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04/07/2016

As Ruas de Porto Alegre


Rua de Porto Alegre (foto Tribuna de Hoje)



Francisco Bendl      


As ruas da cidade de Porto Alegre se comunicam comigo. Elas me informam como será o dia.
                              
Assim como um salva-vidas que observa o mar e depois instala na guarita a bandeira que orientará as condições de banho para os veranistas, igualmente cedo pela manhã, às cinco horas, quando inicio o trabalho e os moradores da nossa capital em sua grande maioria estão dormindo, as avenidas, as ruas e as placas por onde transito me prenunciam o dia, que eu me preparo física e psicologicamente.
                              
Perto de sete horas, a José Bonifácio, como ligação importante entre os bairros Bom Fim e Menino Deus é o termômetro.
                              
A partir das sete e trinta da manhã, 
a Getúlio Vargas inicia a se agitar; 
a João Pessoa se torna frenética; 
a Érico Veríssimo engarrafa; 
a Independência grita por socorro através das buzinas dos carros; 
a Farrapos fica impaciente; 
a junção do túnel da Conceição com a rodoviária, Mauá, Castelo Branco e Júlio de Castilhos, foi o modelo para que Deus inspirasse os escritores da Bíblia, a Gênese, quando eles dizem que, no princípio, “era o caos”...; 
                              
Descer a Plínio em direção ao Centro e transitar pela 24 de Outubro e ingressar na Ramiro é frequentar um curso avançado de paciência ou perdê-la de vez; 

a Assis Brasil se torna uma incógnita, pois não há fórmula capaz de esclarecer como se andar nela e, a Benjamim Constant, entre a São Pedro e a Cristóvão, resgata o carma de motoristas espiritualistas. 
Quanto aos condutores que creem no Juízo Final será neste lugar o arrebatamento; 
a Bento Gonçalves do bairro Agronomia em direção ao Centro é a nossa esfinge viva que diz: “Decifra-me ou te devoro”!
                    
A Avenida Ipiranga dividida por riacho sujo, fedorento, pestilento (agora virou mania de alguns motoristas mais afoitos quererem andar pelo arroio, esquecendo-se que o carro não é submarino), é a maestrina de um desafinado trânsito, volumoso, barulhento e sem ritmo; 
o ápice da anarquia é o cruzamento desta importante artéria com a Salvador França, a perimetral – sério, perimetral (!?) -, uma legítima ode  à irritação, à fúria, ao infarto iminente.
                              
A Avenida Protásio Alves é um caso à parte, único, isolado. Duvido que qualquer piloto do Rali Paris/Dacar suportaria vir do Morro Santana à rodoviária às 8:30 da manhã e de qualquer dia porque às segundas e sextas nem acompanhados de Jó!
                              
A campeã do infortúnio, da punição ao motorista – e aí da injustiça também porque penaliza bons e maus – é a Sertório. Incomparável e massacrante. Corridas à Sertório me obrigam que eu me prepare de forma especial porque o espírito não consegue a harmonia necessária. Caso fosse possível eu seria guindado à categoria de sábio. Um Grenal não traz tantas emoções!
                              
A Diário de Notícias e a Icaraí, que por elas trafega a maioria do trânsito da Zona Sul, surpreenderia matemáticos, se esses pudessem calculassem o número de automóveis, camionetes, caminhões, ônibus, motos, vans, kombis, carroças, lotações, que as utilizam.

                              
Quanto a Mostardeiro, Dr. Timóteo, av. Goethe, Quintino Bocaiúva, Félix da Cunha, Olavo Barreto Vianna, Pe. Chagas, Dinarte Ribeiro, Florêncio Ygartua, esse miolo do bairro Moinhos de Vento autoriza os motoristas que transitam várias vezes por dia nessas ruas a dirigirem em qualquer cidade do mundo. Seguramente o trânsito da Cidade do México, Cairo, Paris (consideradas como donas do trânsito mais movimenta do planeta) se iguala ao nosso.
                              
Essa constância desmesurada no trânsito de veículos que ultrapassa a capacidade de nossas ruas e avenidas já deveria ter servido de alerta às nossas ditas autoridades para que tomassem providências. Mas elas estão justamente como o tráfego: lentas. Até parece que fazem de propósito, isto é, que o povo sofra, gaste combustível em demasia, perca seu tempo desnecessariamente, se incomode, altere o seu humor, não faça negócios porque preso em engarrafamentos quilométricos, impedido de ir e vir tendo em vista a ponte que ora não desce ora não sobe, ambulâncias desesperadas para levarem seus doentes aos hospitais, pessoas que perdem horários em seus empregos, faculdades, colégios, escritórios, enfim, uma balbúrdia e um caos sem precedentes, enquanto que os responsáveis pelo tráfego somente se mostram capazes na emissão de multas.
                              
Viva a arrecadação!
                              
Salve a bagunça no trânsito!
                              
Quem manda eles terem carro?
                              
A escolha de Porto Alegre como uma das sedes da Copa do Mundo, em 2014, é uma amostra lamentável do descaso que nossos dirigentes trataram e tratam a cidade e o trânsito: tudo terá que ser feito!
                              
Não temos nada previamente estabelecido ou planejado para melhorar nossas condições. Um descaso criminoso com os cidadãos desta capital. E não me venham dizer que não há dinheiro, basta de tanta mentira! 
                              
Mas à noite, os ânimos mais calmos e não mais tão exaltados, o fluxo de veículos bem menor, é possível observar as belezas de nossas ruas, suas importâncias e características. E elas se parecem com as  veias e artérias do nosso corpo, que levam o sangue para o coração e deste para irrigar o nosso sistema vascular. As ruas dão vida à cidade.
                              
De madrugada, vazias, descansando dos pneus que lhes sulcaram o piso, das buzinas que lhes perturbaram a paz, do peso excessivo de alguns caminhões e ônibus que lhes alteraram a estrutura, elas aguardam por um novo dia.
                              
Durante este tempo, os postes de luz, os letreiros iluminados do comércio, dão a elas um toque colorido, realçado pela noite, enfeitando-as como se fossem vestidos de baile, brilhantes, elegantes, que emolduram corpos perfeitos, sadios e belos.
                              
As ruas de Porto Alegre precisam de mais respeito, consideração, carinho. Precisam ser mais admiradas, tratadas com enlevo, afinal de contas são íntimas de nós todos. E como são lindas de madrugada quando chove. Sem ninguém a tocá-las, nenhum motorista a perturbá-las no seu descanso, as águas empoçando no cordão de suas calçadas a levar-lhes um pouco de líquido para se lavarem das fumaças dos escapamentos, das cuspidas de transeuntes mal educados, dos papéis que lhes atiram ao chão, as poças vão refletindo o brilho de cada uma delas e ampliando seus tamanhos, tornando-as mais atraentes e maiores.
                              
Os passageiros que busco em suas residências às três, quatro horas da manhã para levá-los ao aeroporto, dividem comigo esta beleza e este sossego, este colorido que as lâmpadas lhe emprestam e as pintam de várias cores.
                              
Quando retorno e transito por elas sozinho, tenho a impressão que sou o amante furtivo, aquele que obtém as carícias mais íntimas, o que recebe o amor proibido dessas ruas que me abraçam e permitem que eu também possa amá-las!
                              
Aproveito esses momentos de intimidade sem ninguém a nos ver e me declaro para todas, indistintamente, sem nenhum pudor, e elas gostam porque precisam de quem as ame e as tratem bem.
                              
O dia amanhece.
                              
Fico um pouco com raiva. Em seguida vão receber à força outras pessoas que irão lhes trazer confusão, barulho, freadas, atropelamentos, palavrões, fechadas, arrancadas com pneus cantando, velocidades excessivas, terão seus cordões de calçadas danificados por gente que não as preza, maltratando-as, ofendendo-as, menosprezando-as.
                              
E elas sofrem em silêncio.
                              
Sempre à espera de um motorista que, pela madrugada, as acaricie e reconheça o quanto são importantes e belas as ruas de Porto Alegre!

6 comentários:

  1. Wilson Baptista Junior05/07/2016, 09:12

    Bendl, uma bela declaração de amor e reconhecimento às ruas com as quais você conviveu tão de perto e por tanto tempo.

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    1. Meu amigo Wilson,
      Grato pelo comentário e acerto quanto aos meus sentimentos pela capital dos gaúchos!
      Um forte abraço.
      Saúde e Paz!

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  2. A bela crônica me fez lembrar da música da dupla gaúcha Kleiton e kledir, que eu cantava adaptando: "Viva ti/alto astral/vou pra Porto Alegre e tchau !

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    1. Esta dupla, meu professor Rocha, que te referes, iniciou participando de um conjunto, Os Almôndegas.
      Houve a separação tempos depois, e a dupla de irmãos Kleiton e Kledir, juntos, alcançaram o sucesso nacional.
      A letra da canção que publicaste é uma da mais conhecidas e tocadas nas rádios do meu RS em todos os tempos.
      Um forte abraço.
      Saúde e Paz!

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  3. Moacir Pimentel05/07/2016, 17:35

    Caro Bendl,
    Sua bela crônica não é uma história é quase uma parábola,não é prosa é verso e a poesia,sendo uma mensagem aberta , é um território psicológico que cada um entende como é. Portanto, com o abraço de sempre:

    Pelo Tejo vai-se para o Mundo
    O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
    Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
    O Tejo tem grandes navios
    E navega nele ainda,
    Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
    A memória das naus.
    O Tejo desce de Espanha
    E o Tejo entra no mar em Portugal.
    Toda a gente sabe isso.
    Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
    E para onde ele vai
    E donde ele vem.
    E por isso porque pertence a menos gente,
    É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
    Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
    Para além do Tejo há a América
    E a fortuna daqueles que a encontram.
    Ninguém nunca pensou no que há para além
    Do rio da minha aldeia.
    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

    Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XX"
    Heterónimo de Fernando Pessoa

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    1. Meu amigo Pimentel,

      Eu ter trabalhado em táxi durante seis anos foi uma faculdade da vida, ainda mais que levei para esta última profissão, antes de me aposentar, a necessária carga física e espiritual para suportar o trânsito e a variedade de pessoas que eu teria de conduzir e ser o responsável pelas suas vidas!

      Desta forma, posso afirmar que a minha sensibilidade aos fatos que aconteciam diariamente e que se somavam às dificuldades de um trânsito caótico, às vezes, consequentemente era também transferida para as ruas, avenidas, perimetrais, que me possibilitavam trafegar ora em boas condições ora em péssimas ocasiões, afora a maneira como essas vias de locomoção eram tratadas pelos motoristas e até pedestres.

      Justamente por eu depender delas no meu serviço, decidi deixar registrado a minha homenagem às ruas de Porto Alegre, que me proporcionaram conhecer profundamente a cidade, suas vilas, comunidades, becos, vielas, bairros nobres, populares, simples, pobres, e que tais trajetos deixavam em mim impressões muito fortes sobre a vida das pessoas, e o quanto dependiam também das ruas para se dirigir ao trabalho, à escola, à faculdade, aos encontros, aos cinemas ...

      Muito obrigado pelo comentário.
      Um forte abraço.
      Saúde e Paz!

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