Wilson Baptista - O Amolador |
Wilson Baptista Junior
O post da Ana sobre Minas me fez lembrar
de uma Belo Horizonte que não existe mais.
Eu nasci e fui criado com meus quatro irmãos e três irmãs numa casa na avenida
Barbacena, num bairro de casas grandes e bonitas que então era puramente
residencial. Hoje quase todas as casas ainda estão lá mas viraram todas
escritórios, quase ninguém mora mais no bairro.
A avenida era larga, mas tinha só duas
pistas para automóveis, calçados em pé-de-moleque (aquelas lascas de pedra hoje
chamadas de “calçamento poliédrico”) e o centro era ocupado por um grande
gramado. Nosso quarteirão era em declive, em cima a região do quartel do 12°
Regimento de Infantaria (conhecido só como o "Doze") onde um ou dois
dos postes de ferro da avenida ainda tinham furos de bala de metralhadora do
cerco ao quartel na Revolução de 30, em baixo cruzava, já no plano, a avenida
Amazonas, essa mais movimentada, tinha outro quarteirão de casas parecidas com
a nossa e depois subia em mais dois grandes quarteirões, todo em terrenos
baldios, para o alto do Grupo Escolar Pandiá Calógeras, onde eu e todos meus
irmãos e irmãs estudamos. Os terrenos pertenciam à Universidade Federal de
Minas Gerais, estavam reservados para a construção de um campus que nunca se
realizou, foi construído muitos anos depois na Pampulha.
Na primavera esses terrenos se cobriam de
florezinhas amarelas, parecia um tapete dourado encosta acima.
Prédios? Nenhum por perto. Da varanda de
cima de nossa casa se avistava por sobre as casas no outro lado da avenida a
silhueta azul, lá bem longe, da Serra da Piedade, e, nos dias claros, o reflexo
do sol nas torres da matriz da cidade de Santa Luzia, terra de minha avó e
minha tia avó. Do lado direito da varanda, para além do alto do Grupo, o
paredão bonito da Serra do Curral, ainda intocada pela mineração que mais tarde
iria destruir sua crista e deixar um buraco de quase duzentos metros de fundo
do outro lado do que restou dela.
Nossa casa tinha um muro baixinho, largo,
forrado de tijolos de cerâmica vermelha, bons para se ficar sentado,
conversando, ou deitado olhando o
movimento das nuvens no céu que faziam a fachada alta da casa parecer que ia
cair em cima da gente. O portão também baixinho de madeira, em frente à
garagem, tinha só um ferrolho, que podia ser aberto por qualquer lado, e servia
apenas para evitar que os cachorros que andavam pelas ruas entrassem no jardim.
Quase todas as casas tinham cachorros, muitos andavam soltos na rua, nós os
conhecíamos e eles nos conheciam e convivíamos em paz.
Em cima do muro, de manhã cedinho, o
leiteiro deixava dois litros de leite, que a gente ia pegar para o café da
manhã e depois devolvia, lavados, para ele pegar.
De vez em quando se ouviam na rua as matracas
do vendedor de vassouras, ou do amolador de facas. Esse chegava com sua roda
tocada a pedal, encostava um ferro na roda que dava um guincho alto e
característico, e aí era a romaria das cozinheiras que levavam as facas e as
tesouras para amolar, e ficavam batendo papo com ele e umas com as outras. As
casas do bairro tinham geralmente uma arrumadeira e uma cozinheira, muitas
ficavam anos e anos na mesma casa e se tornavam pessoas da família, me lembro
da dona Maria, era lavadeira lá em casa, algumas vezes fui com Mamãe visitá-la
em sua casinha, nos recebia com uma fidalguia natural, naquela hora não estavam
ali a patroa nem a empregada mas duas senhoras que se visitavam, duas de suas
filhas trabalharam lá em casa depois, uma delas era afilhada de Mamãe, a mais
velha, a Neném, foi criada junto conosco, quando cresceu virou nossa cozinheira
e trabalhou toda a vida com a família, só nos deixou quando meu pai morreu há
poucos anos e tivemos que dispensar o pessoal da casa, e um filho dela
trabalhou com meu irmão André no seu estúdio.
De vez em quando desciam a rua vaqueiros
que vinham das fazendas vizinhas levando uma boiada para o matadouro. Chegávamos
à varanda de baixo para ver, uma ou outra vez uma rês assustada pulava o
murinho e tinha que ser tocada para fora antes que destruísse as roseiras de
minha mãe.
Do outro lado da avenida, na esquina de
baixo, a farmácia do Seu Nagib e o armazém do Seu Délcio, um armazém daqueles
com grandes caixas debaixo do balcão com arroz, feijão e milho a granel, cada
uma com seu caneco cônico de lata para encher os sacos de papel que depois eram
pesados na balança em cima do balcão. As compras dos moradores da vizinhança
eram anotadas na caderneta de cada um e pagas religiosamente ao final do mês.
Tomando a Amazonas à esquerda, no meio do quarteirão a oficina do sapateiro que
fazia sapatos sob medida, e pouco mais abaixo a padaria do Seu Pampolini, e na
esquina dela, junto ao colégio Santo Agostinho, o ponto dos carros de praça,
onde estacionavam o Chevrolet do Seu Bernardino e o do filho, que a gente
chamava pelo telefone quando precisava.
Na outra esquina, mais perto lá de casa, o
ponto de ônibus mais próximo, onde as pessoas ainda se cumprimentavam quando
chegavam e faziam fila educadamente para esperar o coletivo...
A um quarteirão da padaria o Hospital São
José, onde o papai, com os oito filhos que vieram, tinha caderneta, como a do
armazém; um caía, se machucava, outro quebrava um braço numa trombada de
bicicleta, outro se cortava, e era só chegar lá, ser atendido, e mandar por na
conta...
Uma vez por semana vinha a verdureira, a
Dona Senhorinha, gorda, morena, com seus balaios enormes, me lembro dela na
varanda do lado de vovó; sabia o aniversário de todos nós e muitas vezes trazia
uma lembrancinha, uma caneca com nosso nome gravado.
De tempos em tempos vinha a carroça da
lenha, deixava uma pilha de lenha que enchia o espaço entre quatro postes de
madeira de um metro de altura, fincados no quintal formando um quadrado de um
metro de lado. Mais tarde, no grupo, vim a saber que aquilo correspondia a uma
medida de lenha que se chamava um estere. Era o combustível para os fogões da
nossa casa e da de minha avó, com seus aquecedores de água em cima, nas
paredes, que mais tarde foram substituídos pelos fogões elétricos.
De vez em quando chegava um senhorzinho
chinês, era recebido por vovó e abria uma mala grande em cima da mesa de jantar
e mostrava tecidos lindos e serviços de chá de uma porcelana quase transparente
de tão fina, decorada com desenhos de dragões. Às vezes vovó ou mamãe compravam
alguma coisa, outras não, mas a visita era sempre uma ocasião para conversar e ver
coisas bonitas.
Aos domingos eu ia com papai fazer compras
no Mercado Municipal, cada um carregando um balaio de vime. O Mercado naquela
época era descoberto, um grande quarteirão murado com entradas em cada lado e o
centro povoado pelas bancas dos vendedores. Conhecíamos quase todos, e tínhamos
as bancas de preferência; um japonês, o sr. Kyoshi, com sua senhora, ambos de
óculos redondos, tinham uma banca de tomates, os tomates maravilhosamente
vermelhos meticulosamente arrumados em pirâmides quadrangulares por tipo e
tamanho; ainda me lembro que os sacos de papel para os tomates traziam impresso
o nome da banca: “Banca Sol Nascente, de
Kyoshi Matumoto – Antonio” - ele tinha adotado o nome de Antonio durante a
guerra, quando os japoneses não eram lá muito bem vistos por aqui - muitos anos
mais tarde vim a reencontrá-lo, bem velho, numa exposição de suas aquarelas no
Palácio das Artes, depois que se aposentou estudou algum tempo na Escola
Guignard... O seu Ernesto, um alemão, e o irmão tinham a banca de ovos que
preferíamos; outra banca vendia grandes palmitos inteiros, cujo tronco era usado
como esses que se compram hoje em vidros ou latas, e a cabeça era picada em
pedacinhos pequenos e cozida com carne moída; outro de quem não me lembro o
nome vendia bacalhau, que vinha em belos caixotes de pinho de riga dourado e
veiado que de vez em quando levávamos para casa, para aproveitar a madeira na
nossa oficina. Ainda me lembro dos pregos noruegueses, de seção quadrada,
diferentes dos de arame redondo que eu conhecia, e que retirávamos
cuidadosamente para não estragar a madeira e aproveitá-los depois.
Perto do Mercado, a nossa versão
belorizontina da Place de L’Étoile – a praça Raul Soares, onde quatro grandes
avenidas se cruzam numa rotatória com um enorme canteiro central circular. Com
aproximadamente quinhentos metros de circunferência, era no seu anel – naquele
tempo desimpedido, hoje todo interrompido por ilhas e semáforos – que alguns
anos depois eu e um amigo, já no colégio, treinávamos perseguição em nossas
bicicletas de corrida – vinte voltas faziam dez quilômetros.
Belo Horizonte tinha apenas dois
aeroportos, o do Aero Clube, no Carlos Prates, e o comercial junto com a Base
Aérea na Pampulha, a alguns quilômetros de nossa casa. Quando passavam aviões
eu ouvia o ronco dos motores a pistão e ia para a varanda olhá-los – os Douglas
DC3 e os Curtiss Comando que faziam as linhas para o Rio e São Paulo passavam baixo, prateados contra o céu azul, de vez em quando um hidroavião Catalina ou um biplano Beechcraft do Correio
Aéreo Nacional, ou um par de AT-6 de treinamento de caça, raramente um
bombardeiro B-25 e uma ou duas vezes, glória! – a fulgurante flecha de prata de um caça a
jato Gloster Meteor, orgulho e cartão de visita da FAB...
Nada desses helicópteros irritantes que
hoje infernizam meus ouvidos como enormes insetos desde as primeiras horas da
manhã.
Se eu conto hoje essas coisas para meus
filhos, eles me olham como se eu tivesse nascido na roça – mas aquela era a
capital de Minas, que tinha por volta de trezentos mil habitantes quando eu
nasci e hoje tem mais de dois milhões e meio, sem contar mais outro tanto da
região metropolitana que hoje virtualmente faz parte da mesma cidade.
Parafraseando o nosso Drummond, aquela
Belo Horizonte é hoje apenas um retrato na parede – mas que saudade!
1) Parabéns Mano, muito bons esses textos onde nos lembramos de nossa infância e adolescência.
ResponderExcluir2)É por isso que disse outro dia, o blog "Conversas" é muito importante, registra um tempo que não existe mais, por nós que vivenciamos aquele agradável tempo.
3) Boa semana !
Obrigado, Antonio... Chega uma idade em que a gente começa a se preocupar em contar essas lembranças antes que elas se percam.
ExcluirTanta coisa pra lembrar...
ResponderExcluirTanta, e muito mais... Um dia ainda vou escrever sobre a Barbacena.
ExcluirCaro Mano,
ResponderExcluirAfora a nostalgia que as reminiscências ocasionam, os textos bem feitos enaltecem as recordações de tempos inesquecíveis, razão pela qual mesmo eu não sendo mineiro e de Belo Horizonte, aplaudo este teu artigo brilhante sobre a tua cidade!
Não importa que os leitores deste blog extraordinário não conheçam a capital das Minas Gerais. A tua descrição e detalhes mencionados elaboram na mente de qualquer pessoa uma cidade maravilhosa, um povo digno, independente das características do mineiro tão conhecidas do brasileiro, que o torna tão interessante quanto benquisto por todos nós, indistintamente.
Faz muitos anos que estive em Belo Horizonte. A última vez foi em 1968, portanto, a cidade certamente é outra, no entanto, eu a tenho como acolhedora, grandiosa, e tendo a história do país consigo em seus momentos importantes desta nação que, aliás, a coloca ao lado de Porto Alegre neste sentido, de serem protagonistas de momentos decisivos para o Brasil.
Um forte abraço.
Saúde e paz.
Chicão, a gente guarda no peito as lembranças desse tempo que foi nosso e desses lugares em que a gente foi ou não foi feliz, e escrever é uma maneira de fazer com que elas durem mais um pouco.
ExcluirWilson,
ResponderExcluirAs cidades das nossas infâncias não foram aquelas que nossos filhos aprenderam a amar e com certeza nada têm a ver com aquelas que nossos netos começam a vivenciar e curtir. Tudo muda o tempo todo. No seu belo texto mais do que essa bucólica Belô dos anos 50/60 tão desaparecida quanto o Posto 4 da Copacabana da minha meninice, me chama atenção o moleque que viveu ali essas inesquecíveis recordações. O homem não estava todo contido no menino dessa conversa , nos seus personagens, nas serras à distância vistas das janelas da "casa-mãe", na sua grande família, no pai homenageado pela belíssima foto que abre o post, no muro baixinho que em vez de manter o mundo lá fora servia de travesseiro para olhar as estrelas , em tantos afetos. Mas com certeza foi a partir daquele moleque que ele fez as suas ótimas escolhas. Parabéns.
Não são mais as mesmas, Moacir, são, em seus diversos rostos de suas diversas épocas, aquelas que estão nas nossas lembranças, nas mesmas lembranças que ajudaram a nos fazer o que somos hoje, para o bem ou para o mal...
ExcluirE o moleque, que ainda vive nessas lembranças, agradece a bela descrição que você fez, em poucas palavras, do mundinho em que ele começou a fazer as suas escolhas. Que, quando ele, vendo os afetos que teve e tem hoje, olha para trás, pensa que deve mesmo ter feito mais boas do que ruins...
Mano, estou acompanhando a exposição do Papai, levando vários amigos e amigas para ver, e contando as histórias das fotografias e dos lugares. Essa sua crônica preenche todos os vazios. Maravilhosa!
ResponderExcluirZia, meu irmão, que bom se servir para ajudar nas conversas da exposição :)
ExcluirSão lembranças boas, minhas e suas também...
Não sabia, caro Wilson, que sua família viveu ali, na Av. Barbacena. Era o meu caminho.qdo servi no 12 RI (1967) Cia de Comando e Serviços na classe de combatente (Infante). Vinha do Carlos Prates, pela rua Ituiutaba (Molas Forjinha), ou vinha pela rua Conquista (Fazenda do Luciano)onde estava o Deposito de Combustíveis da Atlantic (vc deve se lembrar), meu pai era guarda-chaves da extinta Estrada de Ferro Oeste de Minas(EFOM).Hoje, a caminho do meu trabalho, passo de metro, bem cedo naquela região, e fico lembrando como eram bons aqueles tempos. Vem sempre a minha mente, a canção do Vinicius e do Garoto (Gente Humilde)a assaltar-me o espirito. AS lagrimas sao inevitaveis....
ResponderExcluirPois é, Paulo, na última casa do lado direito antes de chegar à Amazonas... Ainda está lá, hoje ocupa-a um sindicato. Sim, me lembro da Atlantic, e da Forjinha. E, por coincidência, a três quarteirões da antiga sede da RR, onde nos conhecemos...
ExcluirBrilhante artigo. Lendo, vieram-me lágrimas aos olhos. Simplesmente sensacional. Vêm a minha mente, lembranças da minha infância no bairro Padre Eustáquio, onde até hoje moro.
ResponderExcluirForte abraço, mesmo não te conhecendo pessoalmente.
Rodolfo Reis.
Muito pbrigado, Rodolfo, e fico feliz por ter despertado também suas lembranças.
ExcluirUm abraço do
Mano
Mano,
ResponderExcluirA foto soberba resume a poesia desse seu texto memorial, afetivo, lindo. Estilo que tanto gosto, mantém vivos pedaços de chão que valem a pena e sempre valerão.
Tenho uma profunda ligação com Belô, uma das cidades que amo de graça - meus textos já publicados aqui sobre ela falam por mim. Abração.
Heraldo, meu pai gostaria de ter lido seu elogio à fotografia. É uma das mais conhecidas dele, exposta inúmeras vezes e já foi até capa de disco. Obrigado pelo elogio às minhas pretinhas, são realmente uma maneira de manter vivos estes lugares das nossas almas. Como,você faz em tantos de seus escritos.
ExcluirFalou tudo, tudo o que passei na minha infãncia, morei com meus pais na conflu~encia das ruas Tupys, Corityba e Amazonas. Vi a construção do balança, e recordo dos docinhos da padaria REX, na Tupys. Parabéns pelo exposto acima.
ResponderExcluirAltino, uma de minhas boas lembranças eram as Roscas da Rainha da Padaria Rex... Papai era amigo dos donos, já não me lembro do nome deles, Íamos sempre lá comprar para o lanche dos domingos...
ExcluirPrezado Wilson.
ResponderExcluirSou colega do seu irmão Osias e fizemos uma visita a Exposição das fotos do seu pai Wilson. Já havia visto muitas fotografias desceu pai em algumas publicações, nas não poderia deixar de parabeniza-lo pelo artigo sobre as redondezas do Bairro Santo AGOSTINHO. Sou descendente das famílias Silveira e Vaz dez Mello, oriundas do antigo Curral del Rey, e já mostrei ao Osias às relações familiares com a família Batista.
Mais uma vez, parabéns e continue nos brindando com seus causos.
As fotos são fantásticas.
Flavio Edenlar Pereira da Silva