A Eurocopa prendeu a atenção de todos
que gostamos de futebol. A taça foi parar em Portugal, depois de um conjunto de
jogos mais cansativos do que emocionantes, intermináveis em prorrogações e
pênaltis, cujos maiores destaques foram o incerto ponto final de Lionel Messi
na seleção argentina e a alegre surpresa dos islandeses.
Diante desse quadro onde superatletas
se aglomeram quase sempre em apenas 1/3 do campo para trocar botinadas e
maltratar a bola, reforço minha quase certeza de que acabar com o impedimento
seria um golpe mortal na bisonhice que domina há décadas os campos gramados.
Imagino que o jogo da bola sem
impedimento espalharia obrigatoriamente os jogadores pelo campo inteiro,
geraria espaços livres para a bola correr, para os craques desfilarem seus
talentos sem apanhar a cada dois passos. Poderia ser boa tática para esse jogo
truncado voltar a ser espetáculo.
Contaminado pela força do futebol,
meu pensamento voou para tempos bem mais lúdicos. Éramos 90 milhões de um
Brasil provinciano. Natal passava pouco de uma deliciosa roça iluminada
naqueles idos tranquilos de 1970. Televisão era coisa rara, só para os ricos.
Restava o consolo de alguns poucos aparelhos nas prateleiras de lojas
tradicionais da cidade. Em preto e branco.
Eu morava em um bairro bucólico.
Pouco mais adiante, havia um ginásio de esportes onde eram realizados os
grandes shows da época, e onde vi, extasiado, o Roberto Carlos da jovem guarda
quase ao alcance da mão, chegando para uma passagem de som. Cercando minha
cidadela, duas famílias italianas viviam em dois sobrados idênticos, nas
esquinas da mesma calçada.
Antes da Copa, sofremos o drama e a
dor de Tostão. Felizmente, o susto passou, ele não ficou cego como garantiam
algumas vozes agourentas, e continuou cabeceando e jogando seu futebol de
mestre.
Nos dias de jogos do Brasil, a
mobilização era muito diferente dessas que fazemos hoje. Mas a cidade parava,
envolta por aquele silêncio nervoso quebrado apenas pelos narradores do rádio,
ouvidos a todo volume. Ali eu “conheci” Jorge Cury e Waldyr Amaral e me apaixonei
de vez por aquelas vozes que simplesmente conseguiam me transportar para o
estádio El Jalisco, em Guadalajara, a arena dos Canarinhos.
As casas dos ricos que tinham
televisão juntavam pequenas multidões extasiadas com aquela maravilha
tecnológica ainda tratada como novidade. Na verdade, só se enxergava uma tela
iluminada de chuviscos e sombras e tudo terminava se resumindo à voz de Walter
Abraão, narrador da saudosa TV Tupi.
Acostumado com os nomes peculiares
dos craques da província – Zé Ireno, Bagadão, Alberi, Véscio, Burunga,
Valdomiro, Pedrinho, Izulamar, Piaba, Preta, Josenildo e Esquerdinha –, eu
ficava extasiado ao ouvir os locutores berrando Gordon Banks, Bobby Moore,
Bobby Charlton, Franz Beckenbauer, Gerd Müller, Wolfgang Overath, Teófilo
Cubillas, Enrico Albertosi, Ladislao Mazurkiewicz – esse era para torar
qualquer língua – como nossos perigosos inimigos. Para acabar com a raça deles,
nosso trio de ouro Gérson, Tostão e o rei Pelé estava a postos e bem disfarçava
armas secretas como Rivelino, Jairzinho e Clodoaldo.
A imagem da Copa de 70 que permanece
até hoje no meu coração é definitiva e vai além do capitão Carlos Alberto
erguendo a Jules Rimet: nas ruas, carros em cortejo espalhando buzinas e gritos
eufóricos; no alpendre da nossa casa, meu pai sentado numa confortável cadeira
de balanço austríaca com o radinho de pilha grudado no ouvido, magrinho, já
consumido pelo câncer, chorando e saudando os passantes pela campanha
superlativa e pelos 4x1 em cima da Itália dos nossos vizinhos de esquinas agora
silenciosas.
Meu velho amado, patriota convicto,
vivia sua última grande conquista. Ele me deixou morto de saudade menos de
quatro meses depois. Tem sido difícil para mim, até hoje, administrar a dor
daquele moleque de dez anos perdendo o craque do seu time. Pelo menos, deu
tempo de aprender que homem também chora. Em qualquer tempo.
Excelente crônica, inigualável alegria daquele tempo. Eu morava no Gama, cidade satélite do DF, mas para não ouvir no rádio, fui para o Plano Piloto, onde morava meu primo (já falecido) em uma república de pernambucanos na W3, mas não ficamos em casa, fomos para um bar, torcer e assim foram momentos inesquecíveis...
ResponderExcluirMestre Heraldo,
ResponderExcluirOutro texto irretocável. Sim , os homens tanto riem como choram e isso é muito bom. Há dores e perdas sem curas, e saudades eternas que a gente só alivia com lágrimas. Noto, na sua crônica, mais uma finalização primorosa e comovente , que dá ao texto nuances que não tinha no seu começo, profundidade, uma nova e inesperada dimensão.Parabéns, mande mais e um abraço.
Ótimo Heraldo... Eu que sou um pouco mais jovem, porém já refém da tecnologia, me emocionei com seu relato. Lembrou a minha infância já nos anos 80. Grande abraço.
ResponderExcluirHeraldo, meu velho, voltei contido no tempo. Me fez lembrar daquele plástico com faixas verticais coloridas que meu pai comprou para disfarçar o PB da nossa tv marca Manchester. Saudade não tem idade. Abraços.
ResponderExcluirGrande Heraldo! Muito bom. Apesar de não ter vivido essa época, me deu vontade de viver estes momentos. Infelizmente na atual época, o que prevalece é a frieza e distanciamento entre as pessoas.
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