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03/05/2017

Um Caravaggio Misericordioso


Moacir Pimentel




Tenho certeza que você que está aí, tranquilamente, tomando um cafezinho e lendo as Conversas, está se perguntando:
Mas o que é ISTO?
Pois é, prezado leitor(a), ISTO é Caravaggio fantasiado de Medusa na Galleria Uffizi de Florença.
Acompanhar a arte caravaggiana é como um passeio de bugre com emoção. A gente fica tão confuso, por exemplo, com a carne quente dos “anjinhos” do pintor, que aceitamos sem protestos a coisa mais estranha sobre eles: têm asas pretas como as das graúnas.
Ficamos tão focados no brilho das composições de Caravaggio que o mistério de sua configuração só é registrado por nossos cérebros inconscientemente, na pasta dos “Inexplicáveis”.

Já no fim da sua curta vida, Caravaggio mudou essa sua maneira chocante de pintar, tornou-se mais evasivo em espaços cada vez mais esfumaçados e ordenou às suas figuras biblicas e mitológicas, que abdicassem da sedução. Mas até a última de suas pinceladas Caravaggio fez do real um sonho lúgrube e tornou o impossível real.

Diz a lenda que a Medusa, aí em cima, era tão repulsiva que qualquer cidadão que a encarasse valentemente de frente era transformado em pedra. O herói Perseus usou o brilhante escudo da deusa Atena para evitar olhar para Medusa diretamente e conseguir decapitá-la.

Acontece que ao pintar o tema mitológico Caravaggio se perpetuou como Medusa em um momento de auto-reconhecimento. ISTO é uma imagem tanto terrível quanto horrorizada. Não há nada aqui além do vislumbre de um grande pesadelo: uma cabeça cortada mas ainda consciente e ciente de sua condição de desencarnada.

Caravaggio foi contratado para fazer essa monstruosidade como um presente para o Grão-Duque da Toscana e ela foi concebida para entrar na coleção Medici em Florença.
Detalhe: ao pintar este incubo Caravaggio ainda competia com Leonardo da Vinci, morto há oitenta anos.
Porque a pintura decora um escudo de madeira convexo, certamente aludindo a uma história que o jovem Leonardo, cujo pai certa vez pedira-lhe para decorar o seu escudo, deixou registrada nos seus cadernos. Da Vinci foi para os campos, recolheu flores e folhas, cobras, lagartos e insetos, e reuniu-os em um monstro híbrido que pintou sobre o escudo paterno.

O conto do monstro de Leonardo é sobre a arte e o poder: ao decorar um objeto bélico, o artista impõe sua imaginação sobre o mundo, criando uma imagem perturbadora. ISTO é o que Caravaggio fez nessa obra de arte que pretendia ser melhor que a do Mestre renascentista.

Mas estávamos em Nápoles e não em Florença para ver uma obra específica de Caravaggio, na qual o artista fora forçado a ser estranhamente compassivo. O nome da tela é: As Sete Obras de Misericórdia.

Caminhamos pela Via dei Tribunali até uma porta através da qual entramos em um pátio do século XVII, onde ainda hoje médicos atendem às crianças pobres de Nápoles, como tem sido feito sem interrupções desde que a instituição católica chamada Pio Monte della Misericordia foi fundada em 1601, por sete jovens nobres, que se reuniam todas as sextas-feiras no hospital para tratar dos doentes.

O tema da obra-prima de Caravaggio é pois, tão relevante do seu contexto atual como era quando ele a pintou há mais de quatrocentos anos atrás. Em 1602, os caridosos de Nápoles começaram a construir uma pequena igreja, perto da escadaria que leva à Catedral, na esquina da Via dei Tribunali e do Vico dei Zuroli. Era no altar–mor dessa igreja do século XVII que morava a obra de arte que queríamos ver.

Subimos uma escada que se transformou em um corredor tão escuro quanto um Caravaggio e, de repente, estávamos em um templo lotadao por fieis em oração. As Igrejas estavam sempre cheias naquelas paragens.

Suponho que se eu vivesse ao lado do vulcão mais perigoso da Europa também eu rezaria tanto e acreditaria em milagres e - quem sabe? - até mesmo compraria aqueles quadrinhos vendidos nas lojas de souvenirs napolitanas que mostram o Cristo resgatando os pecadores das chamas vermelhas do inferno.

Finalmente estávamos defronte do famoso retábulo que Caravaggio pintou em 1606. As Sete Obras de Misericórdia, muito mal iluminado, era um retábulo imenso, de quase quatro metros de altura e apesar da santa escuridão, nos pareceu um trabalho impressionante.

E o interessante é que se tratava de uma pintura de Nápoles, ou pelo menos das ruas da cidade, onde até hoje a arte se mistura com vespas e T-shirts.

Fotografia David Evers/Flickr/creative commons

  
Caravaggio adorava pintar as ruas - as reais, sujas e empoeiradas, as ruas escuras de Roma e Nápoles - no início do século XVII. As portas sombrias com vergas desgastadas, as janelas quadradas, as grades de ferro, os portões que levavam a pátios obscuros, as salas com paredes nuas e os homens rudes debruçados sobre mesas ásperas.

No óleo, o pintor retratou um conjunto de atos compassivos, relativos ao bem-estar físico e material alheio, segundo à crença católica tradicional.

As ações caridosas de ajuda ao próximo são espirituais - instruir, aconselhar, consolar, confortar – ou corporais e inspiradas nas palavras de Jesus Cristo no Juízo Final, conforme São Mateus:
“Vinde, benditos do Meu Pai, possuí o reino que vos está preparado desde a criação do mundo; porque tive fome e Me destes de comer; tive sede e Me destes de beber; era peregrino e Me recolhestes; nu, e Me vestistes; enfermo e Me visitastes; estava na prisão e fostes ver-Me”.
A sétima obra de misericórdia, não mencionada no Evangelho de Mateus, o sepultamento dos mortos tivera origem, em vez, no Livro de Tobias.
Alguns dos atos de compaixão precisam de um tantinho de contextualização. Na antiguidade dar pousada aos peregrinos era um assunto de vida ou de morte, pelo complicado e arriscado das travessias.
Além disso, na velha Europa, após as batalhas, os corpos jaziam insepultos e, no início do Renascimento, Boccaccio descreveu os horrores da Peste Negra na Itália: pessoas que não tinham coragem de visitar ou ajudar os próprios cônjuges, filhos, pais, irmãos doentes, traindo-os e abandonando-os à própria sorte.
Diante da peste a comunidade falhou e o coletivo se desintegrou. Na dança macabra da morte, o homem rico, o pobre homem e o rei todos ficaram sozinhos diante da Velha Senhora. O que a pintura de Caravaggio pretendia dizer é que ninguém estará sozinho enquanto houver compaixão.

“Em verdade vos digo que, todas as vezes que fizestes isto a um dos Meus irmãos mais pequenos a Mim o fizestes”.

Caravaggio - As Sete Obras da Misericordia

Originalmente, Caravaggio pensou em pintar sete painéis separados para serem colocados ao redor da igreja, cada qual descrevendo uma das obras caridosas. No entanto ele foi capaz de magistralmente combinar todas as sete ações de misericórdia em uma só composição que se tornou, então, o retábulo que estávamos contemplando a partir do pequeno coro no primeiro andar da igreja, o melhor local para se apreciar a obra de arte devido às suas dimensões.

No topo da pintura a Madonna da Misericórdia, a criança e os dois anjos observavam as ações e transmitiam a graça que inspira a humanidade a ser misericordiosa.

Notamos no fundo da tela dois homens carregando um homem morto, do qual apenas os pés são visíveis, sujos como eram todos os pés pintados pelo artista.

À direita, uma mulher visitava um homem preso e dava-lhe o leite de seu peito. Um peregrino, o terceiro à esquerda, identificado pela concha e pelo chapéu, pedia abrigo a um estalajadeiro.

O quarto personagem também à esquerda rasgava o seu manto ao meio para oferecer uma vestimenta ao mendigo nu aos seus pés no primeiro plano e finalmente a última das figuras bebia água da queixada de um animal.

Não entendemos a peculiar escolha de Sansão como símbolo de dar de beber a quem tem sede, pois na Bíblia Deus deu de beber ao herói, num milagre que não era de fato uma obra de caridade humana.

O fato é que essa era a mais ambiciosa obra de Caravaggio. Era palpável e crível essa esquina onde o artista retratou a noite, e esse grupo de criaturas caridosas em luta contra a pobreza, a crueldade e o mal, iluminados pela tocha carregada pelo homem ao fundo.

Foi necessário olhar duas vezes para a pintura para perceber a naturalidade com a qual Caravaggio fez com que a jovem mulher desse o peito ao homem velho com o rosto pressionado contra a grade da janela. A cena era oriunda de uma história romana antiga, uma lenda sobre a piedade filial, na qual a filha de um prisioneiro mantém o pai vivo dando-lhe de mamar.

Mas Caravaggio não incluiu na narrativa nenhuma evidência do parentesco e tanto a necessidade quanto a generosidade parecem mais basica e desesperadamente humanas.

Sem dúvida eram muito corajosos além de caridosos, naqueles tempos negros, os homens que carregavam e enterravam os cadáveres e não se discute a caridade da mulher amamentando o prisioneiro, mas o que nos intrigou na pintura é que nem todas as pessoas na cena pictórica tinham caras misericordiosas.

Mas quem são os homens tão bem vestidos e armados, que no centro da tela estavam reunidos como se confabulassem? Eles usavam os chapéus emplumados e as luvas de couro dos cavaleiros e havia algo de muito duro em suas expressões e posturas. No entanto, eles também protagonizavam atos de bondade.

Dramaticamente, um deles chega a sacar da espada para cortar a sua própria capa em duas e presentear metade a um maltrapilho. Então percebi que estávamos diante de um emblema antigo da caridade. O ato de cortar a própria capa ao meio e de compartilhá-la com um mendigo eu já presenciara, na São Petersburgo de Crime e Castigo, da lavra de Dostoiévski.

Na pintura o que nos pareceu mais marcante foi o brilho da lâmina da espada no meio da noite, o aço delgado cortando a escuridão. Esta era a confissão pessoal, a pista para a alma de um homem.

O retábulo As Sete Obras de Misericórdia foi pintado como uma penitência, como se Michelangelo Merisi da Caravaggio pintando-a estivesse tentando obter perdão e salvação.

Esta foi a única vez que, pelas mãos de Caravaggio, uma espada foi empunhada para fazer o bem. Apenas alguns meses antes de começar esta pintura, Caravaggio dera à própria espada uso menos generoso.

Em 26 de Maio de 1606, em Roma, um jovem, Ranuccio Tomassoni, foi morto depois de uma longa luta de espadas. Ele e seu assassino eram o tipo de caras que carregavam armas habitualmente, à procura de problemas. Tomassoni encontrou sua morte naquela noite nas mãos de melhor espadachim, o pintor Caravaggio.

Tomassoni era um zé ninguém de uma família de muitos zé alguéns. Caravaggio teve que fugir de Roma, um fora da lei, com uma sentença de morte pairando sobre sua cabeça. Em outubro ele já estava em Nápoles, já pintando As Sete Obras da Misericórdia, que terminou no início de janeiro 1607.

A vida de Caravaggio depois que ele se tornou um assassino foi a aventura trágica de um gênio da pintura. Só que tal aventura era também a do homem de gênio turbulento, enigmático e perigoso, sempre se metendo em contendas, fazendo ameaças, desferindo críticas e insultos.
Mas ele pintou obras-primas por onde passou.
Realmente não podemos confundir a arte com o seu criador. Pouco deveriam nos interessar as posições e opções políticas, morais, religiosas e sexuais de quem produz arte. Há que se separar a produção intelectual e cultural e artística de um indivíduo da sua biografia.
Não gostar de quem as fez ou faz, não deveria influir no julgamento de tantas magníficas obras artísticas, vilipendiadas sem quaisquer razões estéticas.
Alguns dão a tal prática nefasta o nome de “coerência”. O certo é que não falta radicalismo repudiando a manifestação artística, patrulhando ideologicamente o ato de criar, controlando o que, para existir, necessita de liberdade.
Confundir o homem com a sua obra – e que me perdoem os que pensam diferentemente – para mim é algo muito próximo da barbárie.



17 comentários:

  1. Mônica Silva03/05/2017, 11:10

    Em tese concordo com você mas é muito difícil separar as pessoas de suas obras, Moacir. Eu mesma não consigo. O primeiro quadro é digno da Floresta Maldita kkk O segundo é muito interessante por causa de suas informações. Desculpe se incomodo mas eu já olhei, já vi a obra aumentada no Google e não consigo tirar uma dúvida. Aonde está a espada? Obrigada!

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    1. Moacir Pimentel04/05/2017, 11:25

      Mônica,
      Obrigado pelo ótimo comentário. Para começo de conversa fiquei todo prosa ao ler que você olhou para o retábulo e , não satisfeita, foi ao Google para vê-lo melhor. Brava!
      Quanto à espada note que eu a descrevi como "o brilho da lâmina da espada no meio da noite , o aço delgado cortando a escuridão"
      E é só isso o que se vê do lado direito da pintura um pouco acima do ombro do mendigo de costas no primeiro plano, que segura com a mão direita um pedaço de pano cortado do manto do cavaleiro à sua frente.
      Caravaggio pintou bem ao lado desse mendigo nu, uma outra figura menor mergulhada na sombra da qual só se pode ver a testa - que a espada parece , inclusive, estar atravessando - o nariz e os pés. Alguns especialistas dizem que trata-se de um menino, outros acreditam que seja um ancião, raros dizem que o artista pode ter retratado o homem que matara em um duelo de espadas, mas todos concordam que, seja ele quem for , é o doente que conforme as obras de caridade, precisa ser visitado. Provavelmente trata-se de uma figura simbólica que ninguém conseguiu “traduzir”.
      Como traduziram , por exemplo , o Sansão sedento ou quem desses homens era o viajante necessitado de pouso e alimento, devido ao cajado que ele traz na mão e à concha que enfeita o seu chapéu.
      A concha é o símbolo do Caminho de Santiago de Compostela . Ainda hoje podemos vê-las nas mochilas, roupas e cajados dos caminhantes. É que as praias da Galícia eram cheias dessas conchas de vieiras que passaram a ser consideradas como prova de que a peregrinação havia sido completada. E foi assim que, desde a Idade Média, a concha de vieira se tornou a marca inequívoca que permitia aos peregrinos, o acesso às hospedarias.
      Quando à “separar os artistas de suas obras” trato do tema mais abaixo na resposta para à Donana.
      Abração

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    2. Mônica Silva04/05/2017, 19:24

      Amei seus comentários, Moacir. Aprendo muito com você e vou reavaliar algumas implicâncias kkk
      Muito obrigada

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  2. Flávia de Barros03/05/2017, 15:20

    Moacir,

    Nápoles continua encantadora na foto e nas suas palavras. A Caridade é a maior das virtudes e como você diz 'ninguém estará sozinho enquanto houver compaixão'. A arte de Caravaggio nas Sete Obras de Misericórdia é um presente maravilhoso que você descreve com grande riqueza de detalhes. Amei o artigo!

    Um abraço para você

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    1. Moacir Pimentel04/05/2017, 11:33

      Flávia,
      Como você aprecia a Arte Sacra, talvez goste de saber que mais dois outros trabalhos de Caravaggio em Nápoles, são uma boa amostra da maestria do artista ao tratar a luz e a sombra. As telas são A Flagelação do Cristo e O martírio de Santa Úrsula.
      A Flagelação, um imenso trabalho cheio de emoção, mora em uma pequena sala do Museu Nacional de Capodimonte e captura os movimentos do martírio na escuridão, como se fosse um ballet sádico e escuro que reflete profundamente a atmosfera tensa de Nápoles no começo do século XVII.

      http://4.bp.blogspot.com/-Vc5AqFA2Av8/TwTYVK9--aI/AAAAAAAABYI/yd482kZbypY/s1600/Flagela%25C3%25A7%25C3%25A3o.jpg

      Já O Martírio de Santa Úrsula - que se acredita ter sido o último trabalho de Caravaggio - está no Palazzo Zevallos Stigliano , na Via Toledo, no coração de Nápoles.
      Obrigado pelo comentário e outro abraço para você

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  3. Olá Moacir,
    Mais um texto incrível! Parabéns.
    Custei para ver a espada, o senhor redator me ajudou, o sabichão!
    Também penso que nãose pode atrelar a obra à vida do autor,"controlando o que, para existir, necessita de liberdade." Apesar de que às vezes vejo reflexos de uma na outra. Estará nessa necessidade da liberdade criativa o amparo da droga, seja ela qual for? Para soltar as amarras? Para ajudar no angustiante e perturbador processo criativo?
    Temos exemplos vários nas várias formas de arte, que no fim não é mais do que uma tremenda e incomunicável solidão. Nem depois de pronta, seja a escultura, a música, a cena, a performance (que são todas elas, acho eu) o autor consegue ou pensa não ter conseguido se comunicar por inteiro. Primeiro, porque a obra toma vida própria, toma conta do criador e muda o rumo da conversa. E depois porque o que se faz sempre é diferente ou menor do que se pensava.
    O que os artistas, muito tempo passado, pensariam das nossas interpretações? Coerentes, reveladoras ou criativas demais?
    Sempre cheia de dúvidas. Responda por favor.
    Obrigada e até logo!

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    1. Moacir Pimentel04/05/2017, 11:43

      Caríssima Donana,
      Não tenho competência para responder às suas perguntas filosofais e, portanto, às vezes tangencio poetando de fininho. Como fiz diante do seu penúltimo comentário. E tome um puxão de orelhas! Hoje a senhora, em poucas linhas, me deu assunto para uma dúzia de comentários e como preciso me redimir ...coitado do do Sr. Editor(rsrs)
      Então vamos por partes:
      Sobre às drogas para ajudar “no angustiante processo criativo” , Dona História especula que desde o berço Dona Arte teve um vínculo com o divino, provavelmente vez que os primeiros pintores,escultores e músicos eram xamãs ou iniciados. Parece-me que , tendo sido coletores por centenas de milhares de anos, aquela galera artística entendia de plantas e que...quando fumava tragava (rsrs)
      Sabemos que pelos séculos afora artistas têm se drogado. Mas daí a se acreditar na hipótese que é repetida com demasiada frequência de que essas substâncias libertam o poder criador, removendo inibições ao estimular o sistema nervoso central é um longo e acidentado caminho. Isso não é mais verdade do que dizer, por exemplo, que van Gogh só foi van Gogh por causa de sua agitação interior e mental. Ou que Basquiat precisava de heroína para desenhar ou pintar, ou que a centelha da genialidade de Modigliani foi provocada por haxixe e ópio. A droga matou os dois e muitos outros.
      Melhor militar no time do Papa Hem: “Escreva bêbado mas edite sóbrio”.
      Continuo...

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    2. Moacir Pimentel04/05/2017, 11:51

      Sim, “a obra pode “tomar vida própria e se apropriar do criador e mudar o rumo da conversa”. Fernando Pessoa nos contou como, um belo dia, escreveu de pé e de um só fôlego todos os poemas do Guardador de Rebanhos e, de quebra, ainda inventou tanto o meu Mestre Caeiro quanto o dotou com uma biografia. Psicografia genial!
      Mas...
      Edgar Allan Poe também nos explicou preto no branco que , uma bela noite , necessitado de dinheiro, decidiu escrever um poema que agradasse ao substantivo abstrato povo.
      Primeiro escolheu o mais belo dos temas: uma bela e jovem mulher. Depois a mais comovente das tramas: a morte da moça.
      Em seguido decidiu qual seria o lúgubre refrão para ajudar a geral a memorizar o poema : Nevermore! E imaginou um corvo negro para repetí-lo à exaustão.
      Finalmente foi buscar na língua inglesa pretinhas que tivessem “schaws”, fonemas inexistentes no português que têm um tom gutural e os espalhou por todo o poema, garantindo-lhe a atmosfera macabra. Tais "schaws" foram escritos não para serem lidos mas sim escutados : loRe, moRRow, boRRow, soRRow, teRRor, hoRRor, heaRt , shoRe, coRe, DooR e, é claro, o nome da heroína LenoRe ! Bombou! Uma obra prima fonética e intraduzível criada friamente do primeiro ao último verso.
      Racionalidade genial!
      E continuamos “cheios de dúvidas”, mais perdidos que cachorro caído de caminhão de mudança...
      E não é essa a graça da coisa?
      Continuo...

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    3. Moacir Pimentel04/05/2017, 11:56

      Quanto à “solidão incomunicável” creio que desde que nascemos nos metem em, digamos, um container, feito sob medida para que possamos nos acomodar massificados e caladinhos lá dentro: nome, nacionalidade, gênero, raça, língua, RG, CPF, CEP, QI, profissão, crachá, estado civil, religião, uma língua, ideologia, classe na pirâmide social.
      E, ao fim e ao cabo, terminamos percebidos e definidos mais pela casca civilizante e pelo molde civilizatório e não pelo que ali contidos, verdadeiramente somos: seres humanos.
      Quem faz arte transborda esse casulo existencial, inventa linguagens buscando fazer contato, procurando significados. Entendo que a arte reúne dois momentos do seu criador : um contido e outro liberto, um resistindo e o outro superando. Fazer arte é expandir a geometria dos dias , é buscar uma espécie de mediação entre a mais intensa das individualidades e a totalidade. É desejar completude.
      ISSO, o fazer artes, o ato criativo, não pode ser tutelado, patrulhado, moralizado, comprado, corrompido, engajado, censurado. E o resultado DISSO - Dona Arte – não deveria ser medida por razões que não lhe sejam intrínsecas ou estéticas.
      Continuo...

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    4. Moacir Pimentel04/05/2017, 12:08

      Há quem goste ou não goste dessa ou daquela obra de arte. Beleza! Mas o fato de Caravaggio ter sido um assassino não significa que ele não tenha sido foi o primeiro cineasta da humanidade ao usar a luz para criar dramas. E não venham me dizer que Herbert von Karajan não foi insuperável regendo a Nona de Beethoven – viva a Ode à Alegria! - porque era nazista de carteirinha. Nem que o grande Gabo - aquele das borboletas amarelas e da bela Remédios andando nua por um país chamado Macondo em tempos do cólera numa morte anunciada - não mereceu aquele Nobel de Literatura nem mereceria pelo menos mais dois prêmios.... por ser comunista .
      Aliás todos os comunistas - Saramago, Vargas Llosa até se converter, Galeano, Sartre e Simone, Gorky, Bretch, Steinbeck, Maulraux enquanto foi, Vailland quase todo, Jorge Amado, Rodin, Picasso, Portinari, Abelardo da Hora e Niemayer devem estar juntos no Inferno do subversivo Dante Alighieri e, pasme , ao som de Wagner, aquele que foi carimbado como o compositor oficial do bestialismo assassino, do nazismo, mesmo tendo morrido em 1880! Somente o sectarismo explica.
      Ah, e nada de me proibir de gostar da Sistina e da Dama com o Arminho só porque Michelangelo e Leonardo não eram espada ou de contar para os nossos netos os contos de fada escritos pela bicha louca do Hans Christian Andersen.(rsrs)
      Foi a ISSO que me referi no post.
      Quem sou eu para lhe dizer o que é arte? Para mim é um jeito de espantar o tédio , uma maneira que a nossa espécie inventou “para não morrer de Verdade”, como dizia o Nietzsche.
      Agora quanto ao básico fato da vida que ninguém consegue se comunicar por inteiro , o grande Rabassa já dizia que :
      “Todo ato de comunicação é um ato de tradução. “
      Como controlar os pensamentos, as percepções, as interpretações, as versões, as traduções de leitores e espectadores? Impossível. Então eu penso que os artistas de qualquer tempo gostariam muitíssimo de saber doaquilo que nos inspiraram, das nossas modestas artes e conversas senão não teriam pintado e esculpido e escrito o 7.
      Não sei quem disse que :
      " ALEGRIA É TRAZER À TONA AS ESTÓRIAS DOS OUTROS"
      Finalmente não acredite que acabo de CRIAR – Fiat Lux! - todo esse blábláblá. Fiz foi uma varredura em pretéritos textos sobre arte e trata-se de uma colagem plagiada de mim mesmo (rsrs) E então...fui perdoado?
      Até muitas mais de suas benditas dúvidas.

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    5. Ufa!
      Adorei, adorei, adorei!
      Estou até com vontade de combinar outras "saídas de fininho" para ganhar posts particulares dessa categoria!
      Achei demais seu crescendo de indignação do"e não me venha dizer" até "bicha louca do Andersen". Concordo! Também faço plágio de mim mesma.
      Perdoadíssimo!
      Até muito mais.

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  4. Alexandre Sampaio03/05/2017, 20:38

    Pimentel,
    Parabéns pelo tema, pelo domínio dele e pela didática das colocações feitas.

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    1. Moacir Pimentel04/05/2017, 12:10

      Sampaio,
      Muitíssimo obrigado pelo apoio!

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  5. Francisco Bendl04/05/2017, 02:36

    Pimentel,

    Os mesmos elogios que venho mencionando sobre os teus artigos, e registrar que essas tuas obras enriquecem sobremaneira a biografia dos personagens que escolheste para nos brindar com detalhes e informações preciosas sobre seus trabalhos verdadeiramente geniais.

    Um forte abraço.
    Saúde e paz.

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    Respostas
    1. Moacir Pimentel04/05/2017, 12:11

      Bendl,
      Que bom que você continua aí, firme e amigo, sempre nos lendo.
      Muito obrigado e muita saúde para você
      Abração

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  6. 1)O Pimentel escreve de uma forma múltipla, como se fosse um poliedro. De um mesmo artista ou de um quadro ou uma obra de arte ele aborda diferentes facetas.

    2)E discorre sobre essas diversas facetas de forma ampla com uma gama de informações impressionante...

    3) Fico impressionado, o Moacir é um impressionista. Ele nos revela impressões imprescindíveis que o leitor, eu, ainda não tinha percebido...

    4) Parabéns !

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  7. Moacir Pimentel06/05/2017, 09:05

    Antônio,
    Você me desculpe. Não tinha lido esse seu comentário exagerado. "Gratidão". Aproveito para dizer-lhe que já escrevi sobre a calçada
    portuguesa com direito a fotos.

    https://conversasdomano.blogspot.com.br/2016/12/a-baixa-de-lisboa.html

    E que A Leiteira do Vermeer já se encontra na fila de espera lá na Redação (rsrs)
    Bom final de semana!

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