fotografia Moacir Pimentel |
Moacir Pimentel
Tomo emprestado dos nordestinos o adjetivo que conferem a tudo que não
entendem lá muito bem para dizer que Brennand é…
“Problemático”.
Mas o grande problema talvez não seja não saber o que somos, mas
justamente saber que não sabemos. Como varrer da consciência de um artista
nascido em 1927 e comprometido com o seu ofício de retratar e comentar o mundo as
suas memórias de “obras” do século passado como a Segunda Grande Guerra,
Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki, a Europa arrasada, a Ditadura, aquela menina
correndo nua com o corpo em chamas, os bebês esqueléticos dos campos de
refugiados em África e, na grande virada, aviões esfaqueando prédios, as
barbáries cometidas pelos povos do livro, o terror, a corrupção desvairada, as
reses morrendo de sede depois dos últimos mandacarus e os nossos adolescentes
catando a vida nos lixões das grandes cidades ou matando-se no tráfico e nas
cracolândias?
Esses são os temas que estão colocados para os artistas nesses tempos
escuros. Então o sentimento de existir e a consciência que nutrem a
criatividade de um narrador de “estórias” não podem gerar muito mais do que o
que vemos: sofrimento, vulnerabilidade, dilaceramento, fragmentação e a certeza
de que estamos fazendo tudo certo, para que tudo dê errado.
O homem e o artista Brennand sabem disso muito bem e o concretizam numa
obra que não é cor-de-rosa com bolinhas azuis. Já em 1967 sobre sua então Fase-
Flora ele afirmava:
“Procuro animar os vegetais a ponto de
torná-los reveladores do drama humano”.
Então sempre nos pareceu que Brennand molda e pinta o drama humano, e
que é o pessimismo existencial que o linka à ancestralidade, à antiguidade
ocidental, às grandes tragédias da humanidade. Esse retorno dele às fontes
milenares não é realizado para mostrar erudição, por atavismo, nem se trata de
uma manifestação do inconsciente coletivo. É sobretudo o artista nele falando
tudo e, como sempre, antes de todos e com uma clareza assustadora.
Sobre a mitologia das suas obras ele mesmo explica:
“Essas referências mitológicas jamais
foram – nem de longe – um sinal de alguém que se preocupa com estudos de
caráter erudito das diferentes mitologias. Prefiro me defrontar com uma
mitologia própria, feita com uma sem cerimônia quase insultuosa, segundo uma
série de mitos que nem ao menos se relacionam entre si”.
Já em 1997 Brennand tocava no tema, afirmando sobre a sua escultura Jó
mais abaixo:
“Confesso que ao realizar essa escultura
não pensava em Jó. Não foi meu modelo. Meu modelo é sempre o sofrimento e a
dor”.
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Mas, então, e face tudo o que já foi exposto sobre o artista, por quais
cargas d’água corre a lenda que as esculturas de Francisco Brennand são
“regionais e eróticas”?
Em parte porque as agências de turismo “vendem” a Oficina de Francisco
Brennand pelo prisma do suposto “erotismo e regionalismo” de seu conjunto de
estátuas.
Diga-se de passagem que nada tenho contra a arte erótica. Muito ao
contrário. Apenas considero ser importante a interpretação precisa e franca da
sexualidade na arte.
Parques de esculturas, ou mesmo exposições delas, podem ser pura
diversão, locais onde realmente nos divertimos. São assim as mostras das
esculturas ora gigantescas ora diminutas de Ron Mueck, que fez centenas de
milhares de brasileiros se sentirem como Gulliver deve ter se sentido, nas suas
viagens.
Se você gosta de arte, já ouviu falar dos Templos de Khajuraho, na
Índia, que apesar de nos mostrarem milhares de esculturas de figuras humanas
plantando, colhendo, estudando, dançando, guerreando, conversando, banhando-se,
jogando, brincando com os filhos, cozinhando, penteando os cabelos, vivendo e
morrendo em tempos medievais na Índia, tornaram-se famosos como uma versão
esculpida do Kama Sutra, por ter entre tantas outras, sim, belíssimas
esculturas eróticas, que mostram casais apaixonados engajados na prática de um
amor para lá de criativo. Nos templos o sexo está representado pelo que é: parte
da narrativa da vida.
No entanto, para o ocidente, a arte de Khajuraho tornou-se sinônimo de
erotismo na veia e ponto parágrafo e ninguém sabe que os indianos medievais
acreditavam que ter esculturas ou alankaras eróticas e cenas de amor decorando
os seus templos era algo protetor e auspicioso ou que esse tipo de arte também
tinha uma função didática, pelo menos para os meninos de então, que durante o
“brahmacharya” - o tempo de aprendizado que cumpriam recolhidos nos templos até
tornarem-se homens adultos - aprendiam com aquelas imagens as artes do amor.
Arte erótica é um produto vendável. Mas, a bem da verdade, talvez esse
tópico da sensualidade também seja turbinado por razões externas à obra do
artista. Em torno de Francisco Brennand foi construída uma mitologia de exímio
caçador, de “pegador” de grande perícia, como diria a juventude. E a lenda teve
a anuência e até a cumplicidade do seu protagonista.
Em entrevistas, ele não nega que foi um homem de muitas mulheres, que
teve uma infinidade de casos “fugazes” com suas modelos. Noves fora as quatro
esposas com quem teve cinco filhos. Além disso, alguns trechos íntimos do seu
diário o revelaram também um ótimo e requintado contista erótico. Tudo isso
alimenta a mitologia.
Conforme ele escreveu em Florença em 1952...
“A deusa tinha cabelos pretos, muito
crespos e abundantes que lhe caíam abaixo dos ombros e seios, como pesados
cachos de uvas. Na sua idealizadora juventude, ainda não aprendera de fato as
ásperas lições de desgosto, mas não seria eu, ainda, quem iria ensiná-las”.
Longe de nós bancar analistas amadores, mas com certeza há nessa arte
estupenda uma pitada de catarse, uma pimenta de sadismo, uma válvula de escape,
uma expiação de culpas, um tipo de realização doméstica, na concretude do barro
ou das telas, de fantasias irrealizáveis.
Mas a leitura do inconsciente do homem não explica nem esgota a obra do
artista. Dizem que sobre si mesmo Brennand já teria dito ser um “ Marquês de
Sade” que dera certo. Quem tem uma visão ampla do conjunto da obra - mais de
duas mil esculturas! - expostas aos pedaços, concorda com ele: aquilo é uma
prisão onde ele inventa uma belíssima carnificina!
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Por óbvio que a gênese da grandiosa obra de Brennand acontece nas
ignotas correntes subterrâneas do seu inconsciente. Metáforas à parte, o que
existe mesmo naquela Várzea à beira do rio Capiberibe, é um artista
terrivelmente consciente e sensível às suas próprias dores e às do mundo.
Diante das criações escultóricas de Brennand, quem não foi ainda
lobotomizado pelo privilégio do politicamente correto e pelas maravilhas da
contemporaneidade - outra idiotia fabulosa - compreende que o tempo da arte é
um tempo onipresente e que embora nunca tenha existido homem que não tenha sido
condenado a viver nesse átimo que é o agora, o presente não é o único tempo que
existe e esse futuro que nunca chega pode, é óbvio, vir a ser uma desgraça
estética.
Muito mais lógica, em termos de estética pelo menos, seria o tempo
cíclico onde se olha para trás antes de inventar o novo, nesse movimento
circular de aprendizagem que sempre caracterizou a expressão artística.
Através da obra de Francisco Brennand tudo flui: ideias e sensações,
pensamentos e desejos, conclusões e fantasias e a pulsão criadora, cujo fogo
nunca se sabe exatamente de onde vem.
Ele cria pelas mesmas razões que o fazem todos os artistas: um ato de
rebeldia a seu destino mortal. Ele reinventa a vida porque a criação faz parte
dos seus sistemas inconscientes de equilíbrio. Sem ela, perderia o rumo e o prumo.
Infelizmente, a excelência da obra de ceramista de Brennand - inclusive
a admirável cerâmica utilitária e decorativa na qual o artista deixa a sua
marca inconfundível - teve esse efeito paradoxal de encobrir, para o grande
público, o extraordinário desenhista e pintor que é Brennand.
É que o papel e a tela não podem competir com a ostensiva presença
física e social das obras em cerâmica no urbanismo recifense. O infinito jogo
de símbolos dessas obras em cerâmica, a sua intrínseca virtude de poder conviver
com o externo, a natureza, os elementos, as intempéries, tudo contribuiu para
esse mais que injusto conhecimento menor do pintor.
Porque, embora quase completamente desconhecidos, os desenhos de
Brennand, estão entre as mais notáveis realizações da sua múltipla expressão -
que inclui ainda a tapeçaria. Mas disso falaremos em outra conversa…
1) O belo texto do Pimentel me fez lembrar que, adolescente, morando lá no meu querido Gama, DF, toda terça-feira eu ia na banca de jornal, comprar um fascículo da "Enciclopédia Conhecer", que abordava muita coisa de Arte.
ResponderExcluir2)Hoje, vou curtindo os textos do Moacir. Parabéns vizinho de mundo !
3)Continuo colecionando saberes.
Concordo com você, Moacir. O sexo é uma das melhores coisas da vida mas não é tudo. Estão sexualizando qualquer coisa para que vire produto de consumo. As estátuas de Brennand não são sugestivas mas acho os quadros dele bastante eróticos. Até que você me prove o contrário kkk. Obrigada!
ResponderExcluir
ResponderExcluirMoacir,
A sua admiração por Brennand continua nos brindando com artigos encantadores. Achei o de hoje belíssimo. É comovente a sua descrição dos males do mundo e da arte dele. Mas prefiro guardar no coração as palavras do Eclesiastes fotografadas por você. Precisamos ter fé e continuar acreditando que depois da escuridão da noite sempre aparecerá o sol da manhã.
Um abraço para você
Pimentel,
ResponderExcluirInfelizmente Brennand é pouco conhecido mesmo como escultor. Vou gostar muito de ler sobre suas pinturas.
Pimentel,
ResponderExcluirTexto importante, grandioso.
Somado ao anterior sobre o mesmo tema ou artista, trata-se de um artigo primoroso.
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Vizinho Antônio,
ResponderExcluirJá é longa essa estrada pela qual viemos aprendendo a cada fascículo, a cada post, a cada capítulo em verso e prosa. Vambora que ainda temos muito chão pela frente e o "camino se hace al andar".
Mônica,
Na mosca! Não me alongo ou aprofundo porque conversaremos sobre o traço e as tintas e telas do artista mais na frente
Flávia,
Você me fez lembrar de uma das minhas canções prediletas, da lavra do grande Jobim, que diz :
"E a luz da manhã? O dia queimou
Cadê o dia? Envelheceu
E a tarde caiu e o sol morreu
E de repente escureceu
E a lua, então, brilhou
Depois sumiu no breu
E ficou tão frio que amanheceu"
Sampaio,
Espero que o próximo post seja do seu agrado. Diferentemente das esculturas, que podemos fotografar, as pinturas de Brennand estão à venda e, portanto, clicá-las é terminantemente proibido. No entanto passei um longo tempo na Accademia , folheei velhos catálogos de exposições pretéritas e conversei com funcionários da galeria.
Bendl,
Na verdade o próximo e último post sobre o velho Oleiro - ufa! - será o oitavo (rsrs) Tenho escrito sobre ele desde agosto passado quanto visitei a Oficina e não pude fotografar algumas das mais renomadas de suas esculturas porque elas se encontravam em uma exposição em Porto Alegre.
Agradeço a todos pelas leitura e palavras de incentivo
Abraço geral
Olá Moacir,
ResponderExcluirAtrasadíssima. Como disse para o seu vizinho, estava envolvida em programas de meninas, com minha irmã do Rio e a daqui. Abandonei o marido à sua sorte, e dormi com as meninas(nem tão meninas assim, mas bem mais novas do que eu), café da manhã ao som de bolhas espumantes, cowboy ao entardecer e vinho no jantar, quase na virada do dia. Uma esbórnia(rsrs)!
Esses textos seus sobre Brennand, a sua escrita e a obra dele, me deixam com vontade de me recolher à minha pequenez e nunca mais mostrar um trabalho meu. E mesmo assim , contrariando todo o meu sentimento, fico com vontade de mostrar um trabalho erótico, feito com barra de ferro, chumbada e prego de dormente. Quem sabe um dia? Ou só que não?
Esperando as pinturas do Mestre.
Bom sábado chuvoso (delícia! Ainda chove por aí?).
Até mais.
Caríssima Donana,
ExcluirEu estava mesmo sentindo falta de seus comentários mas sei bem como são felizes e falantes essas reuniões da "irmandade".
Estamos chegando ao fim da Franquia do Oleiro -ufa! - embora eu não tenha rascunhado tudo (rsrs) e o velho Francisco continue aprontando.
Além de ter começado a escrever um novo diário, o danado expôs vinte telas em uma exposição de nome As Névoas de Caspar na qual parece ter abandonado a sensualidade mítica para homenagear o pintor romântico Caspar David Freidrich.
Não sei se a senhora está ligando o nome à pessoa mas dia destes o Senhor Editor ilustrou um de meus posts - As Emoções da Razão - com aquela que é talvez a mais conhecida obra do artista: um andarilho de costas sobre altas rochas comtemplando um mar de névoa dentro e fora dele.
Assim pintou Freidrich
https://engl359.files.wordpress.com/2010/01/der-wanderer-ueber-dem-nebelmeer4.jpg
E assim o revisitou Brennand
http://imgsapp.diariodepernambuco.com.br/app/noticia_127983242361/2016/12/02/678097/20161202124007295065o.jpg
Como não vi as obras não as descreverei, é claro, no próximo post e portanto não se trata de spoiler.
Continuo teclando...
Quanto à sua arte eu gostaria imenso que a senhora continuasse conversando sobre o tema depois daquele Objeto de Desejo que guardava maravilhas. Não sei quem disse por aqui que “o erotismo é civilização” mas assino embaixo porque sempre que houve arte e cultura o erotismo disse : Presente!! Nas cavernas europeias e australianas, nos hieróglifos egípcios, na cerâmica grega, nos pórticos e afrescos romanos, nos blocos de madeira das impressões japonesas e chinesas, nas iluminuras da Idade das Trevas e do Islão, nas maravilhas de barro pre-colombianas e nos ismos todos e por aí vamos.
ResponderExcluirA arte erótica sempre nos desafiou emocional e intelectualmente, e - talvez o mais importante! - sempre permitiu as livres interpretação e a "tradução". Sim porque, embora seduza e defina o tom, ela nos permite estar no comando e levar a história na direção que escolhermos(rsrs)
Diante de tantas artes realizadas ao longo de milhares de anos antes de nós, é difícil entender por quais cargas d'água nós - os humanos sabichões do terceiro milênio! - ainda permitimos que o puritanismo nos emburreça e nos deixe pouco à vontade ao conversar sobre o bendito erotismo humano.
Às pretinhas artísticas!