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07/07/2016

O Senhor Ravi



A Cerimônia Sagrada no Dashashwamedh (imagem Zukunftslabor.org)


Moacir Pimentel         

E então, na tarde do meu quarto dia em Varanasi, e ainda fugindo dos ghats da morte, eu visitei uma "fábrica" de “curd”, o yogurte indiano, também chamado de “dahi”, que eu tanto apreciava comer com cereais e frutas secas e canela. Em uma casa caindo aos pedaços e sobre um chão de terra batida, mais ou menos uns cinquenta fogos estavam acesos e sobre eles cozinhavam, lentamente, em panelas rasas de barro com mais ou menos dois palmos e meio de diâmetro, o leite  a ser coagulado. Homens se encarregavam de abanar as chamas, agachados pelo chão, e fazia um calor tão violento que derretiam de suor. Mas jamais comi um melhor curd antes e depois daquele. Na realidade, as  precárias condições de higiene ao meu redor, tiveram como efeito a redução drástica do meu interminááável apetite e  eu comera muito frugalmente nos primeiros dias que passei em Varanasi. Lembro que não muito mais além de frutas como bananas e mangas, de  curd, de ovos cozidos - e comprados ainda dentro das cascas! - e do pão indiano chamado de chapati.

Perambulando pelas tortas vielas, sem nada para fazer depois da visita técnica, eu me deparei com um som estranho saindo de uma porta mais baixa do que a que a minha cabeça. Havia uma placa sobre ela: Aulas de Cítara. Lembrei do George Harrison aprendendo a tocar cítara na Índia  e das canções nas quais ele utilizara o novo som e de como eu, um beatlemaníaco, adorara o som do instrumento. Lembrei que o professor do George havia sido um famoso indiano. Então me curvei desci alguns degraus e entrei numa pequena sala ao rés do chão. Sentado num banco baixo, um senhor de muito boa  aparência e  de barbas branca, tocava suavemente uma cítara para dois jovens indianos e uma senhora ocidental sentados no chão atapetado. Finda a música, a qual todos ouviram mediunizados, vieram os salamaleques e apresentações e eu tive o prazer de conhecer o senhor Ravi, um brâmane  da gema. Os alunos o chamavam respeitosamente de Raviji - o sufixo que poderia ser traduzido livremente como Mestre Ravi - e ele falava - maravilha! - um excelente inglês.

Como sempre as perguntas se derramaram com uma torrente da boca do meu novo conhecido, em tão rápida sucessão, que eu mal tinha chance de responder e, muito menos, de elaborar as respostas que ia lhe dando. Era sempre esse o caminho das conversas que eu tinha com a maioria dos indianos com os quais eu interagi na Índia, a  mesma linha de questionamento  curiosa, amigável e direta. Na qual, depois de um tempo, a conversa passava a ser feita na linguagem universal que eu compartilhava com todos os homens - e algumas mulheres - em todo o mundo: o futebol! Antigamente quem era "O Cara " era o Pelé!

Eu e Raviji acertamos uma meia dúzia de aulas e o meu objetivo era tocar... adivinha ?.Norwegian Wood! Porém, mais do que de cítara, Raviji me deu lições de vida, de hospitalidade e me fez  ver Varanasi com os seus olhos. Um gentil homem.

O fato é que graças à sua simpatia eu saí do climão Memento Mori e aderi ao Carpem Diem. Naquele momento, nada poderia ter-me feito mais bem do que conviver com uma  grande família indiana que agia exatamente como a minha: avós e filhos e netos e amigos e aderentes à vontade uns com os outros, barulhentos, compartilhando a normalidade da geografia cotidiana com muito afeto. Até hoje me pergunto os motivos que fizeram aquele senhor tão reservado, já na nossa segunda aula de cítara, ter me convidado a atravessar o limiar sagrado que dividia a sua  escola de música e o seu lar.  Era como se o fato de eu ser brasileiro, de ter vindo de um país pobre nos aproximasse, e como se por ter vindo  de terras tão mais distantes do que as dos demais turistas - australianos, ingleses, alemães, franceses e italianos na sua maioria - para conhecer  seu país, valorizasse a minha jornada e o fizesse sentir que deveria estender-me a mão. 

Foi graças à dicas do meu professor e dos seus, que eu pude descobrir coisas pequenas de grande beleza escondidas pelas escadarias da cidade : como o templo nepalês de madeira esculpida no topo de uma íngreme escada e escondido por trás de uma imensa figueira,  as antiquíssimas esculturas eróticas em um outro,  a estátua da Mamãe Ganga na forma de uma figura feminina cavalgando um crocodilo no pequeno templo de mármore no Asi Ghat, o painel de mármore onde, esculpida em alto relevo está, em toda a sua beleza, a Mãe Índia.

Fui ver os banhos noturnos no Manmandir Ghat, construído por um marajá de Jaipur e onde os peregrinos pagavam promessas e deixavam oferendas ao deus da Lua. Me diverti no Templo dos Macacos, adorei a coleção de carros antigos no Forte, me maravilhei com o gigantesco Templo de Shiva e sua cobertura de ouro, e com um outro inclinado e parcialmente submerso no Ganges. Mas inesquecível mesmo foi o por do sol no Ghat que testemunha o abraço de dois rios: o Ganges e o Asi e, bem assim, o dia de paz que passei na cidadezinha de Sarnath, um importante local de peregrinação, a 10 quilômetros de Varanasi, rodeada por uma reserva florestal, onde, diz a lenda,  o Gautama Budha, no seu primeiro sermão após a iluminação, teria começado a ensinar as quatro verdades.

Finalmente e após muitas conversas com Raviji e seus familiares, enquanto compartilhávamos picantes refeições vegetarianas entre histórias e risadas e muita música, chegou a hora, para mim, de encarar os dois mais importantes ghats da cidade. O Raviji fez questão de acompanhar-me nessas visitas aos ghats fundamentais: o Dashashwamedh  famoso pelos festivais noturnos e o Manikarnika famoso pela cremações, que resumem  a criação e  a destruição.

O Dashashwamedh é um dos mais velhos e, sem dúvida, o mais espetacular dos ghats  de Varanasi, localizado bem perto do  Templo Vishwanath, à beira do rio.No seu nome, DA  significa dez,  ASHAWA significa cavalo  MEDH significa sacrifício. A mais conhecida das mitologias sobre o local afirma que nele o senhor Brahma sacrificou dez cavalos, a fim de abrir os caminhos para o regresso do senhor Shiva, que estivera uns tempos no exílio, nunca descobri  porquê.

Este ghat é famoso pelo “Agni Pooja” - um ritual religioso - que é realizado lá todas as noites por um grupo do jovens sacerdotes que, em trajes cor de laranja e  dedicados a servir ao Senhor Shiva, ao Rio Ganges e ao universo, celebram a cerimônia “Aarti”. Lembro que, naquela noite, um grupo de sadhus fumadores também estava presente às voltas com suas atividades religiosas heterodoxas.

Nas últimas horas da tarde o ghat já estava cheio, os peregrinos chegando em massa bem como os turistas. As pessoas assistiram ao rito de pé na plataforma, das ruas, sobre os telhados ou das janelas dos prédios próximos, dos barcos nos rios, ou sentados, como nós, nas escadarias que servem como arquibancadas, de onde a vista era muito boa. A música soava alta e estranha e a multidão cantava esperando que os homens santos iniciassem o ritual.

A cerimônia “Aarti“ foi celebrada em sete plataformas de madeira colocadas à beira do rio sob guirlandas de luzes e de flores. Em cada uma delas havia uma pequena mesa coberta com ricos panos de seda e brocado cor de açafrão e nelas eu podia ver os itens da Pooja, ou da oração: uma concha, incensos,  sinos, lenços, candelabros de mão feitos de latão, flores, potes de água, penas de pavão etc. Raviji me explicou que tais  itens eram muito sagrados na mitologia hindu.

Logo após o por do sol, milhares de velas foram  acesas em pequenas lâmpadas de barro na plataforma e em minúsculas vasilhas de lata decoradas com flores que foram lançadas no Ganges, de onde as chamas brilhavam  flutuando. Todo o ambiente foi iluminado pela luzes dessas velas  fixas e em movimento, compondo um visual impactante.
Quando os sete jovens sacerdotes começaram a tocar as suas conchas, nas suas respectivas plataformas e a Aarti começou, toda aquela gente cruzou as mãos em devoção  e a música tornou-se mais devocional. Durante todo o ritual, os sete homens repetiram exatamente os mesmos movimentos, inclusive essa reprodução vocal com as conchas, em staccato em primeiro lugar, e terminando com uma nota sustentada por muito tempo.

Em seguida, assisti uma dança repetitiva e lenta na qual eles giravam e iam avançando na direção ao rio e depois com movimentos idênticos, nas outras três direções. O passo seguinte foi a queima dos incensos em largos movimentos sincronizados das mãos direitas, a fumaça dançando em todas as direções, enquanto que,  com as mãos esquerdas, os sacerdotes tocavam os sinos de oração.

Foram acesos então os grandes queimadores de incenso, que pareciam candelabros de mão, e o seu cheiro doce tomou de assalto minhas narinas, enquanto uma a uma, as diferentes oferendas eram feitas às divindades, algumas dela espetaculares em cor e beleza, outras tão simples como pétalas de flores. Toda a oração - ou “pooja”-  durou umas duas horas. Eventualmente, eu escutava o som das conchas de novo e a dança ficava mais lenta e mais suave, enquanto o público se juntava ao canto, numa espécie de gemido íntimo, até que, finalmente, os homens santos se reuniram de frente para o rio, preparando-se para sua última veneração. Um grito saiu, gutural, profundo, dos cantores e da multidão, todos com as mãos para cima, para o ar, unidos em um último adeus ao sol e ao Ganges, aos deuses e ao universo e aquilo foi, literalmente, arrepiante.

5 comentários:

  1. MARCIO P ROCHA07/07/2016, 21:48

    Moacir,
    Mais um relato espetacular. Com ajuda da foto, a gente pode imaginar o que você viveu. O último parágrafo é 10.
    Parabéns!

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  2. Monica Silva08/07/2016, 08:50

    Moacir, quem vai voar é você😊, pois parece que esta incrível história está quase terminando. Talvez quem melhor explique um país seja seu povo. Na hospitalidade, o povo brasileiro dá show de bola. Mas gente com G maiúsculo existe em todo mundo como sua viagem tão bem demonstra.

    Por essa razão viajar é tão importante. Precisamos acreditar nas pessoas!

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  3. Flávia de Barros08/07/2016, 13:51

    Moacir,

    Que bonita a sua descrição do convívio com o professor de música. Pura espiritualidade. Ser espiritual para mim é mais importante do que ser religiosa. Porque apesar de não abrir mão da minha religião, sei que a espiritualidade está dentro da gente, é uma maneira de ser, de amar, aceitar e se relacionar com o mundo e as pessoas ao nosso redor. Ela é para quem já acordou, acredita em intuição, questiona tudo, vive aqui e agora, procura Deus em tudo, ouve, decide suas ações e assume as consequências. É como se a religião fosse aquela sopa que não queríamos tomar na infância e a espiritualidade fosse o alimento que se procura porque satisfaz. Que a paz e o amor universal continuem crescendo no seu coração!

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  4. Moacir Pimentel08/07/2016, 19:07

    Márcio,
    Aquela foi uma cerimônia especial.Jamais vi, em qualquer outra ocasião,f é que rivalize com a daquele povo.
    Mônica,
    Sim, nosso povo é caloroso e essa qualidade é reconhecida e valorizada por nove entre dez turistas. Na Índia, no entanto ,a hospitalidade tem a ver com a espiritualidade. Os hindus têm um mantra, retirado das antigas escrituras, que significa numa livre tradução que "o convidado é Deus".Eles cultuam a união com o convidado como uma maneira de se estar perto de Deus e essa prática tornou-se parte do código de conduta da sociedade hindu.Há rituais para a recepção dos hóspedes: a sala é iluminada e perfumada com essências e incensos, se não uma refeição , pelo menos frutas e doces e chai são oferecidos e com uma espécie de pasta vermelha feita com arroz - o símbolo do indivisível - eles pintam a testa do confuso hóspede antes de oferecer-lhe flores.Essa prática é tão arraigada que supera, inclusive, as regras rígidas da casta dos brâmanes - que era o caso do Raviji - sobre quem pode ou não cruzar o limiar dos lares deles ou dividir com eles uma refeição.Eu sou muito grato àquela família pela acolhida que deram a um perfeito estranho.
    Flávia,
    Namastê e amém!
    Obrigado a todos pela leitura e palavras tão boas

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  5. 1) Bela descrição da música e liturgia hindu, nessa região.

    2) Moacir é mestre em abrir os portões milenares da Índia... seu texto é para ler com os olhos e ouvir os sons da cerimônia !

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