Johann Joachinm Meissner - Arlequim dançando com Colombina - 1744 |
Heraldo Palmeira
O
celular tocou na segunda-feira de Carnaval ali ao redor da hora do almoço.
Atendi modorrento e imediatamente reconheci do outro lado da linha a voz de um
grande amigo que vive em
Natal. Daqueles que bem poderiam ter sido irmão de sangue. E
ouvi dele:
– Mano véio, tô ligando pra dizer que o
véio Toinho carimbou o passaporte para a grande viagem.
Apesar
da dor, não houve o choque do inesperado pois Toinho vinha toureando as
sequelas de um AVC há alguns meses. E como espécie de último conforto, morreu
dormindo em pleno
Carnaval , como cabe a todo arlequim. Conseguimos manter o tom
de brincadeira e chistes que cercam todas as nossas conversas. Esse amigo
acompanhou de perto a minha dor pela morte de minha mãe e entendíamos perfeitamente
o momento triste que era dele agora, pela perda do pai.
Toinho
Barbeiro era um oficial graduado da profissão que trazia no nome, daqueles que
conheciam todos os segredos do ofício. Iniciou a jornada aos 17 anos e
trabalhou outros 67 operando com maestria pentes, tesouras e navalhas. Cuidou
das principais cabeças coroadas do Rio Grande Norte, onde tinha freguesia fiel
de políticos, empresários e outras gentes que lhe queriam bem acima de tudo.
Seu
salão virou ponto de encontro para conversas imprescindíveis – daquelas onde se
tem a inebriante certeza de mudar o mundo –, até porque as portas estavam
abertas de domingo a domingo. Homem de extrema elegância, acostumado a ouvir
confidências, ensinou o ouvido a nunca confiar na língua.
Acho
que manter o tom alegre no telefonema foi nossa maneira de homenagear Toinho
Barbeiro, um desses ícones populares que somem numa espécie de perda total
porque o mercado não preparou peças para reposição à altura da original.
Homem
raro, que respeitava uma teoria simples e direta: se precisava comer todos os
dias, deveria, por isso, trabalhar todos os dias. Aparentado dos beija-flores,
soube envelhecer sem perder pela estrada o menino que iniciou a história.
O velho
Toinho deixou todos os fios definitivamente cortados, sem qualquer detalhe em
desacordo. Ficaram as deliciosas lembranças da argúcia, do sorriso maroto, da
suavidade, da sabedoria, da alegria constante e dos seus movimentos ao redor
das cabeças dos clientes, como uma grande dança existencial de um bailarino
ímpar.
Desliguei
o telefone e restou um sossego espalhado pela minha sala, como o silêncio de
uma música bonita que acabou de tocar. Por sorte, está gravada em sulcos
profundos e vou poder ouvir outras vezes. E outras. Enquanto houver memória,
haverá Toinho Barbeiro. Um sujeito do tipo barba, cabelo e bigode que não
deixava por menos.
(*) Dedicado a Marcus
Guedes, o homem do outro lado da linha.
Que texto lindo, Heraldo!
ResponderExcluirA maneira dos quase irmãos de sangue conversarem com a dor e a descriçao do pai e do amigo.
Por que as pessoas do nordeste pra cima escrevem tão bonito?
Obrigada.
Até mais.
Ana,
ExcluirObrigado! O "escrever bonito" é uma generosidade sua. Posso dizer que tive a sorte de ser um menino do interior, que me acostumei a contemplar o céu e as paisagens da natureza. Pode ser que isso tenha me ensinado a buscar palavras e mais palavras, que permaneceram por perto quando resolvi gastar a tinta azul da minha Bic. Abraço.
1)Belo texto. Explana uma perda com a beleza de palavras bem construídas.
ResponderExcluir2)O parágrafo "Homem raro..." me fez lembrar o Buda: "Um dia sem trabalho, um dia sem comida".
3)Na cidade de Goianinha, RN, tem o time Palmeira, verde e branco amado.Em SP é no plural "Palmeiras", os potiguares fizeram então no singular, "Palmeira", por ser - é claro - um povo singular. O estádio é o Nazarenão, com capacidade para 7 mil torcedores.
4) Blog do Mano tb é esporte !
Obrigado, caro Antonio.
ExcluirAntonio, recebi hoje, do Gurdjieff, SP, para meditar:
ExcluirMEDITAÇÃO DIÁRIA
Se um homem fala ou age com mau pensamento, a dor e o sofrimento o seguirão, como as rodas seguem as pegadas do boi que arrasta a carroça.
Buda
Abração
Ofelia
1) Oi Ofélia, o Gurdjieff peregrinou por terras budistas himalaias !
Excluir2)Este citado é o primeiro versículo do livro "Dhammapada", tem várias edições no Brasil e na web tb.
3)Dhammapada = Caminho do Meio.
Olha!, o Caminho do Meio veio a mim, Antonio.
ExcluirQue beleza! Deve querer dizer alguma coisa. O que é, não sei.
Quem sabe me diz para segui-lo, o Dhammapada?
Sou muito pouco Caminho do Meio, acho.
Até
Ofelia
"Enquanto houver memória, haverá Toinho Barbeiro"...
ResponderExcluirE enquanto a memória contar tão bem do amigo que "carimbou o passaporte". Tenho certeza de que todos que conheceram seu amigo, e os que não o conheceram mas lerem o seu belo post ajudarão que ele permaneça, como dizem os mexicanos, na "terra dos lembrados" lá do outro lado.
Caro Mano,
ExcluirSim, o "Véio Toinho" é presença viva na "terra dos lembrados". Afinal, não morre um sujeito que viveu para encantar.
"Um sujeito que viveu para encantar..."
ExcluirQue bonito, Heraldo. Que bonito.
Também gostei muito da 'terra dos lembrados'.
Abs, fica em paz.
Ofelia
E adorei a foto. Seu Toinho estava elegante, 'pruminho', como diz uma amiga de infância.
ExcluirBela camisa a dele. Empunhava bem a tesoura. Gostei.
Você é novo, Marcus Guedes. Também ficou bem na foto.
Parece que também conhecido o toinho.
ResponderExcluirSuzy,
ExcluirFico feliz, sinal de que que devo ter conseguido contar um pedacinho da história dele com fidelidade.
Meu querido Mano Véio,
ResponderExcluirAs lágrimas que não consegui verter naquela segunda-feira de Carnaval, em 23.02.2009, agora brindaram o meu rosto de forma torrencial, tal qual a chuva que caia na hora em que papai carimbou o passaporte e empreendeu a sua Grande Viagem.
Há oito anos, portanto, vivo a doce saudade daquele "sorriso maroto", como você bem colocou nessa sua tela pintada com palavras!
E à essa saudade renovada ao nascer de cada dia, adiciono, agora, essa belíssima oração que a ele você dedicou!
Somente homens felizes como nós, que têm nos seus velhos a Luz a iluminar os seus caminhos, sabem cultivar o valor de ter conhecido e convivido com esses Seres Iluminados que Deus nos concedeu como Pais - os saudosos Nemesio e Toinha Palmeira e o velho Toinho Guedes e dona Socorro, a costureira - que, embora já tenham partido ao encontro de Deus, ainda continuam (com certeza) a nos orientar.
Grato, querido irmão, por essa tocante lembrança do meu querido e saudoso Toinho!
Xêro Grande.
Marcus Guedes, que não conheço. Aliás, não conheço ninguém aqui.
ExcluirNo seu texto para o Heraldo, você comenta que não conseguiu chorar na segunda de carnaval, quando talvez o choro fosse esperado.
Acontece e aconteceu também comigo, não chorar quando deveria. Acho que é o impacto da situação. No dia mesmo da morte do meu pai, providenciei almoço para as visitas e eu passei quase o dia todo sem comer. Fui tomar sopinha no final do dia. Choro convulso, não houve. Lágrimas sim.
Em compensação, o que chorei durante o ano, após missa e que tais. Desabei. Chorava abraçando roupas dele, uma coisa. Às vezes chorava até dormir.
Estranho fenômeno.
Mano Véio,
ExcluirNós somos presença perene na vida um do outro. Conhecemos há mais de 40 anos nossas histórias e a desses velhos extraordinários que nos trouxeram ao mundo. Lembrá-los será sempre viver novamente partes fundamentais das nossas próprias existências. Xêro.
Oi Heraldo,
ResponderExcluirli seu amigo Marcus Guedes algumas vezes, escrevendo pra você.
Escrevo pra te dizer que - além de ter gostado uma vez mais do seu texto, sempre tão interessante e bem escrito - ainda que fale de morte, seu amigo Toinho foi um justo. É o que dizem, só os justos morrem dormindo. Meu pai foi um deles.
Dizem que a (V)Wilma, que foi casada com Ziraldo, também morreu assim. Eu a vi uma única vez, com ele, no baile dos jornalistas. Ziraldo usava um terno cor de burro quando foge.
Por que eu guardo essas coisas? A cabeça estava com os fios encapados. Nenhum deles cortado como os fios de cabelo dos clientes do seu amigo Toinho.
Até a próxima se Dio quiser
Ofelia
Estimada Ofélia,
ExcluirFiquei sensibilizado com as suas observações, sobretudo pela citação do meu saudoso e querido pai, que o meu irmão Heraldo conheceu e a ele dedicou especial afeto e carinho.
Eu não conheci o Mestre Nemésio, pai dele, mas tive a abençoada alegria de ter conhecido a "véia Toinha", mãe dele, um figura humana singular, dona de uma visão de mundo e de vida e de um amor sem limites para com os filhos e seus "achegados" (como eu me sentia) muito maior do que o seu coração!
O que escrevi, assim como você também expressou, é verdade: não consegui chorar com as viagens de papai (em 23.02.2009) e de mamãe (essa ocorrida no último dia 13 de dezembro do ano passado, aos 91 anos, da mesma forma como se deu com ele - dormindo).
Talvez porque eu encare a morte como uma passagem natural, extensão da vida terrena (não professo a fé espírita, mas sou um ferrenho espiritualista). Como posso chorar com a perda de um pai com quem convivi 54 anos e uma mãe que me embalou por 61 anos?
Não, eu tenho é de agradecer a Deus por me dar a alegria de levar os meus velhos à sua Última Morada!! Eles é que não tinham o direito de fazer isso comigo, pois a regra é clara: os que vêm primeiro, devem partir primeiro!
Depois, em alguns momentos de recorrente saudade, deixo os meus olhos serem lavados por algumas lágrimas furtivas, de alegria, é claro, porque essas lembranças renovam as presenças deles em minha vida.
Deixo gravado aqui, portanto, o meu agradecimento pelas suas gentis e solidárias observações. Pena que você não tenha conhecido o "Véio Toinho Barbeiro" e que ele não tenha cuidado das suas belas "madeixas", como fez comigo até dias antes de ter o AVC que o tirou da sua Oficina de Trabalho.
Ah, e se você quiser conhecer seu Toinho, ele está no meu Facebook, numa foto em que está, exatamente, cortando o meu cabelo.
Saúde e Paz de Espírito para você e os seus.
Ofelia,
ExcluirSim, Toinho foi um justo em tudo e por tudo. Não sei se isso garantiu a ele o direito de morrer dormindo, um conforto divino que todos gostariam de merecer.
Estive algumas vezes na casa do Ziraldo, quando ele fez a capa original do meu CD. Vilma estava sempre lá, gentil e suave. Até a próxima.
Palmeira,
ResponderExcluirBela e tocante homenagem que prestas ao Toinho.
Um texto bem feito, sem ser piegas, porém comovente.
Meu aplauso e reverência ao artigo, Palmeira, evidenciando que és uma pessoa de nobres sentimentos, reconhecida e solidária.
Um abraço.
Saúde e paz.
Bendl,
ResponderExcluirTive a sorte de entender, desde muito pequeno, que a vida se constrói pelos bons exemplos, que inspiram. E sorte maior por ter nascido em um tempo onde muitas pessoas viviam dando bons exemplos. Por isso, muito mais do que uma homenagem, estive apenas lembrando tantas coisas boas que Toinho Barbeiro legou. Abraço.
Mestre Heraldo,
ResponderExcluirSem palavras diante das suas pretinhas e dos nossos velhos tão amados e lembrados, uso emprestadas as do Borges:
Os Justos
Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.
Jorge Luis Borges, in "A Cifra"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Caríssimo,
ExcluirContra-atracar com esse Borges é covardia.
Concordo, Heraldo. Concordo. Moacir sempre desequilibra.
ExcluirSe basta ter apenas algumas dessas 'qualidades', sou um justo. Uma 'justa' parece coisa de polícia, não fica nem bem. Não era o Kid Morengueira que cantava "a justa já vem..."?
Sou justa só de acarinhar animais adormecidos. O que inclui também os animais humanos.
Vai aí o samba de breque em que Moreira da Silva canta "a 'Justa' já vem..."
Excluirhttps://www.youtube.com/watch?v=fD8Hh4CFPkk
Educado, 'malandro', carinhoso, engraçado, Moreira da Silva me fez rir quando o entrevistei. Contou que um músico, que iria acompanhá-lo, disse que nunca tinha acompanhado 'conversa'.
Que Deus o tenha em bom lugar.
Aqui, no meu pequenino canto a beira do Trairí abençoado por Santa Rita eu não sei o que dizer. E nem tenho nada mesmo pra dizer, uma vez que é covardia lidar com textos que de tão brilhantes se tornam simples e, por isso mesmo, nos tocam com tanta leveza a ponto de querer encher os olhos d´água. O que um pobre coitado como eu pode dizer de um texto escrito por Heraldo e corroborado por Marcos? É, certamente, como se diz na beira do Acauã: homi, bata palma!!!
ResponderExcluirMestre Rose,
ExcluirNão esqueça que você está na memória da minha formação, seu besta!
Amigo, tuas crônicas da vida cotidiana são como néctares que nós, pequenos colibris, podemos apreciar de pouquinho ...
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