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30/07/2016

Boa-Noite

imagem yosh3000
Heraldo Palmeira

As figuras populares e anônimas que vivem nas cidades me chamam a atenção. Embora familiares, delas pouco se sabe. Estão o tempo todo ali em seus pontos territoriais, fazendo parte da vida de todos, quase sempre sem serem notadas. Formam uma presença forjada em ausências.

Aquela figura miúda é parte integrante do cenário, postada ao lado da entrada de serviço de um restaurante mineiro encrustado numa das alamedas dos Jardins. Falante, entrosada com todos, sempre com um isopor carregado com comestíveis postado no chão e uma garrafa térmica com um café famoso nas redondezas, vive cercada de pessoas, conversas e sorrisos. Manobristas, garçons e outros funcionários da casa são fregueses de carteirinha. Passantes como eu, também.

Certo dia, depois de uma daquelas chuvas ligeiras de Sampa, uma mulher caiu na calçada depois de escorregar numa tampa de bueiro. Prontamente, a figura miúda entrou em cena para socorrer e ajudar a outra a se recompor. Providenciou cadeira, conforto moral, guardou a bolsa, perguntou a quem da família deveria chamar e providenciou o táxi.

Guardo perguntas a respeito daquela figura miúda. Quem é e como vive a mulher pobre, negra, de certa idade, com todas as marcas de luta pela vida espalhada no corpo musculoso, que se veste com capricho em roupas para esportistas, sempre alegre, comunicativa?

A mente ágil garante respostas rápidas e agudas às brincadeiras provocativas. Todos a conhecem simplesmente por Boa-Noite, já que ela distribui esse cumprimento a qualquer hora do dia.

A mim, concedeu a senha da proximidade, trocar a hora do dia no cumprimento: boa-noite durante o dia, bom-dia durante a noite. Sem que eu saiba por que cargas d’água, sempre que arrisco um boa-tarde, Boa-Noite responde com um muxoxo engraçado – nunca ouvi dela qualquer reverência à tarde, nem mesmo àquelas que terminam em dourado.

De repente, me dei conta de que fazia algum tempo que eu não via nossa personagem. Resolvi perguntar aos manobristas, dois senhores grisalhos que emolduram a entrada do restaurante com extrema simpatia, e com quem troco chistes todos os dias quando passo na calçada.

Ficamos em silêncio, lembrando de Boa-Noite. Ela simplesmente não veio certo dia e em nenhum mais depois daquele. Ninguém sabe nada a respeito dela, onde mora, se tem família. Fazia parte do cenário, acomodada naquele cantinho ao lado do portão de serviço do restaurante. Quando e como chegou, desde quando estava ali ninguém sabia.

Senti no coração um ar de boa-noite definitivo e caminhei até em casa com a estranha sensação de despedida sem direito a adeus. Sem bom-dia. Sem boa-tarde. Sem Boa-Noite.


11 comentários:

  1. Francisco Bendl30/07/2016, 10:46

    Quando escrevi a crônica a respeito das ruas de Porto Alegre, confesso que cheguei a imaginar tecer comentários sobre as pessoas que conduzi no táxi.

    Mas foram muitas, centenas, e como cada uma delas encerrava dentro de si um universo à parte, claro que desisti desta empreitada pela impossibilidade de pintar um quadro que sequer se aproximasse da realidade.

    Pois Heraldo Palmeira e seu talento me mostraram a sensibilidade necessária para se emoldurar uma pintura de texto sobre as pessoas, sobre nós, transeuntes, pedestres, que perambulamos pelas calçadas das cidades anonimamente, sem que se preocupem conosco, sem se importarem conosco, como se fôssemos parte do cimento e asfalto por onde pisamos.

    O Heraldo conseguiu que eu visse diferente a perspectiva que a maioria das vezes eu aceitava como inevitável.

    Um abraço, Heraldo.
    Saúde e Paz!

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  2. 1)Belo texto.

    2) Lembrei então da minha querida PL - Perfeita Liberdade, linhagem japonesa fundada por um monge zen-budista no século passado.

    3) A PL nos diz que essas pessoas anônimas que passam pela nossa vida, tb são nossos antepassados e devemos reverenciar a todos (as) não sabemos explicar os vínculos, as afinidades, mas existem fios energéticos sutis que nos unem a estes seres.

    3) E por falar em PL, no próximo dia 01/08 é a grande data festiva anual:

    4) O fundador estava preso pelo regime militarista japonês, pois, a PL só fala em PAZ, e o governo queria guerra. Já com a saúde debilitada, pela vida na prisão, perguntaram ao patriarca como fariam para lembrar de sua morte que estava próxima.

    5) Então ele respondeu: "queimem fogos de artifício, muita alegria em todos".(o fundador morreu na prisão).

    6) Com o término da segunda guerra mundial a PL voltou a existir oficialmente e anualmente se faz a queima de fogos no Japão, no dia primeiro de agosto.

    7) Mas em todo o mundo, onde tem PL nós agradecemos ao fundador ...

    8) tb conhecida pelo nome internacional Perfect Liberty.

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  3. Heraldo, vim aqui num pé pra voltar no outro, queria me distrair.

    Gostei muito do seu texto. Gostei demais dos que li, acho que dois ou três.

    Não vou tecer considerações pois vou sair pra comprar um remédio e comer alguma coisa.

    Se der, volto e comento mais. Se não der, aceite o meu gostar do que escreve. É muito bom.

    Ofelia

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    1. Heraldo Palmeira30/07/2016, 15:53

      Obrigado ao Bendl, Antonio e Ofelia pelas palavras. É sempre bom para quem escreve perceber que os textos encontram eco.

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  4. Samara Rodrigues Eloi30/07/2016, 16:40

    Lindo texto Heraldo!! De uma sensibilidade sutil... De verdade quantas " Boa noite" nao cruzamos, e as vezes nem retribuimos... Nos esquecendo da chance fatal de ser de uma despexida!! Ameiii

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  5. Grato Heraldo pela sensibilidade. Tive a sensação de tratar-se de alguém ligada a mim, por quem nutria uma afeição peculiar.
    Valeu, parabéns!

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  6. Moacir Pimentel31/07/2016, 06:51

    Bom dia, Mestre Heraldo! Que alegria poder ler suas novas pretinhas nessa manhã ensolarada de domingo! De resto acho que a Boa Noite nunca pediu a ninguém licença nem desculpas por existir e que não queria ser notada. Mas que muitas Boas Tardes sorridentes ela lhe daria se pudesse ler a gentileza e maestria com as quais é lembrada por aqui.
    Abraço.

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  7. Heraldo, você é um delicioso bandido de marca maior! Só mesmo uma pessoa com o seu carater é capaz de nos levar a estar na cena! E, estando na cena por você vivida e relatada com tamanha e magistral simplicidade, me reconheço da Boa-noite, como me reconheço em você-observador sensível e cristalino. E adoro ler o que você escreve. Sua fala dura e exata, quando fala de política. E sua fala mansa e bem temperada, quando fala de gente! Meus parabéns.

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  8. Heraldão, meu velho indivisível!

    Li e reli sua belíssima crônica, sorvendo cada palavra e navegando em memórias de outros texto de rara qualidade como seu - crônicas de Neruda, Galeano, Drummond, Córtazar...

    Gratíssimo por compartilhar seu olhar sensível, amigo!

    Já dizia o grande Manduka, letrista e compositor, rebento do poeta Thiago de Mello:

    "Por isso somos quem somos
    estrelas de um só momento,
    mas cujo brilho ameaça
    a ordem do firmamento".

    Daqui de Floripa-Ilha te mando um muiraquitã de afeto, e saudades!

    Samuca

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  9. Mais um ótimo texto da lavra sempre fértil de Heraldo. A leitura me fez lembrar das dezenas de personagens enigmáticas, parecidas com Boa-Noite, que habitavam as ruas de Natal.

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  10. Parabéns amigo Heraldo, que texto simples e marcante.
    Tenha uma Boa Noite.
    Abraços

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