fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
O Brasil cuida e exalta muito pouco aqueles que verdadeiramente
contribuem com seus esforço e talento - e até com renúncias quase religiosas - para
construir uma obra de uma vida inteira como a Oficina Brennand erguida durante
quase cinquenta anos por Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand, um dos
maiores artistas brasileiros vivos, na terras do Engenho São João em
Pernambuco.
Trata-se da antiga Cerâmica São João fundada faz quase um século, cujas
ruínas Brennand herdou de um pai ainda vivo e amigo e vem restaurando desde
então, transformando as antigas paredes em museu, em uma “fortaleza sitiada”,
onde se esconde e coleciona a própria arte
Brennand trabalha em modalidades variadas usando, às vésperas de
completar noventa anos, materiais distintos e múltiplas técnicas para expressar
a sua mente criativa.
Mas, no fundo, Francisco é um pintor a quem não interessa o suporte no
qual lança as suas tintas: se barro, se tela, se papel, se madeira. No desenho,
na pintura, nos murais ou nas esculturas de cerâmica, ele é genial. E, sem
deixar de ser nordestino, se tornou universal.
Contemporâneo, moderno e erudito a formação artística de Brennand, tem
forte sotaque europeu que não destoa, no entanto, daquele outro arrastado, jocoso
e sertanejo, de um dos seus melhores amigos - o Mestre Ariano Suassuna - com
quem, faz alguns anos, fez um juramento solene: não permitiriam que a morte os
vencesse.
“Juramos, aqui na Oficina, que não
morreríamos e pronto”, diz Brennand, que já tem pronta, no
entanto, a urna de cerâmica onde serão depositadas as suas cinzas. Ariano está
presente com as suas pretinhas no cotidiano do amigo.
O saudoso Mestre Suassuna, para quem Brennand desde garoto ilustrava os
poemas, gostava de Francisco porque o artista ama a literatura e era
correspondido já que Ariano também amava e compreendia a arte.
Suassuna opinava muito frequentemente sobre a arte de seus
contemporâneos, os artistas pernambucanos:
“Nós, nordestinos, nos preocupamos em
sermos fieis à terra, aos mitos, às histórias, às formas e às cores da região.
Não nos damos por satisfeitos senão quando sentimos que tais coisas estão
agredindo os outros à primeira vista, de dentro de nossas obras.”
A leitura de um só dos poemas de Ariano, de nome Fazenda Acahuan, aquele
que no qual relata o assassinato do pai então governador da Paraíba por razões
políticas, é o bastante para explicar a sua arte, já que a dor da ausência
paterna jamais serenou e, creio, a poesia foi apenas a linguagem inventada por
ele para falar dessa ferida funda.
Aqui
morava um rei quando eu menino
Vestia
ouro e castanho no gibão,
Pedra da
Sorte sobre meu Destino,
Pulsava
junto ao meu, seu coração.
Para mim,
o seu cantar era Divino,
Quando ao
som da viola e do bordão,
Cantava
com voz rouca, o Desatino,
O Sangue,
o riso e as mortes do Sertão.
Mas
mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi,
como cego sem meu guia
Que se
foi para o Sol, transfigurado.
Sua
efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a
brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.
A arte de Francisco Brennand, no entanto, não é simples de entender como
a desse Ariano menestrel, arte armorial e de cordel, de quem nunca se
aventurou, a não ser pela leitura caudalosa, para além dos mares de cana caiana
de sua terra natal embora seus amigos tivessem outros horizontes.
Francisco Brennand não recorda qual foi o seu primeiro contato com o
mundo ambíguo da pintura e da arte em geral.
“É como perguntar aos santos em que dia
eles notaram sua santidade”, diz ele.
Sempre, desde muito novo, Brennand leu sobre a pintura e foi fascinado
pelos mestres e jamais viu interrupção nessa cadeia eterna de pessoas
inspiradas, desde o desenho das cavernas,
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passando pela mão de Michelangelo até os dias atuais. Foi especialmente
cativado pela trindade inicial da arte moderna: Cézanne, Van Gogh e Gauguin.
Mais que Portinari, entre os seus pares Brennand aprecia Guinard, Pancetti, Di
Cavalcanti, Siron Franco e Lasar Segall.
As esculturas de Brennand são brasileiríssimas, sim, pois o barro
pernambucano é a matéria delas, mas os seus temas e formas superam
regionalismos e nacionalidade. Além disso o fabuloso domínio que Brennand
adquiriu sobre a técnica e os processos e transformações que comete nas argilas
enquanto elabora suas esculturas, não nasceram abaixo do Equador. E esse é o
fascínio e o diferencial e o mistério das obras do artista.
Talvez por isso, na Oficina de Brennand, as pessoas ajam como se
estivessem em um espaço consagrado. Conta o artista que nos primórdios da vocação
“turística” do local, um motorista de táxi, ao descrever a Oficina para um
passageiro teria dito que ela “parecia o
Egito”.
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Tal comentário ingênuo e espontâneo muito agradou ao artista, porque
durante as reformas da velha olaria da família ele sempre se sentiu assaltado
pelo medo de fazer com que o local perdesse a qualidade que sempre o encantara
desde a mais tenra infância: o mistério. O “Egito” lhe pareceu de bom tamanho
como adjetivo para o seu museu.
Outra história muito mencionada por Francisco trata da senhorinha que ao
levar à Oficina uma sobrinha visitante vinda do Sul Maravilha, já sabedora da
fama ex(r)ótica do local preferiu ficar a salvo dentro do carro. Como sua
hóspede tardasse a voltar, achou por bem verificar o que estava acontecendo.
Quando se deparou, logo na entrada, com a estranhíssima coleção de
“sereias” não se conteve e exclamou:
“Minha Nossa Senhora! Mas isso não é
pornografia. É uma Casa de Horrores!”(rsrs)
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Fortemente ligado à tradição, Brennand é o homem fáustico, um senhor
feudal construindo o seu castelo e mausoléu. É como se ele moldasse naquela
Várzea, à margem de todos os ismos, uma arte personalíssima, uma lógica
interna, pessoal, a sua ideia de um ciclo do tempo, de um retorno às origens. O
seu mundo da lua.
Toda essa circularidade, esse voltar às ideias antigas é da natureza,
também, da criatividade, que costuma retornar às ideias que não deram certo,
como Brennand fez com a própria olaria falida do pai. Diz o artista:
“Eu sou um artista ocidental quando eu
pinto. Ao fazer cerâmica, não tenho pátria. A minha pátria é o abismo. E se não
tenho pátria quando faço cerâmica, é simplesmente porque terra e argila tendem
a coexistir com os elementos primordiais”.
Outra tradução para tais pensamentos e sentimentos encontra-se gravada
em cerâmica nas paredes da Oficina:
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A arte de Brennand, mesmo a que captura o que há de mais efêmero - o
colorido da fruta, o vergar dos caules, o sol nas folhas, o serpentear dos
répteis, a doce e breve beleza da juventude - pertence não a um vazio
espiritual, mas a eternidade que ele busca.
Mas não sei se percebem isso as gentes que caminham hoje por lá e pela
vida, bêbados de tanta informação e mediunizados por gadgets, com as mãos
coladas às têmporas, empunhando os celulares, como faziam antigamente os
suicidas com os revólveres.
Hoje mais do que nunca é necessário buscar na arte um papel civilizador
mais urgente, uma estrela guia para caminhos nos quais tudo está sempre prestes
a se tornar obsoleto, pois não temos tempo para espiar dentro de nós ou para o
cosmos ou para o belo ou para nada e o resultado é que a vida passa contada por
aquisições e não por aprendizados.
De vez em quando, cada vez mais raramente, Brennand sai do esconderijo,
circula pela Oficina, conversa com as visitas e até permite que lhe fotografem
as barbas brancas. Eu sinto que as pessoas compreendem que há algo de heróico
no papel assumido por esse velho artista, na figura demiúrgica de Francisco
Brennand.
Elas percebem, incomodadas, que o que Brennand tenta nos dizer é que continua
havendo pelo menos na sua arte, um vínculo milenar e atávico com tudo que é sagrado.
Pode-se encontrar facilmente um artista sem religião, mas é muito
difícil que não more neles, além da curiosidade, a fome pela espiritualidade.
Sobre o tema diz o próprio Brennand:
“A propósito do Pátio da Oficina, na água,
estão Vênus e os peixes. No pátio todos os deuses antigos. No pórtico (em forma
de mural em relevo) São Sebastião flechado por folhas, ainda com reminiscências
arcaicas. Nos dois umbrais, propositadamente, Cosme e Damião velam pela nova
Fé. Como diz Hocke, ‘neste tipo de criação o instinto autístico parece
desenfreado, mas o instinto de comunicação, este é bem freado.' E este freio
leva ao silêncio e à dissimulação e ainda à transcrição hieroglífica de um amor
imaginário”.
Esse respeito pelo antigo, pelas raízes é algo difícil de se encontrar
hoje em dia na arte, tão completamente traída pelos “artistas” contemporâneos.
Os conceitos, os questionamentos, as abstrações, as fragmentações, as estéticas
revolucionárias e as ideologias doidas de pedra passaram a ser dogmas e não
experimentação e chegaram a exilar o rosto, a paisagem, a considerá-los
reacionários e inúteis. Era uma vez a relação milenar da arte com o divino.
Os supostamente modernos deletaram as origens da arte, desde aquelas
pequenas esculturas femininas e grandes pinturas rupestres, como as de Lascaux
e Altamira, que estavam diretamente em contato com o espiritual e eram
executadas por mãos xamãs.
É bom descobrir que perdura na arte de Brennand além do figurativo, essa
simbiose atávica e milenar, esse elo entre a arte e o divino, entre o artístico
e o religioso.
Não sei se Brennand é religioso mas tenho certeza de que é um ser humano
de imensa religiosidade, ou seja, que tem essa intuição que nos liga a algo
maior que nós, para além da realidade em seu sentido mais rasteiro.
Isso se percebe em toda a obra brennandiana: a roda dos nascimentos, o
sofrimento humano, a dança macabra, a velha senhora empunhando a sua foice e
sempre lá, em algum lugar, a tal da eternidade.
Francisco Brennand publicou em dezembro passado o seu diário. Um
parágrafo merece ser aqui registrado:
“Olho para todos os lados, para cima e
para baixo à procura do que fiz e ainda terei de fazer. Gosto amargo, sim.
Gosto amargo dos sonhos de um iludido romântico.
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Contudo, o sol esplendoroso de novembro
invade toda a nave enegrecida, tingindo-a de ouro e violeta. Olho mais uma vez
avidamente para o conjunto e adormeço no sonho, para que ele me ajude e que não
acabe também por se corromper: a sua imediata obrigação é ser só sonho”.
Adorei o artigo e as fotos, Moacir. Foi muito legal conhecer a opinião do taxista e da senhorinha porque fiquei com menos vergonha de dar a minha kkk Do lado de fora parece mesmo um sonho! Acho que se as estátuas não estivessem no meio da natureza o impacto seria menor. A minha sensação de estar num templo não teve nada a ver com os santos nem com a capelinha. Senti esta coisa que você chama de ‘religiosidade’ do artista no interior da fábrica. Na parte dos velhos fornos escuros iluminados com as luzes vermelhas para imitar o fogo. Obrigada!
ResponderExcluirMônica,
ExcluirEntendo que Francisco Brennand é um sobrevivente do ancestral culto da Mãe Terra que ele representou no painel que vemos no post (rsrs) E que, na Oficina, ele se auto retratou como uma espécie de xamã, de Feiticeiro, aquele que se apropria dos mistérios e que muda a matéria, no caso, o barro e através do fogo. Essa escultura mora à direita de quem entra no quadrilátero do lago, à beira daquilo que, na terminologia do artista, é o “Templo” da cúpula azul.
Mas os sinais de espiritualidade , os link entre a terra e o céu, estão por todos os lados no trabalho dele: na própria natureza que as obras habitam , nas vênus rupestres, nos fálicos pássaros Rocca protetores, nas mitologias, nos personagens bíblicos e santos e mártires , na verticalidade do símbolo de Oxóssi - que é o da própria Oficina! - no ovo representando a reprodução e a vida eterna e por aí vai.
Mas...concordo com você quanto ao fato de que, notadamente nos fornos, essa pretendida alquimia "apátrida" talvez seja mais evidente: eles nos remetem à descoberta do fogo, às cavernas ancestrais, às catacumbas cristãs, à escuridão da Idade das Trevas.
Mas note que o entorno dessas fornalhas transformadas quase em capelas, o ambiente circundante, também é pleno de misticismo e simbolismos e contribui para o drama: as mandalas no piso, os lustres pesados, os deuses pagãos, o anfiteatro romano e tal.
Se a palavrinha “efeito” no seu comentário significa um cenário montado acho que você acertou de novo. Lembro que numa das nossas visitas há alguns valentes anos, ali se escutava música sacra. Acho que, para Brennand assim como para os gregos e qualquer artista da gema, a única tragédia é a morte e o resto é pretexto para um belíssimo drama (rsrs)
Obrigado e abração
Moacir,
ResponderExcluirUm artigo lindo que faz refletir. Destaco uma pérola:
'Não temos tempo para espiar dentro de nós ou para o cosmos ou para o belo ou para o nada e o resultado é que a vida passa contada por aquisições e não por aprendizados'.
Concordo que o vazio espiritual não deve ser fonte de inspiração mas penso que quem olha de verdade para dentro e ao redor termina encontrando Deus de um jeito ou de outro.
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirA Oficina é o mundo da lua de Brennand, feito à sua imagem e semelhança numa espécie de viagem no tempo, num passeio cósmico, habitado por suas criaturas e demônios, por elementos ancestais , pela dor do mundo.
Acredito que a inspiração de Brennand é alimentada por várias fontes literárias, artísticas, arquitetônicas mitológicas, históricas, pelo mistério da criação e pelo ciclo da vida, mas acima de tudo pela condição e pelo drama humanos.
Note que as mais impressionantes construções da humanidade são religiosas - Stonehenge, o Partenon, a Hagia Sofia, a Cúpula da Rocha, o santuário de Meijin, os templos de Angkor Wat , os monastérios de Meteora, a Sinagoga de Praga, os ghats de Varanasi , as catedrais góticas, a Sagrada Família de Gaudí etc,etc,etc.
Em todos os lugares consagrados as formas carregam valores espirituais. Nas cavernas as imagens que vemos são de animais, nos santuários hindus e gregos elas são antropomórficas, nas catedrais elas representm Jesus , Maria e os santos.
Na Oficina tudo também é simbólico, tem um significado que não é jamais o de face mas mágico e religioso, espiritual e estético e nada está ali por acaso. Como o artista mesmo diz trata-se de “uma transcrição hieroglífica de um amor imaginário".
No mundo criado por ele, nesse templo dedicado a si mesmo, ele é o Criador e suas obras são estranhas criaturas que linkam a matéria e o espírito e a arte e o divino.
Decerto que aquilo não é apenas uma coleção de obras de arte mas a maneira que ele criou para validar a própria vida. Sim, eu acho que artista ao criar está flertando com a eternidade.Só que esse meu achar não é um fato e sim poesia. Mas respeito a sua fé. "Felizes os que acreditam".
Um grande abraço
Olá Moacir,
ResponderExcluirSem dúvidas, você tem a alegria do saber e a paixão pela arte e pela vida. E dá de presente para nós com a sua bela escrita.
Grata. Bom sábado.
Até mais.
Caríssima Donana
ExcluirQue pena! Eu muito aprecio as suas dúvidas instigantes e aprendo muito com elas. Aliás acho que determinados verbos como ver, fotografar, compreender, aprender e escrever só têm graça se compartilhados , se conjugados na primeira do plural por uma estrada de mão dupla.
Se não, pra quê?
"Até mais"
Olá de novo
ExcluirAdorei os seus comentários para as meninas, aprendi muitas coisas e despertei para outras, como os lugares sagrados. E viva o conhecimento!
Até muito mais.
1)Contemplando fotos belas, com uma riqueza de detalhes impressionante.
ResponderExcluir2)Parabéns Moacir.
3) Obrigado pelo passeio turístico cultural na "Oficina do Oleiro", uma senhora aula !
Antônio,
ExcluirAntes de escrever sobre Brennand, em agosto passado, eu visitei a Oficina e fiz quase quinhentas fotos. Aquelas paragens só vendo muuuitas vezes para ousar descrever.
Abração
Pimentel,
ResponderExcluirCom certeza uma merecida homenagem aos grandes Francisco Brennand e Ariano Suassuna.
Sampaio,
ExcluirNão sei tentei homenagear esses gigantes. Tentei falar apenas das artes deles porque entendo que merecem ser conhecidas. Obrigado pela leitura e comentário.
Pimentel,
ResponderExcluirMe perdoa, pois cheguei atrasado em elogiar pela enésima vez os teus trabalhos sempre excelentes.
Portanto, este é mais um daqueles que copio e arquivo como demasiadamente importantes quanto às informações sobre arte e seus autores notáveis.
Muito obrigado pela cultura que estás me ensinando, e provocar em mim um interesse que eu não tinha neste sentido, sobre pinturas e esculturas.
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Olá amigo Francisco!
ExcluirEstou me metendo na conversa. Vamos ter que te dar uma dura denovo?
Quando sairá o novo texto?
Até breve.
Bendl,
ExcluirFico feliz de saber que você está se interessando por minhas talvez cansativas "artes". Além de agradecer-lhe pelo comentário e de mandar-lhe outro abraço faço minha a pergunta da Donana.
Minha prezada Ana,
ResponderExcluirMinha mente é frágil, e se a pressionamos demais ela desliga!
Confesso que a política me toma o tempo, e dois artigos de minha autoria foram publicados na TI quase que em seguida porque abordei de forma profunda o Sistema.
Assim, as inspirações para temas amenos, porém cultos, informativos, admito que eu esteja distante, mas verei o que posso fazer para merecer a permanência neste oásis Conversas do Mano, um espaço restaurador e apropriado para este cotidiano brasileiro tão contrário ao povo.
Um forte abraço.
Saúde e paz.