Lobos (imagem rosebudpr.io) |
Heraldo
Palmeira
Quando minha mãe caminhava para
os sessenta anos, ficaram mais frequentes seus telefonemas noticiando a morte
de algum amigo da família, de um parente, de uma comadre, de alguém de quem
gostávamos... Ela buscava, era natural, dividir comigo tristezas comuns, ainda
mais porque vivíamos distantes mais de dois mil e quinhentos quilômetros.
Comecei a compreender aquilo como
uma espécie de esvaziamento natural do mundo e da vida que ela construíra. Até
o ponto de, já octogenária e uma das últimas remanescentes do seu grupo, ter partido
nos deixando com a impressão de que poderia ter vivido um pouco mais. Ao que
parece, não lhe interessava permanecer naquele cenário de desmanche afetivo
pela perda de tantos a quem queria bem.
Hoje, o encanto singelo dos
telefones de baquelita foi substituído pela aridez instantânea do mundo
digital, que matou o tuc tuc tuc eletrônico gerado pelo movimento de retorno do
disco dos números ao ponto original de discagem. Os amigos se espalharam por
cidades diferentes e distantes, cumprindo os êxodos necessários para garantir a
sobrevivência. Celulares, tabletes, computadores e internet suprem, na medida
do possível, a falta da convivência cotidiana.
De repente, aquela mensagem de notificação
de caixa postal cheia aparece uma, duas, diversas vezes para um mesmo amigo. É a
fagulha que aperta o coração, que acende um sinal de alerta. E não há sossego até
que tudo fique esclarecido – simples correria cotidiana, férias, convalescença,
viagem ou, pior, a saída definitiva de cena.
Esse é o jeito moderno de nos dar
conta do avanço do tempo. Não mais cultivamos os retratos amarelados do passado
em velhos álbuns e já não temos a companhia daqueles parentes que, diante das
imagens surradas, explicavam quem era quem no jogo da vida.
O passar do tempo vai abrandando nossos
movimentos de busca por “esse tal de futuro que nunca chega”, como diz um amigo
com impaciência e precisão cirúrgicas. De repente, velhos lobos vão se
agrupando naturalmente em matilhas guiadas por interesses comuns. Fortalecendo
afetos. Aceitando emergências alheias. Perdoando ausências. Aliviando incompreensões.
Dividindo medos e angústias. Amparando inseguranças e perdas.
A matilha é sábia. Sabe tirar da
prática a prática de viver com qualidade, que os sábios modernos transformaram
em conceito que não sabem praticar.
Sabe , Mestre Heraldo? Antes tínhamos passado e futuro. Quando chegamos à terceira idade, nossos pais cruzam a linha de chegada e é preciso encarar de frente a nossa finitude, pois já não há outra a geração entre nós e o Rubicão.
ResponderExcluirComo você diz magistralmente:
" A falta deles vai escurecendo o cenário que já não conseguimos enxergar por inteiro. Cada um que se vai deixa a iluminação cênica da vida incompleta, é uma lâmpada que queima no grid de luz e viramos protagonistas desse esmaecimento das nossas vidas".
É verdade. E, então, viramos lobos saudosistas nas léguas tiranas de áridas estepes, das quais, segundo o meu velho,
" tiraram as placas de sinalização".
Já não temos aquela impressão de que o futuro será em luminoso tecnicolor e parece que nos perdemos
das nossas origens, das metas , dos valores, da nossa formação moral e filosófica, do rumo e da razão da nossa caminhada. É como se já não nos lembrássemos que estamos vindo e indo e de como é bom esse movimento. Perdemos a noção de continuidade, de sucessibilidade, de que somos muito mais do que nós mesmos, e, em consequência, o que nos resta é um enorme presente cada vez mais técnico e insípido e o tal do futuro que nunca chega.Perdemos a esperança.
Porém....
Os seus textos, a sua bic azul, nos ajudam a colocar em perspectiva esse trio ontem-hoje-manhã, e a botar ordem nos nossos sonhos que talvez nunca venham a ser pra valer neste mundo, no nosso tempo de vida, mas que vale a pena perseguir.
Suas palavras são um lembrete de que não estamos sozinhos e apenas em trânsito, num voo cego de múltiplas conexões sem sentido.De que ainda vale a pena desembarcar e formar matilhas.De que precisamos nos reconhecer nos outros e, muito principalmente , no mínimo que fazemos.
E,last but not least, de que temos mais é que ajudar nossos filhos a formar as futuras gerações de modestíssimos dom quixotinhos tupiniquins. Para que um dia, outros lobos grisalhos possam continuar rosnando e olhando as estrelas.
Abraço.
Mano Heraldo,
ResponderExcluirÉ isso aí!
Aos poucos, a matilha vai sendo diminuída: velhos lobos carimbam o passaporte e empreendem a Grande Viagem.
E para aqueles outros lobos da mesma matilha, quem ainda resistem, fica o vazio da partida, a perda irrecuperável do amor, da amizade, do carinho que marcam a passagem de todos nós por essas pradarias modernas, mundo Hi-Tec.
Vinicius, meu companheiro de caminhadas desde muito tempo, diante da decadencia fisica do seu pai, que deve ter hoje uns noventa e poucos, me disse outro dia que temos que bater perna pelo mundo enquanto nossas pernas ainda estao inteiras, ja que a maior parte dos amigos de nossa idade nao da mais conta e desistiu: algum lobo grisalho ainda tem que sair para uivar para a lua!
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