imagem de www.viajarentreviagens.pt |
Domingos Ferreira
Aqui o soberbo Império que se afama
Com terras e riqueza não cuidada.
Da China corre, e ocupa o senhorio
Desde o Trópico ardente ao Cinto frio.
Os Lusíadas, canto X,
estrofe 129 (1)
Xian é uma
antiga capital da China, de quando o colosso foi unificado, pela primeira vez,
por Qin Chi Huang, fundador da Dinastia Chin, no século III A.C. . Ela fica na
parte central do país, e fazia o papel de último bastião da Rota da Seda, ainda
em território chinês.
Esse
extraordinário comércio se estendia para o Oeste por sete a oito mil
quilômetros. As viagens eram no lombo de camelos e burros, em infinitas
caravanas. Elas cruzavam toda a Ásia e o Oriente Médio, durante meses, ao longo
da latitude 40º N, entre o Deserto de Gobi, a Mongólia e o gelado Tibet, além
do trecho ao Sul do Mar Cáspio. Os destinos eram as costas do Leste
Mediterrâneo, onde as cargas embarcavam em navios gregos e fenícios, sendo
distribuídas pelos portos em torno dos quais evoluía a civilização ocidental.
O principal
destino das mercadorias era o porto de Óstia, onde entravam as embarcações
abastecedoras da grande Roma Imperial. As matronas e jovens da elite romana,
por razões óbvias, eram apaixonadas pelos produtos chineses, tais como sedas,
objetos de bronze de qualidade, cerâmica fina, leques, unguentos cosméticos e
medicinais, perfumes e bijuteria refinada.
O comércio
chinês com o Ocidente, desde a Antiguidade, também se fazia por mar, a partir
de portos na costa da China, navegando pelos arquipélagos do Sudeste asiático,
cruzando o Índico, atravessando o Mar da Arábia, e atingindo o Estreito de
Ormuz, nas portas do Golfo Pérsico. Dali, para o Mediterrâneo, era necessário
desembarcar a carga, montar caravanas e percorrer o trecho final, por Bagdá e
terras persas, até os portos daquele mar.
Todo esse
sistema ampliou-se e foi sofisticado ao longo dos séculos, porém só se tornou
conhecido no Ocidente com as viagens de Marco Polo no século XIII. Elas
ocorreram durante o extraordinário domínio mongol, durante pouco mais de um
século e meio, que abrangeu as dinastias Song (1206-1271) e Yuan (1271-1368),
na China, formando o maior império contínuo já existente sobre a face da Terra.
Esse
gigantesco reinado foi conquistado por Gengis Khan, e seus descendentes, desde
1206 até meados do século XIV, e mantido através das capacidades militar,
política e gerencial, e da mão de ferro dos Khans da Mongólia. No auge do seu
poder, o Império foi consolidado em diversos “canatos” desde o Mar da China, e
incluindo o centro da Ásia, o Norte da Índia, até as regiões do Leste
Mediterrâneo, a Turquia e partes de territórios da Rússia, Polônia e Germânia,
no centro da Europa.
Niccoló e
Matteo Polo, pai e tio de Marco, abastados comerciantes de Veneza, eram
audaciosos empreendedores ao longo da Rota da Seda. Nessa condição, na cidade
de Bukhara, no Uzbequistão, tornaram-se conhecidos por Hulagu Khan, governante
da região e irmão de Kublai Khan, ambos netos de Gengis Khan. Foi ele quem
insistiu na ida dos venezianos até Cambaluc (Pequim), para serem apresentados
ao Imperador Kublai Khan (1260 a 1294), grande curioso sobre a Europa, de onde
quase nada sabia e nenhum natural conhecera, até então.
Kublai Khan (fotografia Domingos Ferreira) |
Os irmãos Polo
foram recebidos pelo poderoso Khan em seu palácio de inverno, em 1266. A
empatia entre eles foi imediata. Kublai Khan outorgou-lhes a condição de nobres
da corte, onde permaneceram por cerca de dois anos. No retorno a Veneza, eles
foram portadores de uma carta e presentes do Grande Khan para o Papa Gregório
X, além de muitas mercadorias valiosas para seus próprios negócios.
O grande
sucesso da primeira viagem fez com que Niccoló e Matteo logo retornassem a
Pequim, onde chegaram em 1275. Dessa vez, eles levaram Marco Polo, filho de
Niccoló, com dezessete anos de idade. O jovem tinha recebido a melhor educação
disponível em Veneza e era muito atilado, energético e comunicativo. Kublai
Khan encantou-se com ele e, em pouco tempo, o nomeou seu embaixador, fazendo-o
viajar por várias regiões do Império, em diversas missões de crescente
importância.
O envolvimento
dos três europeus com o incansável Kahn foi tal que eles permaneceram em sua
corte por mais de duas décadas, prestando valioso aconselhamento político e na
atividade de comercio exterior, do que muito entendiam. Durante tal período,
Kublai Khan, tendo conquistado a península da Coréia, em 1258, decidiu invadir
o Japão.
Antes do
emprego militar da pólvora, os mongóis conseguiram conquistar um imenso império
devido à excepcional destreza de seus combatentes, à simplicidade tática e à
alta velocidade e surpresa das evoluções. O guerreiro mongol conduzia seu
pequeno cavalo, da forte raça “takhi”, sem o uso das mãos. Assim, elas ficavam
livres para o emprego de um poderoso arco, cujas flechas, especialmente
balanceadas para penetrar nos coletes e armaduras dos inimigos, devastavam as
tropas inimigas, com grande rapidez e em todas as direções.
Quando decidiram
invadir o arquipélago do Japão, os mongóis não tinham qualquer experiência na
guerra do mar. E pior, seria necessário executar uma gigantesca operação
anfíbia, a mais complexa dentre todas aquelas que, desde sempre, se travam no
ambiente marítimo. A intenção inicial era invadir o território japonês pelo
Sul, a partir da extremidade da península da Coréia.
Em decorrência
disto, houve um longo período de preparação, iniciado em 1266, no qual foi
construída, em estaleiros coreanos, uma esquadra de trezentos (!) navios e
centenas de embarcações menores. Além disso, arregimentou-se um exército
inexperiente, constituído por guerreiros mongóis, chineses e coreanos.
Terminados os
preparativos, em novembro de 1274, a esquadra chinesa, transportando cerca de
23.000 guerreiros, navegou a pequena distância de cerca de 200 milhas, entre o
solo coreano e o território japonês. Depois de conquistar, no caminho, a ilha
de Tsushima, ela penetrou na baía de Nakata, no Distrito de Kyushu, próximo de
Nakasaki, bem ao Sul do arquipélago nipônico.
O desembarque
desse enorme contingente e da logística de apoio encontrou forte reação dos
japoneses, já sabedores das intenções do inimigo. Travou-se, então, a histórica
“Primeira Batalha de Nakata”, que contribuiu para a consolidação do império
japonês. Nela, os mongóis tiveram vantagem inicial, porém acabaram imobilizados
pelos samurais e, com problemas de comando e coordenação, tiveram de recuar
para seus navios. Por capricho do Destino, a região foi varrida por um forte
tufão, que destruiu muitos navios dos invasores, fazendo-os abandonar a
empreitada.(2)
Kublai Khan,
inconformado com a derrota, decidiu efetuar outra invasão, na mesma região ao
Sul do Japão. Decorreu, então, um período de seis anos em que ambos os lados se
prepararam melhor para a anunciada nova empreitada. Os japoneses reforçaram
suas defesas, em vários pontos da costa, e aumentaram, equiparam e treinaram
melhor as suas forças. Já os mongóis, construíram uma gigantesca força naval,
com cerca de 4.000 (!!!) navios e embarcações, nos estaleiros da Coréia e da
costa Norte da China.
Assim, no
verão de 1281, talvez a segunda maior esquadra existente até hoje lançou cerca
de 120.000 combatentes nas praias da região pré-determinada e arredores.(3) A histórica “Segunda
Batalha da Baía de Nakata” durou várias semanas, sem definição. Até que surgiu,
novamente, um furacão “kamikaze”, e o “vento divino” decidiu a favor dos
japoneses. Os mongóis se retiraram derrotados e Kublai Khan desistiu de
conquistar o Japão, que saiu revigorado e unido do magno evento.
Marco Polo,
seu pai Nicollo e o tio Matteo vivenciaram todas essas experiências na corte de
Pequim, onde permaneceram até 1292. Um envelhecido Kublai Khan, que viria a
falecer pouco depois, os encarregou de uma última missão política no retorno à
Europa. Tratava-se de acompanhar uma princesa mongol prometida em casamento a
um príncipe persa, na fronteira Oeste do enorme império mongol.
Para tanto, a
princesa e a enorme comitiva embarcaram em uma frota de quatorze navios (dois
mil tripulantes), que partiu, em 1293, de Hang Zhou(4), na costa da China, e se dirigiu ao estreito de
Malaca, entre Indonésia e Malásia. Ali, ficaram por alguns meses, aguardando os
ventos favoráveis das monções .
Em seguida,
navegaram no Oceano Índico, contornaram o Sri Lanka Ceilão) e a Índia,
atravessaram o Mar da Arábia e penetraram no Golfo Pérsico, onde fundearam em
Ormuz. Nessa cidade, entregaram a princesa ao seu futuro consorte. Em seguida,
organizaram uma grande caravana e trilharam um conhecido roteiro, via
Trebizonda, Armenia e Constantinopla. Finalmente, chegaram a Veneza em 1295,
vinte e quatro anos depois da partida.
Marco Polo,
então com quarenta anos, logo se envolveu em um conflito menor entre Veneza e
Genova, no comando de um navio a remo que comprara e aparelhara. Nesse
entrevero, foi derrotado e aprisionado pelos genoveses durante três anos. Em
uma notável coincidência, seu companheiro de cela foi Rustichello de Pisa,
prolífico e conhecido escritor de histórias lendárias, com boa aceitação.
Das conversas
entre os dois presos, surgiu um texto volumoso, escrito em francês provençal,
intitulado “O Livro das Maravilhas”, também conhecido por “A Descrição do
Mundo”, narrando as aventuras de Marco Polo nas décadas que passara na China.
Esse manuscrito, reproduzido em inúmeras cópias, fez grande sucesso na Europa.
E, ao surgir a imprensa com Gutemberg, em 1455, ele foi impresso em sucessivas
tiragens, em diferentes línguas. (5)
A narrativa do
extraordinário viajante veneziano trazia tantas histórias aparentemente
fantásticas, que levou muitos leitores a atribuí-las à imaginação fértil do
escritor Rustichello. Esse entendimento não se confirmou em diversas pesquisas
posteriores, inclusive do século XX, as quais confirmaram a veracidade da maior
parte da narrativa de Marco Polo.
Mesmo assim, o
livro incendiou a imaginação e a cobiça de cabeças coroadas e de exploradores
europeus. Um deles tinha seu exemplar - preservado até hoje - com muitas
anotações em diversas páginas. Era um genovês teimoso e destemido, chamado
Cristoforo Colombo, que veio a conhecer o texto mais de cem anos depois de ter
sido escrito...
Observações
(1) Cinto frio - Círculo Polar
Ártico;
(2) Tufão (Tai Fun) - chamado
de “kamikase” (“vento divino”)
(3) O desembarque aliado na
Normandia, na II Guerra Mundial, empregou cerca de 5.000 navios e embarcações e
colocou 160.000 homens em terra, em junho de 1944;
(4) Existe uma estátua de Marco Polo no porto de Hang Zhou;
(5) Gutemberg imprimia em papel chinês, aperfeiçoado desde o século II A.C.; o uso de tipos móveis (argila e
madeira) também ocorria na China, porém
limitado pelos milhares de ideogramas; a grande inovação européia foi o uso de
tipos metálicos fundidos, em escrita linear, com 26 letras;
Domingos, um começo prometedor para a trilogia sobre o Celeste Império com que você vai nos brindar.
ResponderExcluirO "Livro das Maravilhas" do Marco Polo foi um dos meus companheiros de infância e adolescência, e me despertou o apetite por muitas outras leituras sobre o Oriente.
Ficamos à espera :)
Estimado amigo Mano
ExcluirComo ficou bem claro, as viagens de Marco Polo abriram um novo mundo para os europeus e , curiosamente, também para os chineses. A segunda parte da trilogia, intitulada "Os Navios do Tesouro",apresenta a espetacular expansão do comércio marítimo da China no Oceano Índico,no século XIV com navios várias vezes maiores que as acanhadas naus e caravelas europeias. Foi um fenômeno quase desconhecido no Ocidente até recentemente.
Chegaremos lá.
Um grande abraço.
Domingos
Muito bom, Domingos. Parabéns. Por acaso estou escrevendo sobre Sri Lanka, a terra pela qual , segundo os relatos de Rustichello , Marco Polo se encantou descrevendo-a como " a ilha do seu tamanho mais bela do mundo". O Livro das Maravilhas foi aquele de cabeceira do Colombo e da minha e o Marco Polo foi um dos heróis da minha meninice junto com o Vigilante Rodoviário (rsrs) Até hoje aquelas narrativas servem de modelo para a literatura de viagem e, não importa se diário de bordo ou ficção,revelaram à Europa o esplendor oriental aguçando a curiosidade dos exploradores, um solo fértil para a semente da era das descobertas.
ResponderExcluirMas a maravilha das maravilhas, a maior das "viagens", é mesmo a boa leitura que o grande Gutemberg - a quem fui apresentado por F. Acquarone noutro livro de nome Os Grandes Benfeitores da Humanidade - popularizou e você nos oferece a cada post.
Gostei de ler sobre o Kublai Khan e os cavalos da raça takhi , sobre as Batalhas de Nakata e os ventos divinos, o tai fun, magistralmente descrito pelo escritor americano James Clavell nas pretinhas do seu romance Tai Pan. Finalmente foi bom entender porque os ventos kamikazes viraram metáfora para os pilotos japoneses na Segunda Grande Guerra.
Obrigado
Estimado Moacir
ExcluirAchei notável você ter tido Marco Polo e o Vigilante Rodoviário como heróis na infância.Juntos!!...
Assim como seu interesse atual pelo Sri Lanka, onde existe um sistema de reserva e distribuição de água, construído por um imperador,há muitos séculos atrás, que eliminou o efeito recorrente das terríveis secas de então. Uma espécie da nossa atual transposição do São Francisco.
A primeira e a segunda parte desta trilogia têm o objetivo
de demonstrar, na prática, a quase infinita capacidade do povo chinês de, quando convocado pela autoridade mandante, juntar esforços para realizar coisas inimagináveis.
É claro que existe a Muralha da China para provar isto. Mas ela é feita de pedra e é estática.
Daí vem a terceira parte.Na cabeça de um marinheiro, acostumado com as condições eternamente mutantes e de eventual extrema violência do mar, exigindo verdadeiros milagres de engenharia, é muito complicado entender e aceitar como os chineses conseguiram construir e operar esquadras de milhares de navios muito antes dos europeus.
Tudo isso desemboca no que eles estão fazendo atualmente, em termos de esquadras para dominarem os mares. Foi o que fizeram os espanhóis e os ingleses em diferente épocas. É o que os Estados Unidos dispõem agora. E no futuro próximo, em duas , três gerações adiante?
Onde entra o Brasil nessa equação, felizmente isolado em um canto do mundo e cercado de riquezas e problemas da América do Sul? E com a África em frente?
Um forte abraço.
Domingos
1) Obrigado pela ótima aula sobre o então Celeste Império = China.
ResponderExcluir2)Estou na primeira fila, aguardando as próximas aulas, com toda atenção. Grato !
Prezado Antonio
ExcluirÉ uma grande coincidência você e eu termos escrito artigos que falam da "Rota da Seda". A propósito,ela passava na cidade de Tashkent, sobre a qual li que era muito quente. e recebeu este nome de comerciantes portugueses,que repetiam "está quente" quando lá estavam.
Muito obrigado por "estar na primeira fila". Há muito que aprendermos sobre a China. Vou tentar fazer meus netos estudarem mandarim.
Um grande abraço.
Domingos