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19/05/2017

Os Temas do Oleiro

fotografia Moacir Pimentel


Moacir Pimentel
Tomo emprestado dos nordestinos o adjetivo que conferem a tudo que não entendem lá muito bem para dizer que Brennand é…
“Problemático”.
Mas o grande problema talvez não seja não saber o que somos, mas justamente saber que não sabemos. Como varrer da consciência de um artista nascido em 1927 e comprometido com o seu ofício de retratar e comentar o mundo as suas memórias de “obras” do século passado como a Segunda Grande Guerra, Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki, a Europa arrasada, a Ditadura, aquela menina correndo nua com o corpo em chamas, os bebês esqueléticos dos campos de refugiados em África e, na grande virada, aviões esfaqueando prédios, as barbáries cometidas pelos povos do livro, o terror, a corrupção desvairada, as reses morrendo de sede depois dos últimos mandacarus e os nossos adolescentes catando a vida nos lixões das grandes cidades ou matando-se no tráfico e nas cracolândias?
Esses são os temas que estão colocados para os artistas nesses tempos escuros. Então o sentimento de existir e a consciência que nutrem a criatividade de um narrador de “estórias” não podem gerar muito mais do que o que vemos: sofrimento, vulnerabilidade, dilaceramento, fragmentação e a certeza de que estamos fazendo tudo certo, para que tudo dê errado.
O homem e o artista Brennand sabem disso muito bem e o concretizam numa obra que não é cor-de-rosa com bolinhas azuis. Já em 1967 sobre sua então Fase- Flora ele afirmava:
“Procuro animar os vegetais a ponto de torná-los reveladores do drama humano”. 
fotografia Moacir Pimentel


Então sempre nos pareceu que Brennand molda e pinta o drama humano, e que é o pessimismo existencial que o linka à ancestralidade, à antiguidade ocidental, às grandes tragédias da humanidade. Esse retorno dele às fontes milenares não é realizado para mostrar erudição, por atavismo, nem se trata de uma manifestação do inconsciente coletivo. É sobretudo o artista nele falando tudo e, como sempre, antes de todos e com uma clareza assustadora.
Sobre a mitologia das suas obras ele mesmo explica:
“Essas referências mitológicas jamais foram – nem de longe – um sinal de alguém que se preocupa com estudos de caráter erudito das diferentes mitologias. Prefiro me defrontar com uma mitologia própria, feita com uma sem cerimônia quase insultuosa, segundo uma série de mitos que nem ao menos se relacionam entre si”.
Já em 1997 Brennand tocava no tema, afirmando sobre a sua escultura Jó mais abaixo:
“Confesso que ao realizar essa escultura não pensava em Jó. Não foi meu modelo. Meu modelo é sempre o sofrimento e a dor”.
fotografia Moacir Pimentel

Mas, então, e face tudo o que já foi exposto sobre o artista, por quais cargas d’água corre a lenda que as esculturas de Francisco Brennand são “regionais e eróticas”?
Em parte porque as agências de turismo “vendem” a Oficina de Francisco Brennand pelo prisma do suposto “erotismo e regionalismo” de seu conjunto de estátuas.
Diga-se de passagem que nada tenho contra a arte erótica. Muito ao contrário. Apenas considero ser importante a interpretação precisa e franca da sexualidade na arte.
Parques de esculturas, ou mesmo exposições delas, podem ser pura diversão, locais onde realmente nos divertimos. São assim as mostras das esculturas ora gigantescas ora diminutas de Ron Mueck, que fez centenas de milhares de brasileiros se sentirem como Gulliver deve ter se sentido, nas suas viagens.
Se você gosta de arte, já ouviu falar dos Templos de Khajuraho, na Índia, que apesar de nos mostrarem milhares de esculturas de figuras humanas plantando, colhendo, estudando, dançando, guerreando, conversando, banhando-se, jogando, brincando com os filhos, cozinhando, penteando os cabelos, vivendo e morrendo em tempos medievais na Índia, tornaram-se famosos como uma versão esculpida do Kama Sutra, por ter entre tantas outras, sim, belíssimas esculturas eróticas, que mostram casais apaixonados engajados na prática de um amor para lá de criativo. Nos templos o sexo está representado pelo que é: parte da narrativa da vida. 
fotografia - Nuria (wikimedia commons)
No entanto, para o ocidente, a arte de Khajuraho tornou-se sinônimo de erotismo na veia e ponto parágrafo e ninguém sabe que os indianos medievais acreditavam que ter esculturas ou alankaras eróticas e cenas de amor decorando os seus templos era algo protetor e auspicioso ou que esse tipo de arte também tinha uma função didática, pelo menos para os meninos de então, que durante o “brahmacharya” - o tempo de aprendizado que cumpriam recolhidos nos templos até tornarem-se homens adultos - aprendiam com aquelas imagens as artes do amor.
Arte erótica é um produto vendável. Mas, a bem da verdade, talvez esse tópico da sensualidade também seja turbinado por razões externas à obra do artista. Em torno de Francisco Brennand foi construída uma mitologia de exímio caçador, de “pegador” de grande perícia, como diria a juventude. E a lenda teve a anuência e até a cumplicidade do seu protagonista.
Em entrevistas, ele não nega que foi um homem de muitas mulheres, que teve uma infinidade de casos “fugazes” com suas modelos. Noves fora as quatro esposas com quem teve cinco filhos. Além disso, alguns trechos íntimos do seu diário o revelaram também um ótimo e requintado contista erótico. Tudo isso alimenta a mitologia.
Conforme ele escreveu em Florença em 1952...
“A deusa tinha cabelos pretos, muito crespos e abundantes que lhe caíam abaixo dos ombros e seios, como pesados cachos de uvas. Na sua idealizadora juventude, ainda não aprendera de fato as ásperas lições de desgosto, mas não seria eu, ainda, quem iria ensiná-las”.
Longe de nós bancar analistas amadores, mas com certeza há nessa arte estupenda uma pitada de catarse, uma pimenta de sadismo, uma válvula de escape, uma expiação de culpas, um tipo de realização doméstica, na concretude do barro ou das telas, de fantasias irrealizáveis.
Mas a leitura do inconsciente do homem não explica nem esgota a obra do artista. Dizem que sobre si mesmo Brennand já teria dito ser um “ Marquês de Sade” que dera certo. Quem tem uma visão ampla do conjunto da obra - mais de duas mil esculturas! - expostas aos pedaços, concorda com ele: aquilo é uma prisão onde ele inventa uma belíssima carnificina!
fotografia Moacir Pimentel

Por óbvio que a gênese da grandiosa obra de Brennand acontece nas ignotas correntes subterrâneas do seu inconsciente. Metáforas à parte, o que existe mesmo naquela Várzea à beira do rio Capiberibe, é um artista terrivelmente consciente e sensível às suas próprias dores e às do mundo.
Diante das criações escultóricas de Brennand, quem não foi ainda lobotomizado pelo privilégio do politicamente correto e pelas maravilhas da contemporaneidade - outra idiotia fabulosa - compreende que o tempo da arte é um tempo onipresente e que embora nunca tenha existido homem que não tenha sido condenado a viver nesse átimo que é o agora, o presente não é o único tempo que existe e esse futuro que nunca chega pode, é óbvio, vir a ser uma desgraça estética.
Muito mais lógica, em termos de estética pelo menos, seria o tempo cíclico onde se olha para trás antes de inventar o novo, nesse movimento circular de aprendizagem que sempre caracterizou a expressão artística. 
fotografia Moacir Pimentel
Através da obra de Francisco Brennand tudo flui: ideias e sensações, pensamentos e desejos, conclusões e fantasias e a pulsão criadora, cujo fogo nunca se sabe exatamente de onde vem.
Ele cria pelas mesmas razões que o fazem todos os artistas: um ato de rebeldia a seu destino mortal. Ele reinventa a vida porque a criação faz parte dos seus sistemas inconscientes de equilíbrio. Sem ela, perderia o rumo e o prumo.
Infelizmente, a excelência da obra de ceramista de Brennand - inclusive a admirável cerâmica utilitária e decorativa na qual o artista deixa a sua marca inconfundível - teve esse efeito paradoxal de encobrir, para o grande público, o extraordinário desenhista e pintor que é Brennand.
É que o papel e a tela não podem competir com a ostensiva presença física e social das obras em cerâmica no urbanismo recifense. O infinito jogo de símbolos dessas obras em cerâmica, a sua intrínseca virtude de poder conviver com o externo, a natureza, os elementos, as intempéries, tudo contribuiu para esse mais que injusto conhecimento menor do pintor.
Porque, embora quase completamente desconhecidos, os desenhos de Brennand, estão entre as mais notáveis realizações da sua múltipla expressão - que inclui ainda a tapeçaria. Mas disso falaremos em outra conversa…

9 comentários:

  1. 1) O belo texto do Pimentel me fez lembrar que, adolescente, morando lá no meu querido Gama, DF, toda terça-feira eu ia na banca de jornal, comprar um fascículo da "Enciclopédia Conhecer", que abordava muita coisa de Arte.

    2)Hoje, vou curtindo os textos do Moacir. Parabéns vizinho de mundo !

    3)Continuo colecionando saberes.

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  2. Mônica Silva19/05/2017, 10:54

    Concordo com você, Moacir. O sexo é uma das melhores coisas da vida mas não é tudo. Estão sexualizando qualquer coisa para que vire produto de consumo. As estátuas de Brennand não são sugestivas mas acho os quadros dele bastante eróticos. Até que você me prove o contrário kkk. Obrigada!

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  3. Flávia de Barros19/05/2017, 11:22


    Moacir,

    A sua admiração por Brennand continua nos brindando com artigos encantadores. Achei o de hoje belíssimo. É comovente a sua descrição dos males do mundo e da arte dele. Mas prefiro guardar no coração as palavras do Eclesiastes fotografadas por você. Precisamos ter fé e continuar acreditando que depois da escuridão da noite sempre aparecerá o sol da manhã.


    Um abraço para você

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  4. Alexandre Sampaio20/05/2017, 00:58

    Pimentel,
    Infelizmente Brennand é pouco conhecido mesmo como escultor. Vou gostar muito de ler sobre suas pinturas.

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  5. Francisco Bendl20/05/2017, 08:19

    Pimentel,

    Texto importante, grandioso.

    Somado ao anterior sobre o mesmo tema ou artista, trata-se de um artigo primoroso.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz.

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  6. Moacir Pimentel20/05/2017, 13:23

    Vizinho Antônio,

    Já é longa essa estrada pela qual viemos aprendendo a cada fascículo, a cada post, a cada capítulo em verso e prosa. Vambora que ainda temos muito chão pela frente e o "camino se hace al andar".

    Mônica,

    Na mosca! Não me alongo ou aprofundo porque conversaremos sobre o traço e as tintas e telas do artista mais na frente
    Flávia,
    Você me fez lembrar de uma das minhas canções prediletas, da lavra do grande Jobim, que diz :
    "E a luz da manhã? O dia queimou
    Cadê o dia? Envelheceu
    E a tarde caiu e o sol morreu
    E de repente escureceu
    E a lua, então, brilhou
    Depois sumiu no breu
    E ficou tão frio que amanheceu"
    Sampaio,
    Espero que o próximo post seja do seu agrado. Diferentemente das esculturas, que podemos fotografar, as pinturas de Brennand estão à venda e, portanto, clicá-las é terminantemente proibido. No entanto passei um longo tempo na Accademia , folheei velhos catálogos de exposições pretéritas e conversei com funcionários da galeria.
    Bendl,
    Na verdade o próximo e último post sobre o velho Oleiro - ufa! - será o oitavo (rsrs) Tenho escrito sobre ele desde agosto passado quanto visitei a Oficina e não pude fotografar algumas das mais renomadas de suas esculturas porque elas se encontravam em uma exposição em Porto Alegre.
    Agradeço a todos pelas leitura e palavras de incentivo
    Abraço geral

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  7. Olá Moacir,
    Atrasadíssima. Como disse para o seu vizinho, estava envolvida em programas de meninas, com minha irmã do Rio e a daqui. Abandonei o marido à sua sorte, e dormi com as meninas(nem tão meninas assim, mas bem mais novas do que eu), café da manhã ao som de bolhas espumantes, cowboy ao entardecer e vinho no jantar, quase na virada do dia. Uma esbórnia(rsrs)!
    Esses textos seus sobre Brennand, a sua escrita e a obra dele, me deixam com vontade de me recolher à minha pequenez e nunca mais mostrar um trabalho meu. E mesmo assim , contrariando todo o meu sentimento, fico com vontade de mostrar um trabalho erótico, feito com barra de ferro, chumbada e prego de dormente. Quem sabe um dia? Ou só que não?
    Esperando as pinturas do Mestre.
    Bom sábado chuvoso (delícia! Ainda chove por aí?).
    Até mais.

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    1. Moacir Pimentel21/05/2017, 18:00

      Caríssima Donana,
      Eu estava mesmo sentindo falta de seus comentários mas sei bem como são felizes e falantes essas reuniões da "irmandade".
      Estamos chegando ao fim da Franquia do Oleiro -ufa! - embora eu não tenha rascunhado tudo (rsrs) e o velho Francisco continue aprontando.
      Além de ter começado a escrever um novo diário, o danado expôs vinte telas em uma exposição de nome As Névoas de Caspar na qual parece ter abandonado a sensualidade mítica para homenagear o pintor romântico Caspar David Freidrich.
      Não sei se a senhora está ligando o nome à pessoa mas dia destes o Senhor Editor ilustrou um de meus posts - As Emoções da Razão - com aquela que é talvez a mais conhecida obra do artista: um andarilho de costas sobre altas rochas comtemplando um mar de névoa dentro e fora dele.

      Assim pintou Freidrich


      https://engl359.files.wordpress.com/2010/01/der-wanderer-ueber-dem-nebelmeer4.jpg


      E assim o revisitou Brennand


      http://imgsapp.diariodepernambuco.com.br/app/noticia_127983242361/2016/12/02/678097/20161202124007295065o.jpg

      Como não vi as obras não as descreverei, é claro, no próximo post e portanto não se trata de spoiler.
      Continuo teclando...

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  8. Moacir Pimentel21/05/2017, 18:31

    Quanto à sua arte eu gostaria imenso que a senhora continuasse conversando sobre o tema depois daquele Objeto de Desejo que guardava maravilhas. Não sei quem disse por aqui que “o erotismo é civilização” mas assino embaixo porque sempre que houve arte e cultura o erotismo disse : Presente!! Nas cavernas europeias e australianas, nos hieróglifos egípcios, na cerâmica grega, nos pórticos e afrescos romanos, nos blocos de madeira das impressões japonesas e chinesas, nas iluminuras da Idade das Trevas e do Islão, nas maravilhas de barro pre-colombianas e nos ismos todos e por aí vamos.
    A arte erótica sempre nos desafiou emocional e intelectualmente, e - talvez o mais importante! - sempre permitiu as livres interpretação e a "tradução". Sim porque, embora seduza e defina o tom, ela nos permite estar no comando e levar a história na direção que escolhermos(rsrs)
    Diante de tantas artes realizadas ao longo de milhares de anos antes de nós, é difícil entender por quais cargas d'água nós - os humanos sabichões do terceiro milênio! - ainda permitimos que o puritanismo nos emburreça e nos deixe pouco à vontade ao conversar sobre o bendito erotismo humano.
    Às pretinhas artísticas!

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