Gottfried Schalken - Mulher com Vela |
Heraldo Palmeira
A minha cidadezinha do interior era igual a todas
naqueles anos 60. A “luz”, como chamávamos energia elétrica, saía das entranhas
de um velho gerador fumacento, barulhento, lento. Tempo em que ninguém sabia da
inimizade entre óleo diesel e meio ambiente. Tempo em que postes serviam
somente para sustentar fios, abrigar passarinhos e inutilizar pipas de garotos
sem perícia.
O bicho rodava o dia inteiro, engasgando aqui e acolá.
Na boca da noite, nós, meninos acostumados a tirar do derredor encantos para
distrair a mente, ficávamos enlevados com o tremeluzir da luz acesa. Às nove
havia o rito de passagem da luz elétrica para a luz do fogo; hora do velho
motor descansar.
Era o ápice da nossa poesia, a energia indo embora em
espasmos, o silêncio da máquina desligada se espalhando pelas ruas e becos, a
luz bruxuleante das velas e das lamparinas dominando devagarinho os ambientes
das casas simples.
Os nossos medos e lendas da escuridão das noites do
sertão nos empurrando para a cama. O cheiro da parafina e do querosene marcando
nossas narinas para o resto da vida, indicando o caminho da volta que nunca se
perde. Os lençóis puxados até a cabeça, pouco importando o calor às vezes
infernal, eram muralhas de pano contra a possível invasão de fantasmas
noturnos, ardilosos, aterrorizantes, poderosíssimos segundo contavam os mais
velhos.
Fico me perguntando por que a luz de hoje não tem mais
a beleza do tremeluzir; simplesmente some, como por encanto. Sem qualquer
poesia. Atraindo iras e reclamos. Parando fábricas e escritórios, trens,
elevadores e metrôs. Queimando equipamentos. Apagando semáforos e instalando o
caos nas ruas. Atiçando malfeitores sobre a população desprotegida.
Ela simplesmente some. Talvez para ridicularizar
postes de um sistema elétrico moderno e desconfiável. Afinal, desde quando
postes servem para algo além de sustentar fios, abrigar passarinhos e
inutilizar pipas de garotos sem perícia?
Os postes sem “luz” de hoje em dia, e seus complexos
sistemas digitais, não sabem declamar a poesia que havia na hora de faltar
energia naqueles tempos, provocar os espasmos delicados da luz apagando,
acendendo, apagando, acendendo... até os gritos de euforia quando ela voltava.
Apagaram a poesia que havia na escuridão, inventaram o apagão. Direto. Brusco.
E ainda culpam raios e trovões, raios!
Chamam os velhos motores de obsoletos, poluentes. E
mesmo cientes da inimizade visceral da poluição com o meio ambiente, andam de
mãos dadas com termelétricas. Que custam caro. Que são agressivas. Que queimam
carvão, que é madeira queimada. No melhor estilo natureza morta. Quanta
modernidade! Quanta diferença dos velhos motores fumacentos, barulhentos,
lentos da minha infância!
A minha cidadezinha do interior continua igual a todas
as outras. A “luz” vem não se sabe de onde e nem de que jeito. Apenas vem. Sem
fumaça, sem som. Velocíssima! Lá, todos sabem da inimizade entre óleo diesel e
meio ambiente, mas ninguém liga ou desliga.
Os postes ainda sustentam fios e abrigam passarinhos.
Não inutilizam mais pipas porque os garotos não sabem o que é perícia.
Raridade, um par de tênis pendurado pelo cadarço, jogado há décadas por algum
grisalho de hoje.
Não existe mais o tremeluzir da luz acesa nem os
versos dourados das velas e lamparinas para distrair a mente no jogo com o
vento e as sombras. A cidade fica acesa a noite inteira, sem espasmos para
chamar o descanso da escuridão.
Morreram os medos, as lendas e os fantasmas noturnos.
Morreram os luares e as noites do sertão. Morreram os mais velhos ardilosos e
levaram com eles suas histórias de fazer medo. Morremos aqueles nós,
sonhadores, que ficávamos apurando a vista para contar estrelas, pouco ligando
para as verrugas que cresceriam nos dedos que apontavam, matemáticos.
Os eletrizados de hoje vestiram o hábito da liturgia
eletrônica. Acreditam que fiat lux é milagre, mas perdem a conexão quando a luz
apaga sem dedo no interruptor. Ignoram a diferença entre canonização e
carbonização. Ignoram os curtos-circuitos cada vez mais intermitentes. Não
sabem viver sem sinal e mesmo assim ignoram todos os sinais.
Não compreendem que há séculos se declama poesia no
escuro e que a vida vive tremeluzindo como as estrelas das noites do sertão. E
vez por outra ainda aparece uma lua. Que, ainda por cima, traz São Jorge
dourado. Aí, é bonito demais! Virgem Maria, cheia de graça, assim eu vergo! Mas
essa já é outra história.
(*) A
Moacir Pimentel, o Caríssimo, mestre em operar velhos motores para que não
parem de gerar energia – a luz é outra história, que segue tremeluzindo como a
vida.
Beleza de texto, Heraldo! Vai acordar saudades em muita gente. Lembranças de sapatos pendurados nos fios na tentativa de resgatar as pipas que, como os postes, hoje mudaram de cara, e dos brinquedos de criança da minha infância passaram a aves assassinas com seus fios de cerol matando motociclistas. Mesmo na minha cidade grande eu me lembro de um tempo em que, no começo da noite, a voltagem caía, as luzes piscavam e a gente estendia a mão para as velas e os fósforos que ficavam sempre prontos em algum canto da sala. E que, quando a luz caía a gente ficava simplesmente conversando aos "versos dourados das velas" e aproveitava para ver as estrelas que a luz da cidade escondia...
ResponderExcluirMeu caro Mano,
ExcluirObrigado por nos oferecer suas lembranças.
Depois que a gente se depara com um país doente, estressado, mentiroso, desonesto começa a se dar conta de que aqueles nossos tempos antigos podem estar fazendo falta. Eram melhores? Não sei, pois há muita coisa espetacular hoje que não tínhamos ontem. Mas eles fazem falta porque ensinavam também uma tal de ternura, que saiu completamente de moda com todo seu significado enorme.
Por isso, sentimos falta das pipas apenas prontas para levar ao céu a nossa melhor fantasia. Pelo menos, pudemos viver tudo aquilo para contar. Abração.
1)Texto belíssimo Heraldo !
ResponderExcluir2)Claro que vou recordar da minha querida cidade satélite do Gama, DF, nessa época, íamos a pé para o centro espírita kardecista, à noite, ruas escuras, muitas famílias usavam lampiões no caminho.Vem daí a minha ligação com as lanternas que até hoje tem uma na minha cabeceira, qdo falta luz.
3)Me perdoem eu falar tanto no Gama,DF. Gosto demais da imagem que ficou lá atrás; e a bela crônica do Palmeira me fez relembrar.
4)Gratíssimo e os melhores votos de boa semana !
Obrigado, Antonio.
ExcluirSim, todos nós tivemos nossa cidadezinha do interior na vida. Imagino a beleza dessa cena que você relata, tanta gente guiada pela força e pela luz do fogo em busca da luz espiritual maior. Imagino, o que você chama de lanterna é para nós nordestinos o farol, com o reservatório de querosene na base, um pavio regulável dentro de uma "manga" de vidro e uma alça superior para dependurar. Até hoje, gosto de manter uma pequena fonte de luz perto da cabeceira, para acender em qualquer necessidade.
Fale do seu Gama - que conheço - o tanto que quiser, pois os motivos são mais do que legítimos e merecidos. Abraço.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirÉ com imensa satisfação que leio Tremeluzindo repaginado nas Conversas e o faço que o mesmo encantamento da primeira vez. Como tecla o Wilson, é claro que nos bate uma sensação de déjà vu. O seu texto tem uma sonoridade que me é familiar , como o som do sino da igrejinha "do tempo de eu minino sem perícia" que quando a luz faltava escutava histórias.
Graças às magia e poesia de uma caneta bic azul, a melancólica recordação dos "soluços do bicho", do cheiro de "querosene e parafina", das luzes trêmulas dos lampiões, das peraltices, dos sapatos e das pipas e dos medos do escuro, tudo isso, ganhou um sentido maior.
Com certeza que no seu riscado me agrada a viva inteligência e a elegância e originalidade da crítica política e social. Mas não é só isso.
Eu aprecio Tremeluzindo porque, como canta o grande Milton , "há um passado no seu presente". Se o texto dói de tão bonito é porque alguma ternura restou e ainda somos capazes de tremeluzir.
Acima de tudo o que o texto me diz é que sempre haverá um "minino" e uma pipa e a fantasia e uma luz qualquer na escuridão das nossas "léguas tiranas". E que é por isso que o Mestre vai sempre continuar escrevendo mediunizado mesmo que seja pela luz tremeluzente dos tocos de exaustas velas.
Obrigado e abração
Caríssimo,
ExcluirO que responder diante da sua escrita? Não sei, honestamente! Vou tatear com tinta, papel e teclas e ver que rabisco virá.
Este texto faz parte da minha vida, assim como os bailes da vida seguirão tocando Milton para sempre. E você deu esse contorno a Tremeluzindo desde o primeiro momento.
Repaginar para o Conversas foi um prazer com cheirinho de novo, acredite. Cada palavra nova no de antes foi como erguer parede e tacar reboco. Construção do que já havia, claridade de casa nova. Arrumação.
Não há o que agradecer. Eu é que me curvo a "Se o texto dói de tão bonito é porque alguma ternura restou e ainda somos capazes de tremeluzir". Tremeluza, pois e sempre, o que há de bom. Como um luar e as estrelas tremeluzindo. Abração.
Lindo,lindo, Heraldo! "Dói de tão bonito"!
ResponderExcluirPor isso quero dizer que,mesmo hoje, nos raros momentos de apagão sem o tremeluzir da luz, o assomo da infância é tão forte, quase físico, que vejo "versos dourados no escuro e a vida tremeluzindo entre estrelas".
E às vezes, num movimento aleatório e irresponsável, me pego vendo "postes só de fios e amparo de passarinhos". Mas passa logo...Pena mesmo!
Obrigada por essa lindeza.
Sempre até mais.
Ana,
ExcluirObrigado. Ainda bem que temos a fantasia das letras para reconstruir as memórias do que deveria ter permanecido. Na falta do que faz tanta falta, temos nossos versos dourados, farol no escuro das incertezas, dos medos.
Decidi que os postes do meu mundo servem somente para sustentar fios, abrigar passarinhos e inutilizar pipas de garotos sem perícia. No máximo e além, para sustentar um par de tênis pendurado pelo cadarço, jogado há décadas por algum grisalho de hoje. Até mais.
Caro mano HP,
ResponderExcluirUma viagem ao passado com os cinco sentidos se manifestando a cada linha. Vi as ruas com os postes, ouvi o cantar dos pássaros nos fios, senti o cheiro do "ólio dizo", ao teclar as palavras, toquei as linhas das pipas e lembrei do gosto do leite cru de antigamente!!!!
Grande abraço,
Wagner Monteiro
WM,
ExcluirObrigado pela leitura. Essas lembranças de infância são realmente muito fortes, remexem com a vida, nos remetem para um lado bom. Abração.
Heraldo, seu texto remeteu-me à infância/adolescência, quando passava férias em Touros e a luz elétrica provinha de um velho, barulhento e fedorento gerador. Havia um ritual, quando às 08:30, "Seu" Lucas, único ser vivo a entender as manhas e manias da "coisa", dava o primeiro sinal, que consistia em baixar a intensidade da luz até quase apagar, e voltar ao normal. Às 08:45, o segundo sinal, e um pouco antes das 09:00, o terceiro e último sinal, que desencadeava a correria para acender as lamparinas, lampiões, candeeiros ou piracas, o que aprouver a cada um. E às 09:00 em ponto, o gerador silenciava e luz a elétrica retirava-se. Quanto aos postes, lembrei-me dos versos de uma música dos Secos & Molhados: "Nos fios tensos da pauta de metal, as andorinhas gritam por falta de uma clave de sol".
ResponderExcluirJair,
ExcluirOu seja, o mesmo cenário em todas as cidadezinhas das nossas infâncias. E a beleza que misturava todos os dias luz e escuridão. e viva os S&M, momento especial da nossa música.
Sim....Heraldo, lembranças dos meus tempos também no lugar da minha Mãe um pouco mais precário com luz de candeeiro, já o do meu pai igual a do seu interior. me emocionei com essas lembranças boas que não voltam mais.
ResponderExcluirJoão,
ExcluirObrigado. Importante é a gente manter a memória viva para resgatar essas imagens e memórias de vez em quando.