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27/07/2016

O Pintassilgo, em letras e tintas

Moacir Pimentel

Sinto me cansado e desanimado. Quero o básico, o elementar, o essencial, o que não precisa de explicação. Como dizia o poeta, a vida já está muita dita e o mundo muito pensado. Chega um ponto em que tudo se torna muito e ficamos cansados demais para lutar. Nós desistimos. É quando o trabalho real começa. Para encontrar esperança onde parece não haver absolutamente nenhuma.

Sei lá como, renovavam-se em mim a fome de conhecer pessoas e as paisagens delas, o apetite de entender as minhas próprias imagens, a fissura de ver, tocar, cheirar e comer da vida um quase tudo. É como beber o mar e não encher a alma funda. Não sei, mas essa minha alma, sempre na falta, entende.

Lógico que tem dia que é de noite, e tem noite que é comprida. Mas tudo passa, não é mesmo? E a gente vai ficando, meio torto, mas tudo bem.Talvez não o bem que a gente queira, mas bem de todo modo.E então, como era sábado, fui à minha livraria predileta. E comprei um livro da escritora americana Donna Tartt, chamado O Pintassilgo. Trata-se da história de um adolescente órfão, das suas perdas, das suas dificuldades de estabelecer intimidade emocional, de uma grande e improvável amizade, tudo isso rolando no mundo da arte.

Comprei o livro por vários motivos. Uma das críticas, por exemplo, jurava de pés juntos que o velho Fiódor Dostoiévski era presença constante naquelas páginas. Sucede que sou maluco pelos escribas russos, todos peritos na personificação de suas próprias obras, o que faz com que nós, leitores, consigamos enxergar um pouco do que eles são por dentro. E essa é uma experiência impagável.

Sempre me intrigou, também, a estreita ligação emocional que a maioria desses inventores de personagens não lineares em série, sentem em relação à Mãe Rússia, às suas raízes nacionais, ao seu passado, à sua cultura, aos seus lugares de origem, aos anexos que carregam com eles pela vida afora, independentemente de onde o destino os arremesse. Quem sabe eu não sinta uma inveja das bravas?

Porém foi o prefácio do livro que me conquistou ao prometer que, quando o leitor chegasse ao fim do romance, seria transportado a um lugar para além das páginas - "um mundo de razão e se magia", onde a autora também o reinventaria. Gostei.

Sim, eu rejeito o cogito de Descartes, tão limitado na sua primeira pessoa do singular, já que todos nós, uns mais e outros menos, somos inventados pelo outro e o inventamos. Da mesma forma, um livro não termina no seu epílogo. Nós continuamos a escrevê-lo e a narrá-lo adiante, da forma como o lemos e entendemos. Ou seja, nós lemos como somos, nos projetamos nas nossas leituras.

O que os livros nos ensinam, de saída, é que os lugares existem mesmo que não estejamos neles. Porém, fazer -nos ver com os seus olhos, fazer-nos imaginar o que ele pensa ou sente, é apenas o triunfo de um grande artista, escritor ou pintor. Quando a gente imagina - pessoas, coisas, lugares - tem a crença vã de que se apropria do que foi imaginado, passa a ter a sensação de que tudo aquilo que se criou, está aqui dentro da gente e que, portanto, nos pertence, num espaço fechado. E isso é mágico.

E, por fim, comprei o livro porque o seu protagonista - O Pintassilgo - é um pequeno quadro REAL, que retrata um passarinho castanho, com cores mais brilhantes apenas nas asas, contra um fundo liso e claro, pintado por Carel Fabritius, um artista que foi aluno de Rembrandt - e pasme! - professor de Vermeer. Ou seja, o elo perdido entres dois gênios.

Na real, o quadrinho mora no Museu Maurititshuis, a Casa de Maurício. Sim, ele mesmo, o príncipe alemão Maurício de Nassau que governou as terras conquistadas pelos holandeses no Nordeste brasileiro, no século XVII. Nesse pequeno grande museu, em Haia, a antiga capital da Holanda, O Pintassilgo tem a companhia de muitas outras maravilhas, como a fantástica Aula de Anatomia de Rembrandt, os incríveis meio sorrisos da Velha e do Menino pintados por Rubens e, last but not least, a joia da coleção, a linda Menina do Brinco de Pérola de Vemeer. Ou seja, eu e o passarinho do livro, somos velhos amigos.

Por enquanto, o gênero do livro permanece um mistério. Ainda não decidi se se trata de um thriller psicológico, de um romance policial ou de uma reportagem. Não interessa. É um bom livro sobre um menino que começa se encantando pelo pássaro e termina se apaixonando pela maneira como ele foi pintado.

A pintura é só a despretensiosa imagem de uma pobre ave acorrentada pelo tornozelo fino a um poleiro que, por sua vez, está preso à parede. Pelo que li, no século XVII, os pintassilgos eram animais de estimação muito populares, porque eles podiam ser treinados para tirar água de uma bacia, com um miniatura de balde - assim do tamanho de um dedal - no bico. Eles divertiam, com essa habilidade, a malta ignara.
A primeira coisa que se nota, ao contemplar O Pintassilgo de Fabritius, é que se trata de um exemplar europeu da gema, conhecido como dourado. Os pintassilgos americanos - apelidados de cardinals – têm os corpos vermelhos e as cabeças negras, enquanto que os brasileiros são amarelos vivo, com as cabeças e as asas pintadas de preto e branco.



Eu gosto deste ser alado aí na tela, capturado em uma luz brilhante e refletindo-a nos olhos. Apenas a cabeça do bicho e a malvada corrente foram elaboradas minuciosamente. O resto é sugestão. Acho que nessa minúscula tela luminosa Fabritius foi mais o professor de Vermeer do que o aluno de Rembrandt, o mestre da escuridão.

Se a gente olha para o quadro com atenção percebe que as sombras suaves lançadas pelo corpo do passarinho, tanto sobre o poleiro quanto na parede, bem como os reflexos de luz nos dois aros curvos de madeira polida do pedestal, e muito principalmente, as sombras densas lançadas pelo poleiro na parede, tudo isso, ajuda a criar a ilusão convincente de que estamos, de fato, observando um pintassilgo acorrentado.

O pássaro de Fabritius é uma obra inesquecível, precisamente por causa da sua extrema simplicidade. O quadro me encanta porque é apenas um passarinho. Mais nada. Que se cumpre porque nos convence. Nós quase podemos ouvi-lo cantar. Mas se ele cantasse aí começaria a confusão. Pois qualquer canto ecoa o que habita aqui e alhures, dentro desses humanos que, à vezes, estranham até mesmo as suas próprias almas cuja "bondade inversa não é boa nem é má".

A essa altura do livro e da cena, os seus dois protagonistas, o menino órfão e o pintassilgo se fundiram e me veio à mente um versinho de Pessoa em Hora Absurda, um dos maiores poemas da humanidade:

"Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte... "

O que leio nos poemas e vejo nas telas, são testemunhos de seres humanos que extrapolam a geometria cotidiana, que a transbordam, que se libertam, em acasos literários e pictóricos, dos limites das suas existências e deixam aflorar dentro de si uma inconformidade adormecida nos "normais", uma força estranha que os impulsiona a entrar nos trens de si mesmos e a viajar em busca dos seus pedaços desconhecidos que precisam ser cumpridos.

Para mim as pretinhas e as tintas, nada mais são do que uma busca ontológica de sentido, propósito e plenitude. Nas páginas e nas telas dos grandes mestres eles permanecem vida, soprada até mesmo para além da fronteira da morte, como se as abstrações, como se a arte, nos permitisse vislumbrar tudo o que neles existia, como se tivessem tido a chance de experimentar mais do que conseguiram ser.

Penso que dentre milhares de ações, as centenas de encontros e desencontros, os milhões de percepções, pensamentos, sentimentos e sensações que temos, apenas somos capazes de traduzir uma percentagem mínima, a qual, por sua vez, quase nunca é escrita, pintada, musicada e compartilhada. É como se o melhor de nós permanecesse mudo, oculto, mesmo sendo aquilo que dota nossas existências de forma, som, cor e sentido.

E então desejo com vontade absoluta que - a exemplo dos passarinhos - conservemos aladas as nossas almas para que possamos findar "não do espinho na garganta mas da flor na boca".


8 comentários:

  1. Oi Moacir,
    as palavras que você buscou reproduzir são de Cecília Meireles.

    "As palavras estão muito ditas
    E o mundo muito pensado
    Fico ao teu lado.

    Não me digas que há futuro nem passado
    Deixa o presente
    Claro muro sem coisas escritas.

    Não me fales do presente
    Não me .... (esqueci, Moacir, será expliques?) o presente
    Pois é tudo demasiado.

    Em águas do eternamente
    O cometa dos meus males afunda, desarvorado
    Fico ao teu lado."

    Amei isto: "É como se o melhor de nós permanecesse mudo".

    E não é?

    Abraço, Moacir.

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  2. Francisco Bendl27/07/2016, 15:57

    Moacir,

    Mais uma crônica ou tenha lá o nome que tiver muito interessante, bela, sensível, que demonstra a tua exuberante capacidade de transmitir teus sentimentos e dotes literários!

    Gosto de ler teus textos, pois me fazem pensar muito a respeito de situações que eu não me preocuparia, mas que me alertam que preciso ser mais atento aos detalhes da vida, da natureza - a Mãe Natureza -, pois abordaste a Mãe Rússia.

    Assim, quero dizer que até as aves predadoras levam flores no bico, e que devemos ter cuidado com as armadilhas que nos são colocadas pelo caminho, por mais belas e ternas que podem transparecer!

    Um forte abraço.
    Saúde e Paz!

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  3. Texto bom, informações ótimas sobre o Museu, Ornitologia e adjacênciuas.

    Lembro então da minha fantasia de menino. Domesticar pássaros e andar com eles nos meus ombros pelas ruas ... claro não consegui...

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  4. Monica Silva28/07/2016, 09:15

    Moacir,
    Certa vez na escola fizeram uma peça sobre Santos Dumont. O tema da novela era aquela canção sobre um menino passarinho com vontade de voar. O meu papel era apenas recitar uma poesia de Manuel Bandeira que nunca esqueci. O nome era Pardalzinho
    O pardalzinho nasceu
    livre. Quebraram-lhe a asa
    Sacha lhe deu uma casa
    água, comida e carinhos
    Foram cuidados em vão:
    a casa era uma prisão,
    o pardalzinho morreu
    O corpo Sacha enterrou
    no jardim. A alma, essa voou
    para o céu dos passarinhos!

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  5. Flávia de Barros28/07/2016, 10:23

    Moacir,
    Somos muitas vezes prisioneiros como os passarinhos nas gaiolas e o pior é que até parece que gostamos de ser. Ótimas as reflexões sobre o pouco que nos mostramos e compartilhamos por medo de experimentar, como você diz, mais do que conseguimos ser.
    Um abraço

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  6. Moacir Pimentel28/07/2016, 19:37

    Um pouco atrasado, eu agradeço a todos pela leitura e comentários e, de forma especial, a Mônica e Ofélia, por enriquecerem a pauta com as poesias de Cecília Meireles e do Bandeira. A elas me alio mencionando os versos finais da canção Passarim do Tom Jobim.

    Cadê o dia? Envelheceu
    E a tarde caiu e o sol morreu
    E de repente escureceu
    E a lua, então, brilhou
    Depois sumiu no breu
    E ficou tão frio que amanheceu
    Passarim quis pousar não deu
    Voou, voou, voou, voou, voou

    Abraços

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  7. Olá Moacir, não sei bem como as coisas funcionam por aqui. Descobri o blog quando pesquisava um pouco mais sobre o Pintassilgo e um trecho do seu texto me tocou profundamente, mais especificadamente o
    "Penso que dentre milhares de ações, as centenas de encontros e desencontros, os milhões de percepções, pensamentos, sentimentos e sensações que temos, apenas somos capazes de traduzir uma percentagem mínima, a qual, por sua vez, quase nunca é escrita, pintada, musicada e compartilhada. É como se o melhor de nós permanecesse mudo, oculto, mesmo sendo aquilo que dota nossas existências de forma, som, cor e sentido."
    Me identifiquei bastante e gostaria de publicá-lo em uma mídia social devidamente creditada, claro, mas antes vim pedir sua autorização. Desde já, agradeço o fato de tê-lo publicado e assim, permitido que suas palavras chegassem à vida de pessoas como eu, muito obrigada!

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    Respostas
    1. Moacir Pimentel14/04/2017, 08:53

      Bom dia, Daniela
      Muito obrigado digo eu a você pelas leitura e palavras generosas. Pode sim , é claro, republicar o artigo mencionando além do rascunhador o excelente blog Conversas do Mano.
      Já que achou o caminho e chegou até aqui e já sabe como "as coisas funcionam" por favor volte sempre (rsrs)
      Feliz Páscoa para você e os seus.

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