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17/07/2016

A Sujeição

Francisco Bendl


Era um dia qualquer da semana. Não me lembro do tempo, do clima. Não me recordo se a jornada tinha sido boa ou ruim pela féria obtida. Em nossas jornadas diárias somos envolvidos muitas vezes por situações conflitantes, difíceis, complicadas, tendo em vista que são reais e apesar de pertencerem aos passageiros elas nos arrastam para suas emoções sem convite prévio.

Esse fato que presenciei devo esquecê-lo, tirá-lo da mente, mas volta e meia ele surge para me martelar a lembrança porque foi marcante, cruel, único.

Uma legítima tragédia familiar que me envolveu em um emaranhado de situações e emoções nunca vividas por mim, e sem que eu pudesse fazer qualquer tentativa para amenizá-lo.

Apanhei um casal na av. Protásio Alves.
Ela tinha mais idade que o rapaz, visivelmente. Não demorou que ele a chamasse de mãe. Notei ansiedade naqueles olhos. Percebi claramente nervosismo nos gestos e as mãos tremiam, às vezes. Ambos não estavam bem, sentiam-se desconfortáveis durante o trajeto. Havia sofrimento nele e nela, pois seus rostos sombrios denotavam muita ansiedade e necessidade de algo.

Mãe e filho.
Quais seriam as razões que os deixavam assim?

O local que me pediram para levá-los é conhecido pela venda de drogas. Jamais me passaria pela cabeça no momento do destino que me deram que seria para comprá-las, afinal das contas, o motorista não pergunta ao passageiro o que ele vai fazer no endereço fornecido, e nem pode.
Mesmo sendo à tarde, dia claro, tratava-se de uma região que exigia alguns cuidados, pois ao me pedir que eu aguardasse um pouco dizendo que não demoraria eu precisava ficar alerta.

Seria rápido.
O guri, 18 para 20 anos, esperaria no carro.

Eu continuava a não entender e perceber o real motivo da ida aquele lugar. Quando a mulher voltou, o rosto mais disposto, olhos mais brilhantes, voz mais animada e estende para o filho um pouco do que comprara e consumira, vacilei entre expulsá-los do carro ou aconselhá-los; levá-los para um hospital ou conduzi-los a uma igreja qualquer; não pensei em me dirigir à Polícia, confesso.

Mais problemas?
O que iria adiantar?

Ela entrou no carro e pediu que eu os deixasse onde os havia apanhado.
Não concordei. Que me pagassem a corrida e pegassem outro táxi ou fossem de lotação ou ônibus. Eu não iria mais transportá-los.

Não discutiram. Desceram do táxi e fui embora.

No caminho de volta para o Ponto andei lento, pensando:
O que eu poderia ter dito para aquelas pessoas?
Aceitariam?
Por mais veemente que eu fosse, eu conseguiria modificar as suas vidas?
Deixariam da dependência química só pelo que eu lhes dissesse?

Os jornais têm publicado seguidamente tragédias entre as famílias que possuem drogados em seu meio, e as tentativas que são desenvolvidas para livrá-los desse vício maldito, muitas vezes em vão.
Eu teria poderes sobrenaturais para em minutos libertá-los desses grilhões de dependência de drogas?

Percorri o trajeto triste, mas com muita raiva.
Ódio da minha incapacidade de ter presenciado esta cena melancólica e eu não poder impedi-la; preocupado pela situação daquela mãe e filho que eu imaginava para onde poderia descambar – outra tragédia familiar!

Quais as razões do vício?
Por que as pessoas se drogam sabendo de antemão que serão gravemente prejudicadas em suas vidas?
Que fatores impelem o ser humano a ser usuário de drogas e viver sem esperanças?
Perguntas sem respostas?

O problema é que esses dramas nos contagiam em suas intensidades emocionais e trágicas, e nos acarretam a perda da esperança sobre a felicidade das pessoas de tal forma que, lá pelas tantas, sentimos remorsos de viver em harmonia ou sem esses dramas terríveis que arrasam a vida de qualquer pessoa.

Quando cheguei ao Ponto, relatei esse fato para alguns colegas que me contaram ter passado pela mesma situação. Mas a continuidade do serviço e o entra e sai de novos passageiros somado ao tempo, permitiriam o esquecimento de algo tão grave e degradante.

Enquanto eu estava sentado no banco aguardando ir para frente da fila, fiquei remoendo esse acontecimento sem parar.

O que seria da vida daquelas pessoas?
Como iriam se safar do vício?
Quem conseguiria demovê-los dessa vontade de consumir entorpecentes?

Minha mente voltou ao passado distante quando já havia problemas deste tipo em tão larga escala que até guerras foram travadas pelas drogas, inacreditavelmente.
A primeira Guerra do Ópio, entre Inglaterra e China, iniciou em 1839 e terminou em 1842.
A segunda Guerra do Ópio, também conhecida como Guerra Anglo-Francesa na China, os britânicos se aliam com a França contra os chineses, tendo começado em 1856 e teve o seu fim em 1860.

A guerra continua, porém, sendo travada entre os próprios dependentes e levando de arrasto pessoas inocentes – a mesma situação que os conflitos tradicionais causam às pessoas que não têm culpa alguma -, neste caso, os familiares dessa gente que precisa ser acudida e tratada com urgência!

Será que não temos a esperança de um dia o ser humano se livrar em definitivo dessa dependência?
Não há solução para este mal que aflige todos os Países do planeta?
Que poderes são tão extraordinários que alimentam  esse mercado que não é extinto, e sequer diminui a sua intensidade de vendas aumentando cada vez mais a “clientela”, inclusive de crianças, desgraçadamente?

Naquele mesmo século, o XIX, um poeta, paulista de Santos, parnasiano, que se chamava Vicente de Carvalho (1866-1924), compôs uma poesia que levou o título de Velho Tema:

“Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim; mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.”


Certas composições têm o dom de ser atuais mesmo escritas em um passado distante.

O ser humano está preso dentro de si mesmo?


4 comentários:

  1. 1) Belo texto de um profundo Humanismo. De fato, as vicissitudes da vida nos tocam o coração.

    2) Parabéns ao Chicão, li momentos de solidariedade, a vontade de ajudar, e dor - a impossibilidade real, a dura realidade que assola a contemporaneirdade.

    3)E parabéns ao blog que nos permite refletir na crônica acima.

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  2. Francisco Bendl17/07/2016, 10:15

    Rocha, meu amigo e mestre,

    Muito obrigado pelos teus comentários, que sempre me apoiam e me animam a continuar escrevendo, apesar de agora não mais crônicas obtidas de experiências no táxi.

    Mas quando precisei trabalhar já aos sessenta anos para colaborar com o orçamento doméstico, haja vista as dificuldades do momento e a aposentadoria era insuficiente, uma das razões pelas quais criei coragem e tive vontade voltar a dirigir e, intensamente, foi a possibilidade de aprender com as pessoas, analisá-las, constatar algumas questões que pudessem melhorar o meu próprio comportamento e compreensão sobre mim mesmo e dos estranhos.

    O táxi foi simplesmente perfeito neste sentido.

    Assim de modo a elogiar os profissionais que labutam neste meio difícil de ganhar a vida e render minhas homenagens aos passageiros, achei por bem escrever alguns episódios, deixar registrado algumas observações que mais me chamaram a atenção nestes quase sete anos a bordo de vários veículos, todos pertencentes a dois donos, meus amigos e quem admiro sobremaneira!

    E, aquelas que mais me deixaram impressionado, Rocha, foram as tragédias pessoais, e como tive de conviver com elas, mestre.

    Um excelente domingo.
    Abraço forte.
    Saúde e Paz!

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  3. Moacir Pimentel17/07/2016, 12:33

    Caro Bendl,
    Muitos seres humanos são prisioneiros sim , dos seus próprios infernos dos quais acreditam não haver saída. Mas disse a poetisa que: a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada! E se não temos respostas ,tantas vezes, como no seu breve contato com essas pobres criaturas, tentamos fazer o nosso melhor, de acordo com as nossas consciências e o que mais se pode pedir a um homem? Tem mais.
    O Táxi - Sofá foi a maneira não só pela a qual você foi capaz de superar um momento complicado - o da aposentadoria - mas de expressar os seus sentimentos ,dores , angústias e reflexões. De comunicar um aprendizado.Ou seja, o Táxi é uma outra linguagem , um novo significado para uma das suas experiências de vida e de sê-lo ,é pura ARTE. Simples assim.
    E a arte é uma das formas mais participativas, dinâmicas e sociais do comportamento humano. Ela tem a capacidade de provocar reflexão, gerar empatia, criar um diálogo e fomentar novas ideias e relacionamentos. Ela nos oferece uma maneira poderosa de expressão,para compartilhar e moldar valores. Ela pode nos ajudar a construir novas capacidades de entender e de imaginar uma maneira diferente de ser e de se relacionar.
    Parabéns pelo táxi, pelo sofá , pelo post , pela extrema sensibilidade e por continuar tentando reinventar-se, procurando soluções, tudo isso mantendo os seus valores e princípios orientadores.
    São os valores - que você demonstra tão nitidamente nos seus textos ! - que moldam a nossa forma de olhar e entender o mundo e as estruturas mentais que abotoam as nossas ideias. Eles são a moldura através da qual construimos as histórias que contamos a nós mesmos e aos outros sobre o que é importante nessa vida.
    Não deixe de escrever, Bendl. Seria um pecado cabeludo.
    Abraço

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  4. Francisco Bendl18/07/2016, 09:11

    Caro Pimentel,

    Muito obrigado pelo comentário, que me deixa alegre e profundamente reconhecido pelo que me disseste.

    No entanto, meu amigo, acredito que um dos componentes principais para que eu tivesse compilado tais observações sobre a vida, as pessoas, as situações, as dificuldades, as rotinas, tal condição se deu em razão da minha idade!

    Trabalhei no táxi dos 53 aos 60 anos, fase da minha vida onde eu já era avô e meus filhos adultos, formados e casados.

    O dinheiro ganho diariamente - 25% da féria bruta - era complemento para o orçamento doméstico, muito diferente do profissional que depende da sua comissão para viver, que é muito aquém tanto da sua necessidade quanto pela responsabilidade da função.

    Aliás, este é um país e povo bizarros, às vezes, pois as profissões que mais responsabilidades têm sobre a população - professores, enfermeiros, motoristas de ônibus, táxi ... - são aqueles que menos recebem, que ganham menos, que vivem em dificuldades, enquanto que os vagabundos, corruptos e desonestos vivem nababescamente, e às nossas custas - ops, entrei na política, assunto proibido neste blog que é um oásis justamente porque não debatemos esta chaga que assola o Brasil, meu perdão ao Wilson!

    Enfim, Pimentel, não fosse a minha vida já estar definida quando decidi enfrentar o volante de um táxi e suas consequências, certamente eu não teria feito essas crônicas, eu não teria reservado um tempo para relatá-las, e ter aumenta do a minha experiência de vida de forma indescritível.

    Um forte abraço.
    Saúde e Paz!

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