Moacir Pimentel
Sinto me cansado e desanimado. Quero o básico, o elementar, o
essencial, o que não precisa de explicação. Como dizia o poeta, a vida já está
muita dita e o mundo muito pensado. Chega um ponto em que tudo se torna muito e
ficamos cansados demais para lutar. Nós desistimos. É quando o trabalho real
começa. Para encontrar esperança onde parece não haver absolutamente nenhuma.
Sei lá como, renovavam-se em mim a fome de conhecer pessoas e as
paisagens delas, o apetite de entender as minhas próprias imagens, a fissura de
ver, tocar, cheirar e comer da vida um quase tudo. É como beber o mar e não
encher a alma funda. Não sei, mas essa minha alma, sempre na falta, entende.
Lógico que tem dia que é de noite, e tem noite que é comprida. Mas
tudo passa, não é mesmo? E a gente vai ficando, meio torto, mas tudo bem.Talvez
não o bem que a gente queira, mas bem de todo modo.E então, como era sábado,
fui à minha livraria predileta. E comprei um livro da escritora americana Donna
Tartt, chamado O Pintassilgo. Trata-se da história de um adolescente órfão, das
suas perdas, das suas dificuldades de estabelecer intimidade emocional, de uma
grande e improvável amizade, tudo isso rolando no mundo da arte.
Comprei o livro por vários motivos. Uma das críticas, por exemplo,
jurava de pés juntos que o velho Fiódor Dostoiévski era presença constante
naquelas páginas. Sucede que sou maluco pelos escribas russos, todos peritos na
personificação de suas próprias obras, o que faz com que nós, leitores,
consigamos enxergar um pouco do que eles são por dentro. E essa é uma
experiência impagável.
Sempre me intrigou, também, a estreita ligação emocional que a maioria
desses inventores de personagens não lineares em série, sentem em relação à Mãe
Rússia, às suas raízes nacionais, ao seu passado, à sua cultura, aos seus
lugares de origem, aos anexos que carregam com eles pela vida afora,
independentemente de onde o destino os arremesse. Quem sabe eu não sinta uma
inveja das bravas?
Porém foi o prefácio do livro que me conquistou ao prometer que,
quando o leitor chegasse ao fim do romance, seria transportado a um lugar para
além das páginas - "um mundo de razão e se magia", onde a autora
também o reinventaria. Gostei.
Sim, eu rejeito o cogito de Descartes, tão limitado na sua primeira
pessoa do singular, já que todos nós, uns mais e outros menos, somos inventados
pelo outro e o inventamos. Da mesma forma, um livro não termina no seu epílogo.
Nós continuamos a escrevê-lo e a narrá-lo adiante, da forma como o lemos e
entendemos. Ou seja, nós lemos como somos, nos projetamos nas nossas leituras.
O que os livros nos ensinam, de saída, é que os lugares existem mesmo
que não estejamos neles. Porém, fazer -nos ver com os seus olhos, fazer-nos
imaginar o que ele pensa ou sente, é apenas o triunfo de um grande artista,
escritor ou pintor. Quando a gente imagina - pessoas, coisas, lugares - tem a
crença vã de que se apropria do que foi imaginado, passa a ter a sensação de
que tudo aquilo que se criou, está aqui dentro da gente e que, portanto, nos
pertence, num espaço fechado. E isso é mágico.
E, por fim, comprei o livro porque o seu protagonista - O Pintassilgo
- é um pequeno quadro REAL, que retrata um passarinho castanho, com cores mais
brilhantes apenas nas asas, contra um fundo liso e claro, pintado por Carel
Fabritius, um artista que foi aluno de Rembrandt - e pasme! - professor de
Vermeer. Ou seja, o elo perdido entres dois gênios.
Na real, o quadrinho mora no Museu Maurititshuis, a Casa de Maurício.
Sim, ele mesmo, o príncipe alemão Maurício de Nassau que governou as terras
conquistadas pelos holandeses no Nordeste brasileiro, no século XVII. Nesse
pequeno grande museu, em Haia, a antiga capital da Holanda, O Pintassilgo tem a
companhia de muitas outras maravilhas, como a fantástica Aula de Anatomia de
Rembrandt, os incríveis meio sorrisos da Velha e do Menino pintados por Rubens
e, last but not least, a joia da coleção, a linda Menina do Brinco de Pérola de
Vemeer. Ou seja, eu e o passarinho do livro, somos velhos amigos.
Por enquanto, o gênero do livro permanece um mistério. Ainda não
decidi se se trata de um thriller psicológico, de um romance policial ou de uma
reportagem. Não interessa. É um bom livro sobre um menino que começa se
encantando pelo pássaro e termina se apaixonando pela maneira como ele foi
pintado.
A pintura é só a despretensiosa imagem de uma pobre ave acorrentada
pelo tornozelo fino a um poleiro que, por sua vez, está preso à parede. Pelo
que li, no século XVII, os pintassilgos eram animais de estimação muito
populares, porque eles podiam ser treinados para tirar água de uma bacia, com
um miniatura de balde - assim do tamanho de um dedal - no bico. Eles divertiam,
com essa habilidade, a malta ignara.
A primeira coisa que se nota, ao contemplar O Pintassilgo de Fabritius,
é que se trata de um exemplar europeu da gema, conhecido como dourado. Os
pintassilgos americanos - apelidados de cardinals – têm os corpos vermelhos e
as cabeças negras, enquanto que os brasileiros são amarelos vivo, com as
cabeças e as asas pintadas de preto e branco.
Eu gosto deste ser alado aí na tela, capturado em uma luz brilhante e
refletindo-a nos olhos. Apenas a cabeça do bicho e a malvada corrente foram
elaboradas minuciosamente. O resto é sugestão. Acho que nessa minúscula tela
luminosa Fabritius foi mais o professor de Vermeer do que o aluno de Rembrandt,
o mestre da escuridão.
Se a gente olha para o quadro com atenção percebe que as sombras
suaves lançadas pelo corpo do passarinho, tanto sobre o poleiro quanto na parede,
bem como os reflexos de luz nos dois aros curvos de madeira polida do pedestal,
e muito principalmente, as sombras densas lançadas pelo poleiro na parede, tudo
isso, ajuda a criar a ilusão convincente de que estamos, de fato, observando um
pintassilgo acorrentado.
O pássaro de Fabritius é uma obra inesquecível, precisamente por causa
da sua extrema simplicidade. O quadro me encanta porque é apenas um passarinho.
Mais nada. Que se cumpre porque nos convence. Nós quase podemos ouvi-lo cantar.
Mas se ele cantasse aí começaria a confusão. Pois qualquer canto ecoa o que
habita aqui e alhures, dentro desses humanos que, à vezes, estranham até mesmo
as suas próprias almas cuja "bondade inversa não é boa nem é má".
A essa altura do livro e da cena, os seus dois protagonistas, o menino
órfão e o pintassilgo se fundiram e me veio à mente um versinho de Pessoa em
Hora Absurda, um dos maiores poemas da humanidade:
"Tu és a tela irreal em que erro em
cor a minha arte... "
O que leio nos poemas e vejo nas telas, são testemunhos de seres
humanos que extrapolam a geometria cotidiana, que a transbordam, que se
libertam, em acasos literários e pictóricos, dos limites das suas existências e
deixam aflorar dentro de si uma inconformidade adormecida nos
"normais", uma força estranha que os impulsiona a entrar nos trens de
si mesmos e a viajar em busca dos seus pedaços desconhecidos que precisam ser
cumpridos.
Para mim as pretinhas e as tintas, nada mais são do que uma busca
ontológica de sentido, propósito e plenitude. Nas páginas e nas telas dos
grandes mestres eles permanecem vida, soprada até mesmo para além da fronteira
da morte, como se as abstrações, como se a arte, nos permitisse vislumbrar tudo
o que neles existia, como se tivessem tido a chance de experimentar mais do que
conseguiram ser.
Penso que dentre milhares de ações, as centenas de encontros e
desencontros, os milhões de percepções, pensamentos, sentimentos e sensações
que temos, apenas somos capazes de traduzir uma percentagem mínima, a qual, por
sua vez, quase nunca é escrita, pintada, musicada e compartilhada. É como se o
melhor de nós permanecesse mudo, oculto, mesmo sendo aquilo que dota nossas
existências de forma, som, cor e sentido.
E então desejo com vontade absoluta que - a exemplo dos passarinhos -
conservemos aladas as nossas almas para que possamos findar "não do
espinho na garganta mas da flor na boca".
Oi Moacir,
ResponderExcluiras palavras que você buscou reproduzir são de Cecília Meireles.
"As palavras estão muito ditas
E o mundo muito pensado
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro nem passado
Deixa o presente
Claro muro sem coisas escritas.
Não me fales do presente
Não me .... (esqueci, Moacir, será expliques?) o presente
Pois é tudo demasiado.
Em águas do eternamente
O cometa dos meus males afunda, desarvorado
Fico ao teu lado."
Amei isto: "É como se o melhor de nós permanecesse mudo".
E não é?
Abraço, Moacir.
Moacir,
ResponderExcluirMais uma crônica ou tenha lá o nome que tiver muito interessante, bela, sensível, que demonstra a tua exuberante capacidade de transmitir teus sentimentos e dotes literários!
Gosto de ler teus textos, pois me fazem pensar muito a respeito de situações que eu não me preocuparia, mas que me alertam que preciso ser mais atento aos detalhes da vida, da natureza - a Mãe Natureza -, pois abordaste a Mãe Rússia.
Assim, quero dizer que até as aves predadoras levam flores no bico, e que devemos ter cuidado com as armadilhas que nos são colocadas pelo caminho, por mais belas e ternas que podem transparecer!
Um forte abraço.
Saúde e Paz!
Texto bom, informações ótimas sobre o Museu, Ornitologia e adjacênciuas.
ResponderExcluirLembro então da minha fantasia de menino. Domesticar pássaros e andar com eles nos meus ombros pelas ruas ... claro não consegui...
Moacir,
ResponderExcluirCerta vez na escola fizeram uma peça sobre Santos Dumont. O tema da novela era aquela canção sobre um menino passarinho com vontade de voar. O meu papel era apenas recitar uma poesia de Manuel Bandeira que nunca esqueci. O nome era Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
livre. Quebraram-lhe a asa
Sacha lhe deu uma casa
água, comida e carinhos
Foram cuidados em vão:
a casa era uma prisão,
o pardalzinho morreu
O corpo Sacha enterrou
no jardim. A alma, essa voou
para o céu dos passarinhos!
Moacir,
ResponderExcluirSomos muitas vezes prisioneiros como os passarinhos nas gaiolas e o pior é que até parece que gostamos de ser. Ótimas as reflexões sobre o pouco que nos mostramos e compartilhamos por medo de experimentar, como você diz, mais do que conseguimos ser.
Um abraço
Um pouco atrasado, eu agradeço a todos pela leitura e comentários e, de forma especial, a Mônica e Ofélia, por enriquecerem a pauta com as poesias de Cecília Meireles e do Bandeira. A elas me alio mencionando os versos finais da canção Passarim do Tom Jobim.
ResponderExcluirCadê o dia? Envelheceu
E a tarde caiu e o sol morreu
E de repente escureceu
E a lua, então, brilhou
Depois sumiu no breu
E ficou tão frio que amanheceu
Passarim quis pousar não deu
Voou, voou, voou, voou, voou
Abraços
Olá Moacir, não sei bem como as coisas funcionam por aqui. Descobri o blog quando pesquisava um pouco mais sobre o Pintassilgo e um trecho do seu texto me tocou profundamente, mais especificadamente o
ResponderExcluir"Penso que dentre milhares de ações, as centenas de encontros e desencontros, os milhões de percepções, pensamentos, sentimentos e sensações que temos, apenas somos capazes de traduzir uma percentagem mínima, a qual, por sua vez, quase nunca é escrita, pintada, musicada e compartilhada. É como se o melhor de nós permanecesse mudo, oculto, mesmo sendo aquilo que dota nossas existências de forma, som, cor e sentido."
Me identifiquei bastante e gostaria de publicá-lo em uma mídia social devidamente creditada, claro, mas antes vim pedir sua autorização. Desde já, agradeço o fato de tê-lo publicado e assim, permitido que suas palavras chegassem à vida de pessoas como eu, muito obrigada!
Bom dia, Daniela
ExcluirMuito obrigado digo eu a você pelas leitura e palavras generosas. Pode sim , é claro, republicar o artigo mencionando além do rascunhador o excelente blog Conversas do Mano.
Já que achou o caminho e chegou até aqui e já sabe como "as coisas funcionam" por favor volte sempre (rsrs)
Feliz Páscoa para você e os seus.