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19/07/2016

A Noiva Judia

Moacir Pimentel

A capital holandesa é uma delícia! Adoro perambular pelas ruas de pedras antigas, atravessar as pontes sobre seus charmosos canais, curtir o belo artesanato de brinquedos de madeira, aplaudir seus músicos e artistas se apresentando nas ruas, ir aos restaurantes indonésios e degustar uma daquelas refeições de setenta mini-pratos picantes e coloridos, que a gente come gemendo, apesar de não fazer ideia do que está comendo.

Depois do banquete, que pode durar horas, vale conferir a fama do Distrito das Luzes Vermelhas, nascido à partir do século XIII, quando os marinheiros e piratas que chegavam cansados de suas viagens, passavam por lá e as famosas e belas donzelas ofereciam-se para curar esse cansaço em bordéis iluminados por lampiões de luzes vermelhas. Todos querem passar pelo menos uma vez pelas ruas cheias de vitrines com belas modelos, e outras nem tão belas assim... rsrs... vivas e à venda. Isso mesmo, por lá a prostituição é considerada uma profissão e portanto é legalizada não só em Amsterdam, mas em toda a Holanda.

Sinceramente? Sinto-me, aos 61 anos, mais à vontade em meio às artes. O meu museu predileto em Amsterdam é o de Van Gogh, no qual as obras do artista são expostas cronologicamente nos fazendo perceber claramente que, à medida em que o artista enlouquecia, ele ia se tornando... um gênio!

O Rijksmuseum, ali pertinho das estupendas cores de Van Gogh, é imperdível, tanto pela beleza arquitetônica com sotaques góticos e renascentistas do palácio onde funciona, como pelas suas coleções de pinturas dos mestres holandeses, das obras dos seus múltiplos alunos e de magníficos exemplares da arte asiática.

Talvez o mais famoso quadro do Rijks seja a Ronda Noturna de Rembrandt, mas diante dele me faltam as palavras. Devo confessar que muito aprecio A Leiteira de Vermeer, mas com teimosia absoluta a minha tela preferida neste templo às artes é outra, muito menos badalada. Chama-se A NOIVA JUDIA e nasceu da paleta do Mestre Rembrandt:

 
A Noiva Judia (Rembrandt Van Rijn)
                        Durante muito tempo se acreditou que esta tela  fosse a narrativa de um pai judeu dando um colar de presente à sua filha,  no dia de seu casamento. Hoje, embora as identidades das duas pessoas permaneçam obscuras, a maioria dos historiadores de arte, entre eles a minha cara metade, acredita que essa expressão real de amor criada pelo mestre realista durante a época barroca seja a de um casal de judeus.

Para mim, A Noiva é a maior, a mais psicológica e a mais penetrante de todas as obras de Rembrandt. Na realidade, o artista nunca nomeou a tela, mas o nome é adequado, porque os trajes sugerem que o casal é judeu e porque nenhum observador, de alma funda, consegue deixar de emocionar-se com a sensação do sagrado dessa pintura. Nunca saberemos quem foram essas duas criaturas desconhecidas, mas fica evidente que são casados.

A figura da protagonista não é muito jovem e, embora vestida com esplendor,  tem um rosto sem atrativos. Mas, sem quaisquer dúvidas, essa mulher seja quem for, pelo menos no espaço emoldurado, foi  muito amada e pertence de corpo e alma a esse marido.

Eu me encanto com a expressividade dos elementos humanos visíveis - os rostos e mãos - em comparação com o volume e a  imobilidade de suas vestes. O chiaroscuro faz tudo parecer mais tridimensional, e a representação requintada do colar, das pulseiras e dos anéis da esposa, adiciona um tipo de opulência bizantino ao todo. As joias da mulher são apenas salpicos e gotículas de tinta, realçadas pelo branco. Não se pode deixar de olhar para a manga dourada da roupa do sujeito da cena. Que técnica! Rembrandt usou de pinceladas curtas e entrecortadas para recriar inúmeras pregas "tremeluzentes". Toques de tinta branca e grossa correspondem aos pontos mais brilhantes. Na superfície da tela, crostas de tinta espessa faíscam, e nos fazem quase sentir as roupas duras, armadas e pesadas, em contraste e potencializando a suavidade e vulnerabilidade afetiva das figuras.

Apesar da opulência e beleza dos trajes nupciais, o irresistível impacto dessa pintura reside na sua singela autenticidade emotiva. Rembrandt, como sempre, permite que a luz e a cor nos revelem o significado do episódio, comovendo-nos com a complexidade humana. O magnífico equilíbrio de vermelho, dourado e marrons quentes cria-se em torno da sua profunda e compassiva sensibilidade para as relações humanas.

Devotadamente, esse marido envolve a mulher em um abraço de pungente ternura. Há uma leveza de contato físico entre o par que sugere profunda fidelidade amorosa. Ele coloca suavemente a mão esquerda no ombro da mulher amada, enquanto a direita pousa sobre um dos seus seios - com carinho ao invés de desejo - acariciando um presente amoroso: a corrente que  desliza pelo colo da moça, que é de ouro - uma prenda do marido - e que, todavia ainda é o que é: uma corrente sobre um ventre que está grávido.

Essa faceta do amor - a de que ele prende, a de que o seu milagre torna-se inseparável do seu peso - é o que parece preocupar a mulher. Ela está pensando nas responsabilidades de amar e ser amada, de receber e dar. Não por acaso, a mão direita da mulher encontra-se também sobre o ventre, pois os filhos são a responsabilidade fundamental que o amor acarreta numa união. O amor une, o amor pesa, o amor oprime, mas é a experiência mais séria e realizadora que podemos conhecer nas nossas vidas. O que torna essa obra inesquecível é a consciência profunda que Rembrandt parece ter dessa verdade e a beleza visual da narrativa que faz dela.

O que mais ?

A mão esquerda da  noiva judia também está pousada lindamente sobre a do marido, com uma ternura imensa, como se o completo significado desse enlace residisse não na carne, mas bem fundo no íntimo. Outro detalhe importante: a tão autêntica expressão facial do marido. O meio sorriso e os olhos emocionados e enternecidos. Ele parece um pouco caído, desgastado pelas preocupações, com rugas em torno dos olhos e da boca e o cabelo rareando. Ele não nos dá mostras arrebatadas do seu sentimento e não há nele qualquer impressão de posse masculina, de poder, mas apenas uma certeza serena do seu papel, do seu destino, da sua promessa, enquanto inclina a cabeça em direção à noiva, perdido em pensamentos, quase como se escutasse os pensamentos dela. Ela é sua responsabilidade, a sua missão.

Essas figuras se dirigem a mim como se eu fosse testemunha deste casamento. Mas a intimidade entre as figuras desta tela é tal que tenho a sensação de estar me intrometendo num momento muito privativo.

A pintura é mesmo uma linguagem. Tudo bem que é fundamental se ter algum conhecimento sobre a ficha técnica de um quadro, seu histórico, seu nome, seus personagens, o estilo do artista. Mas muito mais importante é o enredo que a obra nos passa. As emoções que ela nos comunica, a narrativa que imaginamos para as suas figuras, as associações que nossas mentes realizam diante do trabalho, aquilo que do mais profundo  de nós a pintura faz aflorar à superfície, à flor da pele.
Porém, diante desta tela - talvez por ela ser um mais que perfeito retrato psicológico - apesar de todo este clima de romance, não me deparo com um cenário totalmente feliz. Seus personagens possuem um quê de melancolia, como se soubessem o quanto é incerto o que o futuro lhes reserva. Mas estes dois estranhos sentem uma emoção que eu reconheço, que eu experimento, e me fazem pensar em um famoso casamento bíblico, em um amor maior que a vida, eternizado em um soneto de Camões, de nome Raquel:

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada  a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete  anos,
Dizendo: – Mais serviria, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!



7 comentários:

  1. Reginalda Maria Baptista19/07/2016, 08:58

    Quanta sensibilidade no olhar de um conhecedor da emoção humana! Através de suas palavras acompanhei a construção dessa obra de arte.

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  2. 1) Na qualidade de pernambucano, meu falecido pai dizia que meu tetravô era um holandês casado com uma índia.

    2) Então, ao longo da vida,sempre nutri, admiração por aquela terra, Van Gogh, etc e como sou um religioso desde criança, me aproximei dos reformados holandeses = presbiterianos ...

    3)A crônica do Moacir que levou pr´aquelas bandas ...

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  3. Flávia de Barros19/07/2016, 09:52

    Moacir ,

    É muito bom ler um artigo sobre arte e que fala de um museu, de um dos espaços mágicos que fornecem base para a criatividade e o pensamento crítico, tão desvalorizados no nosso país. Agradeço a você pela oportunidade de compreender melhor a doce beleza deste quadro magnífico, através das suas percepções, sentimentos e belas palavras. Que a arte continue sendo sempre uma das suas viagens.

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  4. Francisco Bendl19/07/2016, 10:28

    Pimentel comprova com seus relatos detalhados e profundos conhecimentos sobre o que se reporta porque as viagens lhe concederam experiências e aprendizado que nenhuma faculdade pode oferecer!

    E levou tão a sério essas andanças pelo mundo, que o torna um brilhante intelectual sem a sofisticação deste, sem o uso de expressões desconhecidas, mas uma forma deliciosa de entender as narrativas e de se imaginar facilmente as cenas que se reporta.

    Não sou um admirador de quadros, apesar de dar à devida valorização aos grandes mestres da pintura, os holandeses espanhóis e franceses, os clássicos absolutos nesta arte.

    No entanto, a crônica de Pimentel a respeito desta pintura elaborada pelo magistral Rembrandt, inegavelmente convida aos que desconhecem a arte em seus detalhes a perceberem com mais atenção as mensagens que o pintor deseja que saibamos através de pormenores muito sutis, delicados, desde o olhar até a posição da mão, o cabelo e a postura do corpo.

    Acho que é a mesma forma de como olho as fotos dos meus netos, e fico enternecido com a beleza daqueles que tanto amo, e passo a me fixar nos detalhes de seus rostos, do quanto estão crescendo, de seus sorrisos, de suas mãozinhas e olhares curiosos, interessados, espertos, ávidos por conheceram mais da vida, e brincar com suas existências porque sabem o quanto são amados!

    Imagino que um artista pensa dessa maneira quando completa a sua obra, em ser admirado e amado pelo seu trabalho, pelo seu talento.

    Pois as fotos dos meus netos me trazem felicidade quando as vejo, e diminuo a saudade que tenho deles, além de reconhecer que tive uma grande vocação para avô porque estou diante de obras primas, cujos valores são imensuráveis, tanto pelo esplendor quanto por estar viva esta magistral criação minha e da minha adorada e amada esposa, a avó que se casou comigo há 46 anos, e que é meu modelo preferido a respeito do que o mundo ainda tem de belo!

    Grato, meu amigo Pimentel pela inspiração que tive.

    Não debocha das minhas palavras tão simples e corriqueiras, pois estou no meu limite mental, haja vista eu ser dotado de poucas luzes, mas as lamparinas que acendem a minha imaginação por mais fracas que sejam, bastam para eu ver o encantamento da vida reproduzida nas crianças, nos meus netos, na felicidade que me transmitem, e que eu não sei narrar com esta tua precisão a emoção que sinto neste momento.

    Um forte abraço.
    Saúde e Paz!

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  5. Monica Silva19/07/2016, 11:09

    Eu gostei muito do artigo de Dubai, Moacir, que apesar de suas críticas não tem como não se querer conhecer. Mas nessa pauta eu primeiro olhei para o quadro e achei feio e escuro. Se eu estivesse no museu teria dado uma espiada rápida e seguido adiante. Aí li a sua descrição e olhei de novo. E o afeto do casal estava lá, tão lindo! É estranho como a gente olha para as coisas superficialmente e não enxerga o mais importante, aquilo que é maior que a vida. Adorei!

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  6. MÁRCIO P. ROCHA19/07/2016, 17:57

    Manovéio, a sua escrita é irretocável e você é um poeta. Mas vou logo avisando que só quando chegar na arte abstrata estaremos falando a mesma língua.

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  7. Moacir Pimentel20/07/2016, 07:56

    Eu muito apreciei os comentários porque a maioria das minhas viagens para as terras dos nossos ancestrais, como colocou o vizinho Antônio, gira em torno de museus, esses espaços mágicos como tão bem definiu a Flávia, já que neles as crianças e os adultos crescem juntos aprendendo sobre arte, história e ciência.
    A história da construção das obras de arte, como observou acertadamente a Reginalda, é também aquela da compreensão das emoções humanas. As obras de arte, porém, não terminam com a última pincelada, ou cinzelada, ou nota musical ou palavra que o artista coloca nelas , mas na leitura diversa que cada um de nós, os observadores ou leitores, faz de cada uma delas.
    Nessa hora, interferem nas novas versões personalizadas da mensagem pretendida pelo autor, as nossas vivências e bagagens,a atenção, generosamente dada pela Mônica à obra , e a sensibilidade, que no caso do Bendl, não é lamparina coisa nenhuma, mas farol brilhante.
    Escrevo sobre quadros não apenas porque gosto da linguagem ou porque pinto o 7 de vez em quando, mas porque quadros fazem parte da minha vida, e , portanto, das minhas "estórias" e porque acredito profundamente que, através da universalidade da arte - com ou sem traduções como já nos colocou o Wilson - os homens se comunicam e a civilização avança. Finalmente , se o Márcio continuar nos dando a honra de sua leitura, verá que há muito dos antigos na modernidade , mesmo na abstrata, e que a moral do post será sempre transmitir a ideia de que qualquer sonho pode ser realizado com perseverança, se nos mantivermos caminhando em direção a ele. "Keep Walking"! (rsrs)
    Obrigado e abraços para todos.

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