo. Porque meu amigo dissidente descreveu seus “sapatos 45, bico largo e alto” e fiquei impressionada, para dizer pouco. Isso não é sapato, é uma arma. Se atirado, mata! Imagina se for uma bota?

Pensava ser prerrogativa de holandês esse tamanhão de pé. Ou dos queridos jogadores de vôlei e basquete.

Os sapatos do meu filho são parecidos, mas não tanto! Seus chinelos me lembram as raquetes que um pinguim da minha infância usava para andar na neve. Também o nosso redator ocupa muito espaço com seus grandes tênis, causando tropicões em distraídos. E mesmo com toda essa visibilidade, conseguiu passear em Versailles com um modelo diferente e cor diferente em cada pé. Quem acredita? Mas posso provar com fotos!

Bem, pés pra que te quero! 

Fica aí

no abandono

no escuro dessa noite

nas frestas desse chão

no cansaço do calor.

Fica aí

na iminência de um andar

de uma urgência de chegar.

Caminha neste sonho

que a ponta aponta

no rumo do seu estar.

Te vejo amanhã.

Atenção: Nem todas as mulheres são assim. Eu não sou!