Moacir Pimentel
A capital holandesa é uma delícia! Adoro perambular pelas ruas de pedras
antigas, atravessar as pontes sobre seus charmosos canais, curtir o belo
artesanato de brinquedos de madeira, aplaudir seus músicos e artistas se
apresentando nas ruas, ir aos restaurantes indonésios e degustar uma daquelas
refeições de setenta mini-pratos picantes e coloridos, que a gente come
gemendo, apesar de não fazer ideia do que está comendo.
Depois do banquete, que pode durar horas, vale conferir a fama do
Distrito das Luzes Vermelhas, nascido à partir do século XIII, quando os
marinheiros e piratas que chegavam cansados de suas viagens, passavam por lá e
as famosas e belas donzelas ofereciam-se para curar esse cansaço em bordéis
iluminados por lampiões de luzes vermelhas. Todos querem passar pelo menos uma
vez pelas ruas cheias de vitrines com belas modelos, e outras nem tão belas
assim... rsrs... vivas e à venda. Isso mesmo, por lá a prostituição é
considerada uma profissão e portanto é legalizada não só em Amsterdam, mas em
toda a Holanda.
Sinceramente? Sinto-me, aos 61 anos, mais à vontade em meio às artes. O
meu museu predileto em Amsterdam é o de Van Gogh, no qual as obras do artista
são expostas cronologicamente nos fazendo perceber claramente que, à medida em
que o artista enlouquecia, ele ia se tornando... um gênio!
O Rijksmuseum, ali
pertinho das estupendas cores de Van Gogh, é imperdível, tanto pela beleza
arquitetônica com sotaques góticos e renascentistas do palácio onde funciona,
como pelas suas coleções de pinturas dos mestres holandeses, das obras dos seus
múltiplos alunos e de magníficos exemplares da arte asiática.
Talvez o mais famoso quadro do Rijks seja a Ronda Noturna de Rembrandt,
mas diante dele me faltam as palavras. Devo confessar que muito aprecio A
Leiteira de Vermeer, mas com teimosia absoluta a minha tela preferida neste
templo às artes é outra, muito menos badalada. Chama-se A NOIVA JUDIA e nasceu
da paleta do Mestre Rembrandt:
Durante muito tempo se acreditou que esta tela fosse a narrativa de um pai judeu dando um
colar de presente à sua filha, no dia de
seu casamento. Hoje, embora as identidades das duas pessoas permaneçam
obscuras, a maioria dos historiadores de arte, entre eles a minha cara metade,
acredita que essa expressão real de amor criada pelo mestre realista durante a
época barroca seja a de um casal de judeus.
Para mim, A Noiva é a maior, a mais psicológica e a mais penetrante de
todas as obras de Rembrandt. Na realidade, o artista nunca nomeou a tela, mas o
nome é adequado, porque os trajes sugerem que o casal é judeu e porque nenhum
observador, de alma funda, consegue deixar de emocionar-se com a sensação do
sagrado dessa pintura. Nunca saberemos quem foram essas duas criaturas
desconhecidas, mas fica evidente que são casados.
A figura da protagonista não é muito jovem e, embora vestida com
esplendor, tem um rosto sem atrativos.
Mas, sem quaisquer dúvidas, essa mulher seja quem for, pelo menos no espaço
emoldurado, foi muito amada e pertence
de corpo e alma a esse marido.
Eu me encanto com a expressividade dos elementos humanos visíveis - os
rostos e mãos - em comparação com o volume e a
imobilidade de suas vestes. O chiaroscuro faz tudo parecer mais
tridimensional, e a representação requintada do colar, das pulseiras e dos
anéis da esposa, adiciona um tipo de opulência bizantino ao todo. As joias da
mulher são apenas salpicos e gotículas de tinta, realçadas pelo branco. Não se
pode deixar de olhar para a manga dourada da roupa do sujeito da cena. Que
técnica! Rembrandt usou de pinceladas curtas e entrecortadas para recriar
inúmeras pregas "tremeluzentes". Toques de tinta branca e grossa
correspondem aos pontos mais brilhantes. Na superfície da tela, crostas de
tinta espessa faíscam, e nos fazem quase sentir as roupas duras, armadas e
pesadas, em contraste e potencializando a suavidade e vulnerabilidade afetiva
das figuras.
Apesar da opulência e beleza dos trajes nupciais, o irresistível impacto
dessa pintura reside na sua singela autenticidade emotiva. Rembrandt, como
sempre, permite que a luz e a cor nos revelem o significado do episódio,
comovendo-nos com a complexidade humana. O magnífico equilíbrio de vermelho,
dourado e marrons quentes cria-se em torno da sua profunda e compassiva
sensibilidade para as relações humanas.
Devotadamente, esse marido envolve a mulher em um abraço de pungente
ternura. Há uma leveza de contato físico entre o par que sugere profunda
fidelidade amorosa. Ele coloca suavemente a mão esquerda no ombro da mulher
amada, enquanto a direita pousa sobre um dos seus seios - com carinho ao invés
de desejo - acariciando um presente amoroso: a corrente que desliza pelo colo da moça, que é de ouro -
uma prenda do marido - e que, todavia ainda é o que é: uma corrente sobre um
ventre que está grávido.
Essa faceta do amor - a de que ele prende, a de que o seu milagre torna-se
inseparável do seu peso - é o que parece preocupar a mulher. Ela está pensando
nas responsabilidades de amar e ser amada, de receber e dar. Não por acaso, a
mão direita da mulher encontra-se também sobre o ventre, pois os filhos são a
responsabilidade fundamental que o amor acarreta numa união. O amor une, o amor
pesa, o amor oprime, mas é a experiência mais séria e realizadora que podemos
conhecer nas nossas vidas. O que torna essa obra inesquecível é a consciência
profunda que Rembrandt parece ter dessa verdade e a beleza visual da narrativa
que faz dela.
O que mais ?
A mão esquerda da noiva judia
também está pousada lindamente sobre a do marido, com uma ternura imensa, como
se o completo significado desse enlace residisse não na carne, mas bem fundo no
íntimo. Outro detalhe importante: a tão autêntica expressão facial do marido. O
meio sorriso e os olhos emocionados e enternecidos. Ele parece um pouco caído,
desgastado pelas preocupações, com rugas em torno dos olhos e da boca e o
cabelo rareando. Ele não nos dá mostras arrebatadas do seu sentimento e não há
nele qualquer impressão de posse masculina, de poder, mas apenas uma certeza
serena do seu papel, do seu destino, da sua promessa, enquanto inclina a cabeça
em direção à noiva, perdido em pensamentos, quase como se escutasse os
pensamentos dela. Ela é sua responsabilidade, a sua missão.
Essas figuras se dirigem a mim como se eu fosse testemunha deste
casamento. Mas a intimidade entre as figuras desta tela é tal que tenho a
sensação de estar me intrometendo num momento muito privativo.
A pintura é mesmo uma linguagem. Tudo bem que é fundamental se ter algum
conhecimento sobre a ficha técnica de um quadro, seu histórico, seu nome, seus
personagens, o estilo do artista. Mas muito mais importante é o enredo que a
obra nos passa. As emoções que ela nos comunica, a narrativa que imaginamos
para as suas figuras, as associações que nossas mentes realizam diante do
trabalho, aquilo que do mais profundo de
nós a pintura faz aflorar à superfície, à flor da pele.
Porém, diante desta tela - talvez por ela ser um mais que perfeito retrato
psicológico - apesar de todo este clima de romance, não me deparo com um
cenário totalmente feliz. Seus personagens possuem um quê de melancolia, como
se soubessem o quanto é incerto o que o futuro lhes reserva. Mas estes dois
estranhos sentem uma emoção que eu reconheço, que eu experimento, e me fazem
pensar em um famoso casamento bíblico, em um amor maior que a vida, eternizado
em um soneto de Camões, de nome Raquel:
Sete anos de pastor Jacob
servia
Labão, pai de Raquel, serrana
bela;
Mas não servia ao pai, servia a
ela,
E a ela só por prêmio
pretendia.
Os dias, na esperança de um só
dia,
Passava, contentando-se com
vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava
Lia.
Vendo o triste pastor que com
enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começa de servir outros
sete anos,
Dizendo: – Mais serviria, se
não fora
Para tão longo amor tão curta a
vida!
Quanta sensibilidade no olhar de um conhecedor da emoção humana! Através de suas palavras acompanhei a construção dessa obra de arte.
ResponderExcluir1) Na qualidade de pernambucano, meu falecido pai dizia que meu tetravô era um holandês casado com uma índia.
ResponderExcluir2) Então, ao longo da vida,sempre nutri, admiração por aquela terra, Van Gogh, etc e como sou um religioso desde criança, me aproximei dos reformados holandeses = presbiterianos ...
3)A crônica do Moacir que levou pr´aquelas bandas ...
Moacir ,
ResponderExcluirÉ muito bom ler um artigo sobre arte e que fala de um museu, de um dos espaços mágicos que fornecem base para a criatividade e o pensamento crítico, tão desvalorizados no nosso país. Agradeço a você pela oportunidade de compreender melhor a doce beleza deste quadro magnífico, através das suas percepções, sentimentos e belas palavras. Que a arte continue sendo sempre uma das suas viagens.
Pimentel comprova com seus relatos detalhados e profundos conhecimentos sobre o que se reporta porque as viagens lhe concederam experiências e aprendizado que nenhuma faculdade pode oferecer!
ResponderExcluirE levou tão a sério essas andanças pelo mundo, que o torna um brilhante intelectual sem a sofisticação deste, sem o uso de expressões desconhecidas, mas uma forma deliciosa de entender as narrativas e de se imaginar facilmente as cenas que se reporta.
Não sou um admirador de quadros, apesar de dar à devida valorização aos grandes mestres da pintura, os holandeses espanhóis e franceses, os clássicos absolutos nesta arte.
No entanto, a crônica de Pimentel a respeito desta pintura elaborada pelo magistral Rembrandt, inegavelmente convida aos que desconhecem a arte em seus detalhes a perceberem com mais atenção as mensagens que o pintor deseja que saibamos através de pormenores muito sutis, delicados, desde o olhar até a posição da mão, o cabelo e a postura do corpo.
Acho que é a mesma forma de como olho as fotos dos meus netos, e fico enternecido com a beleza daqueles que tanto amo, e passo a me fixar nos detalhes de seus rostos, do quanto estão crescendo, de seus sorrisos, de suas mãozinhas e olhares curiosos, interessados, espertos, ávidos por conheceram mais da vida, e brincar com suas existências porque sabem o quanto são amados!
Imagino que um artista pensa dessa maneira quando completa a sua obra, em ser admirado e amado pelo seu trabalho, pelo seu talento.
Pois as fotos dos meus netos me trazem felicidade quando as vejo, e diminuo a saudade que tenho deles, além de reconhecer que tive uma grande vocação para avô porque estou diante de obras primas, cujos valores são imensuráveis, tanto pelo esplendor quanto por estar viva esta magistral criação minha e da minha adorada e amada esposa, a avó que se casou comigo há 46 anos, e que é meu modelo preferido a respeito do que o mundo ainda tem de belo!
Grato, meu amigo Pimentel pela inspiração que tive.
Não debocha das minhas palavras tão simples e corriqueiras, pois estou no meu limite mental, haja vista eu ser dotado de poucas luzes, mas as lamparinas que acendem a minha imaginação por mais fracas que sejam, bastam para eu ver o encantamento da vida reproduzida nas crianças, nos meus netos, na felicidade que me transmitem, e que eu não sei narrar com esta tua precisão a emoção que sinto neste momento.
Um forte abraço.
Saúde e Paz!
Eu gostei muito do artigo de Dubai, Moacir, que apesar de suas críticas não tem como não se querer conhecer. Mas nessa pauta eu primeiro olhei para o quadro e achei feio e escuro. Se eu estivesse no museu teria dado uma espiada rápida e seguido adiante. Aí li a sua descrição e olhei de novo. E o afeto do casal estava lá, tão lindo! É estranho como a gente olha para as coisas superficialmente e não enxerga o mais importante, aquilo que é maior que a vida. Adorei!
ResponderExcluirManovéio, a sua escrita é irretocável e você é um poeta. Mas vou logo avisando que só quando chegar na arte abstrata estaremos falando a mesma língua.
ResponderExcluirEu muito apreciei os comentários porque a maioria das minhas viagens para as terras dos nossos ancestrais, como colocou o vizinho Antônio, gira em torno de museus, esses espaços mágicos como tão bem definiu a Flávia, já que neles as crianças e os adultos crescem juntos aprendendo sobre arte, história e ciência.
ResponderExcluirA história da construção das obras de arte, como observou acertadamente a Reginalda, é também aquela da compreensão das emoções humanas. As obras de arte, porém, não terminam com a última pincelada, ou cinzelada, ou nota musical ou palavra que o artista coloca nelas , mas na leitura diversa que cada um de nós, os observadores ou leitores, faz de cada uma delas.
Nessa hora, interferem nas novas versões personalizadas da mensagem pretendida pelo autor, as nossas vivências e bagagens,a atenção, generosamente dada pela Mônica à obra , e a sensibilidade, que no caso do Bendl, não é lamparina coisa nenhuma, mas farol brilhante.
Escrevo sobre quadros não apenas porque gosto da linguagem ou porque pinto o 7 de vez em quando, mas porque quadros fazem parte da minha vida, e , portanto, das minhas "estórias" e porque acredito profundamente que, através da universalidade da arte - com ou sem traduções como já nos colocou o Wilson - os homens se comunicam e a civilização avança. Finalmente , se o Márcio continuar nos dando a honra de sua leitura, verá que há muito dos antigos na modernidade , mesmo na abstrata, e que a moral do post será sempre transmitir a ideia de que qualquer sonho pode ser realizado com perseverança, se nos mantivermos caminhando em direção a ele. "Keep Walking"! (rsrs)
Obrigado e abraços para todos.