fotografia Heraldo Palmeira |
Heraldo Palmeira
Manhã de outono chuvosa, ameaça de greve no metrô, trânsito infernal.
Passei absurdas três horas engarrafado dentro de um carro para percorrer 41
quilômetros! E o motorista conhecia todos os atalhos e “buracos” do trajeto,
pôde fugir do colapso em diversos trechos.
Entrei no prédio da Fiesp como quem chega ao fim do mundo. A
recepcionista, com ar de riso, foi tranquilizadora: “Pode relaxar, está todo
mundo atrasado, São Paulo parou com essa chuvarada”. Subi, sala quase lotada,
me acomodei enquanto o evento não começava. Fomos até o início da tarde. Hora
de almoçar.
A região da Paulista tem seus restaurantes, botecos e lanchonetes
lotados todos os dias. Só assim para dar conta daquele mar de gente. Sempre
prefiro comer mais tarde para ficar livre desse desconforto.
A chuva fina e intermitente foi mais um motivo para me manter no prédio. Como faço costumeiramente, rumei à galeria de arte montada lá em
baixo. O local é um oásis no meio do cimento da pauliceia desvairada.
Desci as escadarias para o subsolo e encontrei uma sala inteira dedicada
a Henri Cartier-Bresson. Cerca de 50 fotografias de cenas cotidianas que registrou na Espanha, Itália, França, México, Bélgica e Cuba. Isso mesmo,
estamos falando de suas primeiras fotos!
Em 1932 ele comprou sua primeira Leica, munida de uma objetiva 50mm – um
conjunto leve, portátil, ideal para captar imagens de rua. A partir dali
construiu a relação lendária com a máquina alemã, joia da fotografia, que
muitos consideravam verdadeira extensão do seu olho.
Cartier-Bresson, ás do preto e branco, é tido como o mais influente
fotógrafo do século 20. Suas imagens eram sempre naturais, sem retoques ou
manipulações. Ganhou fama mundial depois que suas fotos fabulosas ganharam as
páginas das revistas Paris-Match e Life.
Em 1947, juntou-se a outra lenda da fotografia, o húngaro Robert Capa
(pseudônimo de Endre Ernö Friedmann), para fundar em Nova York a Magnum Photos,
umas das mais influentes cooperativas de fotógrafos da história do
fotojornalismo.
Daí em diante, revistas como Life, Vogue e Harper’s Bazaar contrataram
Bresson para rodar o mundo registrando a vida cotidiana. Seu talento descomunal
eternizou imagens banais como retratos definitivos do seu tempo.
(Fotografias de
Cartier-Bresson fotografadas por Heraldo Palmeira)
Depois de me transportar para o tempo daquelas imagens, de tentar
entender como seria viver ali, fui saindo devagar da sala da exposição.
Pensei também na importância da Leica para aquelas fotos. Criada nos
primórdios do século 20 a partir de uma necessidade pessoal, fez nascer uma
empresa que virou mito da indústria fotográfica.
O engenheiro alemão Oskar Barnack trabalhava na indústria óptica.
Apaixonado por fotografia, tinha saúde frágil que o impedia de carregar as
máquinas enormes e pesadas da época. Por isso, começou a pensar em desenvolver
uma câmera portátil e terminou criando um produto inigualável.
Por ser um equipamento muito resistente, a Leica passou a ter uso
militar de alta performance. Passo seguinte, foi adotada pelos maiores
fotojornalistas do século 20 em ambientes de guerras, convulsões urbanas e
terminou associada à fotografia de rua.
Desde 1973 a Leica instalou-se em Vila Nova de Famalicão, na região de
Braga, em Portugal, onde produz câmeras, binóculos e lentes mundialmente
famosos. O nível de especialização chega a tal ponto que todas as pinturas dos
equipamentos são feitas à mão – inclusive a logomarca e aquelas letrinhas
miúdas espalhadas no corpo e nas lentes.
A precisão é algo tão associado à marca que, num filme institucional da
empresa, o repórter pergunta a uma funcionária quanto tempo vai durar aquela
pintura, e ela responde sem titubear, com sorriso pleno:
– A vida toda!
É ali que também é produzida a mítica modelo M, destinada aos puristas da
fotografia. Analógica, de operação mecânica, feita à mão, verdadeira peça de
relojoaria com mais de mil componentes individuais, que opera com filmes. Por
isso, os empregados acreditam mesmo que fabricam joias. É justo!
Mais alguns passos à direita e entrei noutra galeria, onde estavam
expostos figurinos, peças de cenários, objetos e alguns equipamentos de vários
espetáculos da Cia LaMínima. Trupe teatral montada por Fernando Sampaio e o
saudoso Domingos Montagner, dedicada a realizar “um trabalho que faz uma ponte
entre o circo, diversos universos e linguagens”, festejando 20 anos de palcos e
picadeiros.
Nunca assisti a nenhum espetáculo da grife LaMínima, mas ali estava
presente a alma do circo, a poesia dos palhaços. A essência do encantamento que
aquela arte mambembe por excelência causou em várias gerações.
Quem foi capaz de resistir a um “Hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor”
que rasgava os ares das nossas cidades da infância, anunciando que o circo
estava na terra e haveria muita diversão pela frente? Palhaços incontroláveis,
trapezistas voadores, mágicos, feras e seus domadores, mulheres lindas em
roupas sumárias faziam a imaginação flutuar.
Diante do ambiente do circo viramos crianças outra vez. E tantas vezes
quantas sejam necessárias para a gente pensar que é feliz de novo. O teor
abstrato dessa fantasia parece nos mostrar que a alegria é o que realmente há
de concreto na vida.
Saí dali iluminado pelas cores e subi as escadarias rumo à galeria
principal. Deparei com o abstrato da arte moderna. Algo que não entendo, apenas
aprecio limitado ao estreito parâmetro inculto (meu) gosto, não gosto.
A exposição tratava da experiência geométrica latino-americana,
apresentando a similaridade estética entre artistas de diversos países da
região.
fotografias de Heraldo Palmeira |
Atravessei o amplo vão livre pensando a respeito daquela contradição.
De um lado, um oásis capaz de amolecer a aridez urbana com arte e
cultura de altíssimo nível. Quase feliz.
Do outro lado, a manada sempre apressada, acossada por um mar de
automóveis criando uma cena impaciente eterna. Quase infeliz.
Revela-se ali a alma da grande cidade.
Cruel na aridez, na solidão acompanhada de milhões de pessoas da
multidão que anda desacompanhada. Satânica.
Misericordiosa quando oferece no coração de pedra brechas lúdicas para o
encantamento e a fuga. Divina.
A fome me trouxe de volta à realidade. Era preciso caminhar atento para
evitar choques com corpos apressados e seus acessórios – nunca há rostos porque
se perdeu a prática de considerá-los; estamos desolados com prática!
Entrei no restaurante de sempre. Como foi bom ouvir de novo a voz
familiar:
– O senhor por aqui... há quanto tempo!
Havia rostos. Havia a arte de receber. Havia a arte da boa comida. Havia
a arte da prosa e do sossego. Havia a arte simplesmente.
A mesma arte que havia naquelas galerias de há pouco, no meio da via da
metrópole fria cheia de atalhos calorosos. A arte no cimento revelada em cinza,
preto e branco e cores.
1) Belo texto Heraldo, a leitura flui fácil que é uma artística maravilha.
ResponderExcluir2)Passeei pelas galerias e evitei o engarrafamento...
3)Coisas da selva de pedras.
4)Aproveito para reverenciar todas as mães que se fazem presentes neste ótimo blog. As que estão conosco e as que já se foram. Gratidão senhoras mães !
Obrigado, Antonio.
ExcluirBom que tenha conseguido passear livre dos carros e do monte de gente. As selvas de pedra são assim.
E que a gente continue reverenciando as mães todos os dias, é o mínimo! Abraço,
Cartier Bresson realmente é único... Ele ficou conhecido como o fotógrafo do "momento decisivo", porque cada foto dele parece que não poderia ter sido tirada em nenhum outro momento ou lugar. Como ele foi fotojornalista, muita gente pensa que simplesmente ele ia fotografando as coisas que aconteciam na frente dele? O que não se conta muito é o trabalho e a concentração que ele tinha para capturar exatamente aquilo, muitas vezes gastava horas ou dias para achar a posição exata e o momento único. A icônica fotografia mostrada pelo Heraldo do homem saltando a poça dágua é um exemplo disso.
ResponderExcluirEle usava apenas uma câmara 35mm com a lente 50mm, que é chamada de "lente normal" para as 35mm porque reproduz aproximadamente a mesma perspectiva do olho humano desarmado, porque com a prática sempre do mesmo equipamento ele era capaz de saber exatamente o que seria registrado no negativo quando olhava para uma cena, mesmo antes de levar a câmara ao olho. E se posicionava de acordo para obter o que queria. É o que muitos dos fotógrafos modernos, acostumados com as objetivas zoom de hoje, não são capazes de fazer.
A Leica é realmente um capítulo à parte. Tive oportunidade de fotografar por algum tempo tanto com a Leica IIIf, mais antiga, como com a Leica M3, ambas de amigos meus. Era uma parada dura escolher entre as Leicas e as Contax da Zeiss de meu pai que eu usava. Duas câmaras que foram contemporâneas e até hoje incomparáveis. Bresson usava a Leica, Robert Capa usava a Contax. Na época disputavam entre si o título da melhor câmara 35mm do mundo.
Quando a Zeiss parou de fabricar a Contax a Leica ficou sozinha na sua faixa de mercado, e hoje se transformou num símbolo, como um Rolls Royce para um automóvel ou um Patek Philippe para um relógio. Segurar uma dessas câmaras na mão e segurar uma das modernas é algo completamente diferente em termos da impressão de qualidade que passam.
Heraldo, desculpe o alongamento do comentário, mas é que você me trouxe boas lembranças :)
Mano,
ExcluirNunca esqueça, esta casa (maravilhosa) é sua. Portanto, fique à vontade.
Não sou especialista em fotografia, mas fascinado pela obra de Bresson, pela Leica e pela história mítica de ambos, inclusive da parceria que estabeleceram.
Diante do seu conhecimento técnico, ouso apenas acrescentar que aquela foto famosíssima do homem saltando a poça d'água chega a ser humilhante do ponto de vista da precisão, porque Bresson deu o clique um milésimo de segundo antes de o salto do sapato tocar a água!!! Além disso, o movimento desfocou o sujeito da ação e ele ainda ficou duplicado no reflexo. Coisa de gênio, não apenas de sorte, o que só ratifica tudo o que você escreveu a respeito de ele passar tempos enormes de tocaia para conseguir a imagem exata que desejava registrar.
Agora, um dos meus desejos é visitar as instalações da Leica em Famalicão, e naturalmente aproveitar tudo que Braga e região oferecem. Abração.
Belo texto, Heraldo
ResponderExcluironde descreve do seu jeito cronista os contrastes da vida. Cartier Bresson com a limpidez do refexo do pulo na água e o menino Charles Chaplin, e você com o cimento e o circo, a pressa e a paz, e a alegria de se sentir de novo feliz.
Gostei ainda mais do texto para o Dia das Mães, criação puramente comercial mas que não deixa de tocar nossa vida orfã. Lindo quando você diz de, muitas vezes, ter sido mãe sem deixar de ser pai. E a certeza da maternidade quando deixa de ter gênero.
Obrigada.
Ana,
ExcluirObrigado. Sim, os contrastes me cativam, me chamam às letras. Sim, é impressionante ter esses dois lados, o lúdico e o rude (da vida) numa mesma avenida festejada, um celeiro de tribos e de tudo, o lugar perfeito para se conhecer uma multidão solitária. Uma cidade apressada que pode nos dar o desterro da solidão e o enlevo do acolhimento em questão de poucos metros. Basta seguir na rua ou entrar na porta certa (mesmo que seja repetida, uma das de sempre).
Sou de uma família matricial muito pequena, por isso mesmo aprendemos cedo a transformar amigos e suas famílias em parentes por afinidade. Nossa mãe nos trouxe, por isso, outras mães para nossas vidas - a foto no texto traduz isso, onde ela é a primeira (Totonha) e as demais são aquele tal "suporte precioso" a que me refiro. Todas já se foram e nunca se foram.
Por fim, senti falta do seu "Até mais", que não deixarei faltar, porque prefixo. Pois, até mais!
Saborosíssimo o texto, Heraldo, parabéns! E me trouxe saudade de São Paulo e dessas caminhadas surpreendentes.
ResponderExcluirPS.: além de ter aprendido um pouco sobre os encantos da fotografia, máquinas e fotógrafos notáveis.
ResponderExcluirObrigado, Diniz.
ExcluirSim, Sampa dá saudade e tem seus recantos surpreendentes.
Observador da vida...
ResponderExcluirHP, seus textos são um oásis precioso diante da aridez de nossos tempos tão bicudos. Obrigado, sempre obrigado! Abraços fraternos e saudosos!
ResponderExcluirWA,
ExcluirVocê conhece bem esses meandros da Pauliceia e o que eles provocam, pois é um mestre da sobrevivência nesta cidade de extremos. Vamos adiante. Abração.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirComento atrasado a ótima narrativa desse seu passeio histórico em p&b pelas geniais fotos do Cartier- Bresson, pelas cores da Cia LaMínima até a experiência geométrica latino-americana. Sem reparos!
Acompanhei-o pelos “atalhos calorosos da metrópole fria”, pelo asfalto “quase feliz e quase infeliz” até à conclusão de que havia arte nos rostos, na comida, na conversa, no cimento, na chuva. “Havia arte simplesmente”. Perfeito!
E aí eu rolei a página de volta ao melhor do texto:
“Hoje tem espetáculo? Tem sim, senhor”
E aí e nos parágrafos seguintes encontrei o velho mestre inteiro e arteiro , o cronista de Acari nos fazendo virar crianças outra vez, fazendo mágica com tinta. E Fiat Lux!
Pensei cá comigo que o dono da sua bic nem mesmo precisa de arte para fazer mais e me deu vontade de saber como foi que o “santo descobriu a sua santidade”.
O Mestre ficou nos devendo a história da sua arte: os seus primeiros contatos com a cultura, as ribaltas, os grids de luz, a música, com "a fantasia tão concreta" na sua vida.
Às pretinhas!
Abração
Caríssimo,
ExcluirVocê sabe muito bem o valor desses passeios para a alma. E a gente termina descobrindo nas galerias e nas ruas que existe arte simplesmente. Basta viajar com você para Paris ou qualquer lugar do mundo.
Não sei se há um momento preciso em que o "santo descobriu a sua santidade"; acho que pequenos milagres foram se dando e se juntando pela vida. Não sei se isso dá motivo para gastar tinta. Abração.
A única coisa ruim de ler tuas crônicas ... é que elas são breves ...
ResponderExcluirFico imaginando como será bom ler teu próximo (mesmo que seja o primeiro) livro !!!
Abraços amigo!!!
Obrigado, meu velho. Estou considerando esse projeto do livro de verdade. Abração.
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