-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

01/05/2017

O Timoneiro

Nau Capitânia - foto divulgação 


Heraldo Palmeira
Fazia algum tempo que eu não andava pelo Centro do Rio. O pedaço da Rio Branco interditado a automóveis era resultado da nova arquitetura da mobilidade urbana, herança das Olimpíadas.
Desci do táxi e entrei no majestoso Clube Naval, onde almoçaria daí a pouco a convite de um amigo muito querido. Apesar de estar apenas passeando pela cidade, me vesti com a solenidade mínima exigida pelas tradições do local, em roupas sociais.
Antecipei de propósito meu horário britânico para honrar o militar da mais alta patente da Força. Em poucos minutos ele chegou com a fibra nobre dos almirantes e a leveza da personalidade cativante de sempre, cumprimentado por todos que cruzavam conosco pelos corredores. Homem culto, sempre foi um liberal, apaixonado pelo mar, pela profissão que abraçou, amante da História, das artes, dos submarinos, escritor inspirado.
Heraldo Palmeira e Domingos Castello Branco

Rumamos a um salão belamente mobiliado onde, enormes poltronas de couro, colocamos a conversa em dia. Falamos de tudo, rimos de diversas situações que vivemos juntos num passado de quase vinte anos. Entreguei um pacote de fotos da época. E lá se foi nossa primeira hora.
Subimos dois andares e entramos no restaurante, um dos recantos nobres do clube. Acolhida fidalga, inúmeros cumprimentos dos que entravam e saíam, rápidas conversas sempre a respeito das famílias e de boas recordações das vidas deles.
Finalmente nos dedicamos aos sabores principais e seus acompanhamentos. Ao final, ele fez questão de ir à cozinha, recebido com festa. Nosso próximo porto, o balcão do café. E lá se foi nossa segunda hora.
Descemos os mesmos dois andares até a sala da conversa inicial. Ele abriu o pacote de fotos, revivemos fragmentos da nossa grande aventura: Nau Capitânia, construída para festejar os 500 anos do Descobrimento.
Lembramos do grande erro estratégico, convidar a imprensa para o primeiro teste de mar do navio. O tempo mudou repentinamente e caiu uma tempestade violenta sobre o mar da Bahia. Netuno formou mar grosso, como os marinheiros chamam o mar revolto.
Os jornalistas, marujos de primeira viagem, embrulharam o estômago, entraram em pânico e vomitaram desgraças inexistentes. Resultado: um festival de inverdades e má vontade poucas vezes visto.
Os dois motores da Nau Capitânia foram tirados da caixa novinhos em folha e instalados na casa de máquinas para a viagem inaugural. Um vazamento de diesel no piso do porão foi mostrado como a antessala do fim do mundo, mesmo o almirante tendo determinado, por segurança, a volta imediata ao porto – uma decisão absolutamente normal no ambiente naval.
De repente, ganhou força o boato do naufrágio que nunca ocorreu – quem adernou em outro momento, por puro abandono, foi um navio semelhante (caravela) de nome Espírito Santo, na beira-mar de Vitória.
Outros que sequer viram Nau Capitânia de perto chegaram a endossar o tal naufrágio, noticiando que o mastro principal (uma tora de 26 metros) quebrou durante a tempestade e sua queda colocara o veleiro a pique. O mais incrível é que ninguém se ocupou em mostrar o local do naufrágio ou o resgate do navio – que “voltou a navegar” em tempo recorde, algo impossível se tivesse afundado aos pedaços.
Também foi publicado que o navio balançava demais por falta de lastro. Limitados a colocar barquinhos de plástico para flutuar em banheiras e tanques na infância, os navegantes de redações não tinham conhecimentos gerais sequer para entender um componente histórico básico.
Somente a partir do século 17 é que os navios começaram a ser construídos com projetos de engenharia. Desde seus primórdios até ali, a construção naval ocidental se baseava nas técnicas de navegação da Índia, que já tinha um notável intercâmbio comercial marítimo com o leste da África e fabricava embarcações muito superiores às construídas na Europa.
As réguas que os indianos usavam como instrumentos tecnológicos levavam em conta a relação entre altura da mastreação, boca (largura do barco), calado (parte do casco que trabalha abaixo da linha d’água) e capacidade de carga pretendida (calculada em toneladas, por causa dos tonéis de barro usados para armazenamento desde os gregos e fenícios ancestrais).
Essas réguas chegaram ao Egito e, pelo Mediterrâneo, desembarcaram finalmente em Portugal através das suas grandes navegações. Os navegadores europeus denominavam “Índias” tudo aquilo que não estava na região do Atlântico e os portugueses já sabiam que havia uma grande civilização (a indiana) naquele outro pedaço do mundo, para onde se aventuraram em busca das especiarias a bordo de suas naus e caravelas.
Naquele tempo tudo era concebido a partir da sabedoria popular dos mestres dos estaleiros. Tanto que só haviam gravuras e quadros históricos dos pintores da época para orientar o projeto Nau Capitânia.
Segundo mestre Aurélio, lastro é “tudo quanto se mete no porão do navio para lhe dar estabilidade”. Diante da inexistência de documentos que permitissem qualquer referência comparativa a respeito do lastro das embarcações originais portuguesas, as autoridades navais brasileiras, por prudência técnica, recomendaram padrões de lastreação muito acima do necessário para o projeto da Nau Capitânia. Com isso, o navio adquiriu limites de segurança de navegabilidade muito elevados.
Na verdade, nossos jornalistas multidisciplinares – arrogantes o suficiente para nunca perguntar sobre o que não sabem e fazer uma boa apuração – desempenharam com louvor o papel de joões-bobos: não tinham alcance para traduzir o “balançar demais” (como um boneco joão-bobo, que sempre volta ao ponto de equilíbrio) exatamente como expressão do grande lastro do navio, uma de suas virtudes náuticas mais destacadas.
Depois de ser vitimada por jornalistas mareados, mentiras virais, confusões e intervenções de figuras obscuras à procura de holofotes, chegou a hora de resgatar a imagem do navio, um veleiro de navegação oceânica de grandes qualidades.
Um amigo comum me apresentou ao almirante e iniciamos nossa aventura. Tudo começou com a viagem da Base Naval de Aratu – local da construção – até o Rio de Janeiro. Depois de uma parada técnica em Angra dos Reis, onde causou frisson e fomos obrigados a abri-lo à visitação pública por dois dias, ele chegou majestoso pelo Recreio dos Bandeirantes e atravessou toda a orla da Zona Sul carioca em cortejo honroso, cercado por diversos barcos, até atracar na Marina da Glória. O domingo de sol foi um adorno luxuoso, inclusive para o encanto da imprensa internacional que embarcou em pleno mar.
Um político metido a ambientalista ensaiou uma abordagem pirata para “fazer denúncias”. Chegou numa catraia acompanhado de fotógrafo particular e tentou subir a bordo na marra. O oportunista louco pelas lentes do mundo deu meia-volta quando as primeiras vaias dos convidados embarcados cobriram o som fanho do seu megafone.
Chegou a hora de levantar âncora e rumar a Paranaguá, Antonina, Itajaí e São Francisco do Sul. Fluminenses, paranaenses e catarinenses somaram mais de trinta mil visitantes com ingressos pagos (preço simbólico, para ajudar no custeio da viagem), encantados por aquela espécie de máquina do tempo.
Depois do retorno ao Rio, navegamos até a região da divisa com o estado de São Paulo, para as filmagens de Desmundo, do diretor Alain Fresnot. Passo seguinte caíram sobre minha mesa diversas propostas para o navio: participar de regatas internacionais (como nave-madrinha), servir de cenário a videoclipes musicais, festas diversas e filmes de Hollywood.
No melhor padrão brasileiro, Nau Capitânia continuou imóvel, vítima da nossa burocracia, de jogos de interesses e viveu um período de desprezo fundeada diante da orla de Niterói. Ficou claro que aquele navio contrariou muitos interesses. Nos bastidores, meu amigo incansável lutou até que ele fosse acolhido num lugar digno.
Hoje, passadas as tempestades, serenadas as invejas e vencidos os burocratas irremediáveis daqueles tempos, o veleiro rebatizado como Nau dos Descobrimentos foi finalmente alojado num cais nobre, o Espaço Cultural da Marinha, na praça Mauá. Agora, faz parte de um conjunto de seis navios históricos e recebe visitação constante de turistas e jovens colegiais.
Não sem razão, me veio à mente a voz suave de Paulinho da Viola, em perfeita sintonia com o meu querido almirante.
Sem preconceito
Ou mania de passado
Sem querer ficar do lado
De quem não quer navegar
Faça como um velho marinheiro
Que, durante o nevoeiro
Leva o barco devagar
Perto da nossa quarta hora de prosa tomamos um último café, descemos a nobre escadaria, chegamos à calçada e nos despedimos com delicadeza e boas palavras.
Vi aquele homem sempre gentil, sempre amigo atravessar a rua e se perder no molho de transeuntes, carregando com ele um pedaço da história náutica do meu país. E eu, um coração civil, sempre atrapalhado sem saber como reverenciar aquela doce criatura calejada pelas honrarias navais.
Da janela do táxi, aproveitando a espera do sinal vermelho, pude ver um pouco mais da nova cara da avenida Rio Branco com seu bonde moderno reinando sem carros e ônibus. Pelo rádio, Milton me chegou feito maré enchente.
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar
Não muito longe dali meu navio querido repousava em águas abrigadas, como que rendendo homenagens ao seu verdadeiro comandante. Incorporado à paisagem da cidade por merecimento. Dele e do seu grande timoneiro.
Entrei de novo na casa filial em Laranjeiras, ambiente amoroso que me deixa muito bem – diante de um janelão no último andar do prédio, com vista garantida para a mata virgem e um pedacinho (do peito pra riba) do Cristo Redentor com seus braços abertos sobre a Guanabara!
 
Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara (fotografia Heraldo Palmeira)

Volta e meia, a farra dos passarinhos e saguis se misturava ao movimento do vento, confirmando a vida intensa da floresta que circunda o bairro e sobe pelo Maciço da Tijuca. A mesma visão que os marinheiros tiveram ao chegar a Pindorama trazidos por caravelas e naus, como aquela que encanta meu coração.
Fiquei em silêncio diante daqueles pensamentos, enquanto a música buarqueana dominava a sala.
Não se afobe, não
Que nada é pra já
Milênios, milênios no ar
E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não
Que nada é pra já
(*) Dedicado a Domingos Castello Branco, meu querido almirante, um velho marinheiro que tem levado com serenidade todos os barcos até o cais.
(**) Trechos de Argumento (Paulinho da Viola) / Cais (Milton Nascimento-Ronaldo Bastos) / Futuros amantes (Chico Buarque).


13 comentários:

  1. Wilson Baptista Junior01/05/2017, 09:17

    Heraldo, um belo desagravo a uma nau injustiçada e um belo tributo a um amigo que nós aqui do blog a cada mês vamos conhecendo mais um pouco.
    E uma feliz oportunidade de conhecer nestas páginas os rostos dos dois.
    Um abraço do
    Mano

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira01/05/2017, 11:07

      Meu caro Mano,
      O projeto Nau Capitânia foi uma experiência extraordinária e lamento muito que interesses mesquinhos tenham tirado o direito de o país compartilhar e usufruir daquele grande navio.
      Nosso almirante é um gigante, acredite. Sorte a nossa de tê-lo aqui no barco das escritas. Abraço.

      Excluir
  2. Meu querido Amigo, daqui de frente ao mar sempre ameno da esnseada de Búzios, me delicio com mais um texto magistral.
    Grande HP., sempre mostrando a perícia de um mestre Almirante das letras, sempre disposto a desembainhar a pena esteja o mar calmo como neste texto que ora desfruto ou para enfrentar como espadachim imbatível os PiraTas que despudoradamente nos saqueiam.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira01/05/2017, 13:58

      Mestre MT,
      Ora, pois, direi ouvir estrelas nesse super terraço de Búzios, que ficou na dívida em minha última passagem por nossas paragens.
      Sempre bom saber que meus rascunhos navegam nas suas telas.
      Sem dúvida, a vida nos ensinou a aproveitar os mares calmos e estar firmemente alertas diante dos bucaneiros de ocasião.

      Excluir
  3. 1) Belo texto, resgatou com nobreza um fato que as mídias levaram nas pilhérias, infelizmente...

    2)Escrevam mais, por favor, os dois da foto: Heraldo e o Almirante.

    3)Me parece que Domingos Castello Branco tem grau de parentesco com os Pires Ferreiras, familiares nos quais me incluo...

    4) Conforme www.parentesco.com.br em artigo que já abordei aqui.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira01/05/2017, 16:00

      Antonio,
      Sim, nossas mídias falharam deliberadamente, covardemente com o projeto Nau Capitânia, defenderam interesses e desinformaram a sociedade.
      Acredite, estou escrevendo tanto quanto posso para nosso Mano. Abraço.

      Excluir
    2. Estimado Antonio Rocha
      Você está certo ao comentar a proximidade das famílias Pires Ferreira e Castello Branco. Lembro-me muito bem de conversas de Mamãe e meus tios e tias, falando de casamentos entre os dois ramos. Vou perguntar às minhas irmãs que,como mulheres, devem saber tudo a respeito.Nessas coisas nós, pobres homens, somos um desastre.
      Voltarei ao assunto.
      Um abraço fraterno

      Excluir
  4. Olá Heraldo,
    Belo texto e belo amigo!
    Como disse o Antônio, escrevam mais ,os dois!
    Até mais.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira01/05/2017, 19:45

      Ana,
      Obrigado, o almirante é mesmo uma grande figura humana e Nau Capitânia uma navio à altura dele.
      Quem dera eu conseguisse escrever mais. Até mais.

      Excluir
  5. Moacir Pimentel02/05/2017, 09:55

    Desde a primeira vez que li suas pretinhas "tremeluzindo" em um blog da vida respirei fundo e comecei a comentar : Mestre Heraldo.
    Jamais esquecerei aqueles seus postes de antigamente cujas linhas só serviam de escala para o voo dos passarinhos e de tumba para o voo das nossas pipas. Repito: dê um jeito daquela poesia na veia caber nas Conversas (rsrs)
    Quanto ao Almirante, se bem que muito apreciei aquela cigana Esmeralda derrubando um touro pelo rabo por dia e perseguindo o homem do seu encanto de porto em porto e os relatos amazônicos, devo confessar que ao nos contar do Matucão, Domingos tocou a alma funda de quem de tanto ser chamado de "esse minino" jamais pode voltar as costas aos mares de cana caiana da sua infância. Foi ali em terra firme e "léguas tiranas" que me tornei, irremediavelmente, fã do nosso lobo do mar.
    Quanto à história da Nau Capitânia - entrei de gaiato no navio pois dela nada sabia!! - registro meus parabéns aos dois marinheiros-autores. Que ambos naveguem sempre e escrevam mais.
    Abração

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Heraldo Palmeira02/05/2017, 11:21

      Caríssimo,
      Desde a primeira vez que mereci um comentário seu, senti que havia muito mais generosidade do que qualidade da minha escrita, mas segui em frente, crente que estava abafando - e sigo. Daqueles tempos sobram saudades enormes e o contato com o dono do chão abençoado que nos abrigava.
      Conforme prometi, estou reformando devagarinho a linha de distribuição para que "Tremeluzindo" caiba nestas Conversas. Pode deixar, é compromisso.
      O Almirante é muito mais do que escrevi aí por riba. Um sujeito extraordinário, tipo presente grande da vida.
      Nau Capitânia é daquelas paixões de vida inteira, mesmo que o tempo dela na minha esteja agora congelado pelo passar irremediável desse mesmo tempo. Abração.

      Excluir
  6. Queridos amigos desse abençoado Blog do Mano
    Heraldo do coração, companheiro de muitas aventuras.
    Sinceramente,fiquei muito emocionado com a descrição de nosso encontro e é com arrepios na espinha e lágrimas nos olhos que
    agradeço suas palavras a meu respeito.
    Momentos como este são tão belos como navegar em um veleiro silencioso, com seus panos brancos, em noite sem lua, vento brando, céu limpo, sob uma abóboda cravejada de estrelas, como fiz várias vezes na vida.
    Convido vocês todos, querido Heraldo e amigos e amigas de doces palavras,a continuarmos essa travessia juntos, mesmo se o tempo virar, o mar se encapelar, as ondas se agigantarem, o barco balançar e caturrar. Sempre haverá um porto amigo para nos abrigar. Com ou sem Esmeraldas...
    Um abraço muito, muito, emocionado para todos os embarcados nessa grande invenção do Mano.
    P.S. - Heraldo, meu irmão, Dona Maria, minha querida Mãe,com um metro e meio e quarenta e cinco quilos, iria adorar em ver o filho chamado de "gigante"; ela me fazia abaixar quando queria puxar minha orelha...

    ResponderExcluir
  7. Heraldo Palmeira03/05/2017, 11:35

    Meu querido Almirante,
    Navegar é preciso em qualquer sentido - necessário e exato.
    Estarei sempre pronto para suas águas. Calmas ou encapeladas, barco deslizando ou caturrando.
    Quanto a Dona Maria, guardiã do grande comando.
    Muito bom navegar sabendo que há este porto Mano seguro. Abraço apertado, fraterno deste aprendiz de marinheiro.

    ResponderExcluir

Para comentar, por favor escolha a opção "Nome / URL" e entre com seu nome.
A URL pode ser deixada em branco.
Comentários anônimos não serão exibidos.