Hoje,
23 de julho de 2016, completam-se dois anos da morte do grande Ariano Suassuna.
Nada mais apropriado do que publicar o tributo do Heraldo Palmeira a esse
brasileiro rebelde, escritor, eterno cantador da nossa alma e questionador das
nossas verdades:
imagem: fotospúblicas.com |
Heraldo
Palmeira
Eu era muito jovem
quando ouvi um professor dizer que um homem é tanto mais universal quanto mais original
se mantém ao representar as riquezas da sua aldeia.
Muito tempo depois eu
estava numa grande universidade carioca, envolvido com a produção de um evento
dedicado à literatura musical. Naquela semana repleta de nomes conhecidos, o
público mal passou de meia casa no enorme teatro.
Até que, numa
tarde, foi preciso fechar as portas porque não cabia mais ninguém. Na hora
marcada, o homem esguio, lépido e fagueiro entrou. Pelo meio dos comuns, como
entram os incomuns.
Ao tempo em que ia
caminhando em direção ao palco e sendo notado, foi levando a plateia à loucura.
Antes mesmo de abrir a boca, provocou uma espécie de convulsão coletiva. Todos
estavam ali para viver duas horas de pura felicidade.
O homem subiu ao
palco. E ninguém me contou, eu vi com meus próprios olhos: quase dez minutos de
aclamação apaixonada, sem que lhe permitissem abrir a boca para uma única
palavra de saudação.
O homem começou a
andar de um lado para o outro, parando no centro e em cada um dos extremos do
palco. A cada parada um assobio forte, com os dedos indicadores enfiados nos
cantos da boca no melhor estilo moleque, espalhando seu combustível para
ampliar aquele incêndio emocional.
Ali estava o homem
que alguns acusaram de burguês que apropriou-se da arte popular do povo simples.
Ali estava o nacionalista que reagiu mal à bossa nova, por considerá-la filha da
influência do jazz. Que abominou o tropicalismo estrangeirado pelas guitarras dos
baianos fantasiados de mutantes.
Ali estava quem
chamou o maioral do mangue beat às falas, bradando seu nome com sotaque
sertanejo: “Chico Ciência”. E que caiu em prantos na alça do caixão em sua
morte prematura. Ali estava quem descia o pau em Michael Jackson, Madonna e
John Lennon com astúcia de matuto. Sem machucar. Alguém que relativizava os
Beatles com um displicente e gracioso “é claro que já ouvi falar deles, mas...”.
Ali estava o
imortal que pouco aparecia na Academia Brasileira de Letras, pois preferia
cavucar o país a ficar tomando chazinho em tardes modorrentas. Ali estava o
homem acusado de muita coisa, vítima de muitas invejas e maledicências apenas por
ser ele mesmo, daquele jeito arrebatador. Ali estava um homem com coragem para
ser original.
Ali estava um
guerrilheiro cultural que fez global a arte popular que lhe acusaram de pegar
emprestada do povo simples. Que trouxe o mundo para sua aldeia. Ali estava o malabarista
da palavra que nos encheu de felicidade por duas horas. Simples, complexo, interativo,
dengoso, matreiro, maroto, certeiro, acolhedor, tonitruante, intransigente, delicado,
sedutor, sagrado, profano. Engraçado até o talo.
Ali estava, como
ele dizia de si mesmo, “um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem
burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente, um profeta”.
Ali estava uma obra
de arte ambulante, um maracatu atômico construído por pitadas populares e eruditas
como ninguém jamais misturou. O artesão de um reino cujo mapa seguirá secreto.
Ali estava uma
personalidade múltipla, o inigualável Ariano Suassuna. A quem não pude negar,
num cantinho escuro daquele palco inesquecível, nenhuma das minhas lágrimas de
embevecimento por ver de tão perto tamanha força da natureza.
Um Quixote
solitário e genial. Um visionário com seus cata-ventos armoriais soprando brasões
inimitáveis sobre a terra brasileira. Um cabra arretado capaz de contrariar o
sopro comum ao afirmar que “globalização é o nome novo do velho colonialismo”.
Um resistente que jamais cedeu ao computador, preferindo desenhar suas letras maiúsculas
com caneta sobre papel antes de convocar a velha máquina de escrever para dar
curso ao veio precioso.
Um bicho do mato
multimídia manual que destroçou com gaiatice a tecnologia que tentavam lhe
apresentar, e que corrigia automaticamente seu nome digitado Ariano Villar
Suassuna: “Como vou escrever numa coisa que me chama Ariano Vilão Assassino?”.
Um homem que, no
mundo real, me deixa de luto para o resto da vida – como um Chicó ou um João
Grilo sem pai, a quem resta se agarrar à proteção de Nossa Senhora Compadecida
dessa orfandade cultural. Um homem que, nas terras da Pedra do Reino, seguirá imperador
rindo da morte Caetana para todo o sempre. Como cabe aos colossos imortais.
Veja aqui o relato do dia em que um papangu de vazante
tentou converter um maracatu atômico:
Excelente artigo. Concordo plenamente !
ResponderExcluirGRAAAAAAAAAANDE texto!!! Parabéns. Gilberto
ResponderExcluirParabéns, Heraldo... Ariano Suassuna é imortal no verdadeiro sentido da palavra!
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