The Irish Girl - Ford Maddox Brown |
Moacir Pimentel
Como as multidões que lotavam as vielas e os ghats eram compostas, na sua maioria, por peregrinos, ficou-me evidente que as roupas na Índia variavam de acordo com as mais diferentes etnias, climas, geografias, castas e tradições culturais dos povos das diversas regiões. À beira do rio se via de tudo, desde simples “langotas” ou tangas masculinas até os pesados trajes de lã tibetanos. A Índia tem uma grande diversidade de tecidos que fazem única cada peça de roupa.
Naquela cidade estranha o visual das pessoas era bonito demais!
Os saris femininos - panos sem emendas de até nove metros de comprimento - após serem lavados eram colocados para secar estendidos nos degraus sagrados, formando um tapete multicor de tirar o fôlego, que mudava a cada dia. Os saris com os quais as mulheres hindus se enrolam e que, além de saia lhes servem de véu, eram de muitos tecidos - algodão, seda, gaze etc, etc - e possuíam as mais variadas cores e padrões e estamparias e bordados, muitas vezes com fios dourados e prateados, dependendo da origem de cada uma das peregrinas.
Outro acessório sempre presente era a “dupatta”, lenços ou xales de algodão, seda, lã ou de tecidos transparentes usados para cobrir cabeças e ombros das senhoras ou, se eram mais modernas, para passar-lhes sobre os seios e em volta do pescoço, com as pontas jogadas para trás.
Em Varanasi as macas de bambu onde os corpos eram amarrados para serem transportados até os ghats crematórios desfilavam à minha frente enfeitadas por duppatas multicores e brilhantes. Os próprios corpos eram envoltos, muitas vezes, em ricos brocados dourados.
Se Varanasi fosse um filme, levaria o Oscar de Melhor Figurino. Olhar para aquela multidão de devotos tão estranhamente vestida era uma festa para os meus olhos.
Se Varanasi fosse um filme, levaria o Oscar de Melhor Figurino. Olhar para aquela multidão de devotos tão estranhamente vestida era uma festa para os meus olhos.
Aprendi que o algodão já era cultivado, fiado e tingido no Vale do Indo quinhentos anos antes do Cristo, fato que me explicava a riqueza e a variedade dos tecidos e padrões das roupas dos passantes, dos sarongues do algodão mais rústico à lã mais leve da Caxemira e às mais refinadas sedas de Varanasi.
Os tecelões muçulmanos de Varanasi são conhecidos como artistas e não como tecelões. Os brocados e sedas de Benares são verdadeiramente obras de arte por causa das cores, dos padrões e dos metais preciosos usados para criar os tecidos e bordar as suas barras. Passei muitas horas no Centro de Tecelões da cidade, longe do tumulto lá fora, observando as diversas manufaturas dos tecidos. Ali observei técnicas milenares, transmitidas de geração a geração, ainda sendo utilizadas, como por exemplo as incríveis estamparias feitas com os tradicionais blocos de madeira de impressão.
“Somos a Teia e somos quem a tece; somos o Sonho e o sonhador”
Presenciei naquele lugar tantos milagres sendo tecidos com fios de algodão, seda ou metal que não resisti e, pelo preço equivalente ao que eu gastaria para comer três refeições por dia em um mês na Índia, comprei para minha namorada um sari da mais pura gaze verde esmeralda, com uma bela barra bordada com fios de prata. Ainda assim, o presente não me custou mais do que teriam custado algumas flores em qualquer capital europeia. Já tive o prazer e o orgulho de ver minha mulher - quando de um casamento - e minhas filhas em festas à fantasia usando aquele sari bordado no padrão paisley.
Dentre os muitos desenhos fiados e bordados, o mais conhecido é o paisley, um termo inglês para o desenho indiano em forma de gota e com motivos florais de origem persa, que se tornou popular no Ocidente, na sequência das importações dos xales de lã da caxemira feitas pela Companhia das Índias. Tais estampas passaram a ser fabricadas na cidade de Paisley, na Escócia - daí o nome - e se tornaram objetos de desejo, um símbolo de status usado para ocasiões importantes. Na Grã Bretanha do século dezenove os xales e lenços com esses motivos já eram acessórios populares, do dia a dia. Famosas pinturas eternizaram os padrões paisley, como por exemplo A Garota Irlandesa de Ford Madox Brown e, da paleta do pré rafaelita William Holman Hunt, a pintura O Despertar da Consciência. O pintor Lucien Freud, mais recentemente, também usou o padrão, no famoso quadro no qual retratou a mãe, com um traje estampado por paisleys, pintados nos mesmos tons da pele de pergaminho da velha senhora. O padrão paisley, mais do que persa e indiano, hoje faz parte da cultura britânica e da moda ocidental.
Aprendi muito com os tecelões de Benares. Deles ouvi que, segundo a lenda, uma princesa chinesa contrabandeara sementes de amoreiras e larvas de bichos da seda escondidos nos seus cabelos debaixo de uma touca, quando fora enviada para se casar com um rei em terras desconhecidas. A partir daí, a produção de seda - antes limitada à China - se espalhou por toda a Ásia e chegou à Índia antes do primeiro dos nossos milênios. Anos depois, li que uma pintura em madeira tinha sido descoberta nas escavações do oásis de Dandan Oilik, no deserto de Taklamakan, na China, e que retratava e confirmava a lenda da princesa contrabandista.
Da mesma forma soube por eles que o grande poema épico Mahabharata, escrito quatrocentos anos antes do Cristo, já falava do deus Krishna prolongando ao máximo o ato de despir-se da bela Draupadi, para o seu próprio prazer, oferecendo à moça um interminável sari de seda. Foi graças às dicas daqueles artistas que visitei as grutas de Ellora, nas montanhas de Charanandri, onde trinta e quatro cavernas artificiais foram escavadas ao longo de dois quilômetros para a criação de templos e mosteiros - doze budistas, dezessete hinduístas e cinco jainistas - onde contemplei dançarinas e deusas vestindo o que me pareceu ser ascendentes do moderno sari.
Sob o calor inclemente do sol, em Varanasi os homens usavam os sarongs, também conhecidos com lungis, em vez de calças, juntamente com camisas, ou túnicas ou casacos de todos os tipos.Os tais dos lungis são usados em Sri Lanka, Bangladesh, Brunei, Indonésia, Mianmar e na Somália e, disseram-me seus usuários, são muito confortáveis e necessários, por causa do calor e da umidade. Os turbantes foram um capítulo à parte. Aprendi, por exemplo, que a troca de turbantes por dois cidadãos indianos é prova de amizade eterna.
Nas multidões de devotos, os turbantes indianos surgiam em variadíssimos estilos, desde os grandes panos torcidos e enrolados em voltadas cabeças morenas, aos intrincados e estranhos modelos usados pelos homens do Rajastão, rivalizando o exotismo das saias rodadas e decoradas com espelhos das suas damas. Para proteger os longos cabelos, que não podem cortar, de olhares indiscretos, os sikhs usam os turbantes como um símbolo de fé, a representação de valores como coragem, honra e espiritualidade. Os turbantes em Varanasi definiam seus donos, por suas cores, que indicavam, para observadores mais preparados do que eu, a casta e a classe social e a região dos usuários.
Como acontece com os saris - por exemplo, as mulheres hindus vestem saris brancos se estão de luto e usam saris vermelhos para casar - os turbantes tem um código de cor, no qual o laranja indica bravura e cavalheirismo, o branco indica a perda recente de um familiar ou amigo e o vermelho indica devoção. Eram esses os tons mais comuns nos trajes dos peregrinos. À beira do rio Ganges eram milhares os turbantes alvos e alaranjados e escarlates, pois para muitos são obrigatórios nas reuniões formais, nos funerais, em procissões e cerimônias. Ou seja, Varanasi é a capital mundial do turbante.
Mas todo aquele branco em panos e flores não expressavam tristeza. Em vez, o clima era de festa e para ela as mulheres se preparavam comprando, entre risadas, perfumes e óleos e penduricalhos e tecidos para ficarem mais belas enquanto os homens cortavam os cabelos e aparavam as barbas e bigodes, sentados em banquinhos nas calçadas.
Devo confessar que foi difícil entrar no clima comemorativo, depois que comecei a me deparar com os cadáveres, boiando no Ganges. É que algumas pessoas não podiam ser cremadas: algumas criaturas são consideradas puras demais - os bebês, as crianças até dez anos de idade, as mulheres grávidas, os homens santos - e outras puras de menos - as leprosas, as que morreram de varíola, as prostitutas e as que foram vitimadas por mordidas de cobra - para serem cremadas. Por quê? Muito simples. A picada de cobra é a marca do deus Shiva e os leprosos e os vitimados pela varíola não eram cremados porque a fumaça poderia espalhar a doença. Ouvindo informações da espécie, eu me sentia cansado de absurdos e era tentado a tomar o primeiro trem, para escapar de tamanha (e imbecil) santidade.
"Benares é mais velha do que a história, mais velha do que a tradição, mais velha até do que lenda e parece ter o dobro da idade de todas elas juntas", escreveu Mark Twain, durante a visita que fez à cidade.
O certo é que os tais corpos que o fogo rejeitava eram simplesmente lançados nas águas do rio e não eram raros os que, flutuando em decomposição, atropelavam os barcos que transportavam peregrinos e visitantes, obrigando os condutores a afastá-los com varas ou remos. Para não falar das pessoas que vão a Varanasi para morrer e o fazem, porém antes de ter tido tempo de comprar os trezentos e sessenta quilos de madeira - se forem franzinos! - necessários para a própria pira. Elas morriam ali, literalmente na praia, ali à beira da água sacra, e em de vez de pelas chamas, seus corpos eram, muitas vezes, consumidos parcialmente pelos cães famintos e grisalhos de cinzas, que perambulam em matilhas pelos ghats. Eu vira isso acontecer horrorizado passando ao largo das margens dentro de um barco.
Foi chocante ver famílias inteiras mendigando por madeira, foi terrível passar por cima de corpos abandonados nas vielas, foi repugnante ver pedaços de cadáveres que não puderam ser queimados integralmente boiando nas águas, foi alucinante sentir o barco no qual eu estava balançando porque esbarrara em um corpo, foi asqueroso pensar que todos os esgotos, das mais diversas origens, corriam para o rio, onde homens, mulheres e crianças escovavam os dentes com os dedos, mergulhavam e bebiam, compulsivamente, a água que, acreditavam, jamais poderia lhes fazer qualquer mal; foi indizível conviver com todas aquelas criaturas que, depois de mascar as folhas de betel, escarravam nas calçadas, manchando-as de vermelho, para em seguida, e depois de ter expulsado os maus espíritos das gargantas pela saliva, sorrirem em paz, sorrisos sanguinolentos.
Naquela festa eu era um penetra, naquele mergulho místico eu era náufrago, naquele paraíso eu era um estranho, um intruso mais que perfeito na multidão devota que se divertia com a música e as conversas, os sadhus fumadores, as múltiplas cerimônias religiosas, os vendedores ambulantes que vendiam de tudo, debaixo de guirlandas de flores e queimando bastões de incenso. Com pouca compreensão e discernimento, nos primeiros dias eu me sentia um invasor. Fora do meu elemento, solitário e confuso, poucas vezes nessa vida necessitei mais da presença serena da minha mulher, então namorada.
Se cair no Ganges de cabeça para purificar a alma e ser cremado em Varanasi era o desejo mais profundo de qualquer hindu, quem era eu para questionar sonhos tão duramente perseguidos e uma fé de milênios, perguntava-me eu. Em vão. A minha mente girava e questionava tudo. Sem respostas. E eu continuava evitando os crematórios. O tempo todo, eu me lembrava de uma história que eu aprendera nas bancas de escola do Lazio:
Na Roma Antiga, um belo dia, um general voltou vitorioso de uma batalha, e durante seu desfile triunfal, recebeu tantos elogios e honrarias de seus concidadãos, que sentiu medo de ser vítima de sua própria arrogância e delírios de grandeza. Para evitá-lo, posicionou um escravo às suas costas e mandou-o repetir a cada meia hora:
"Olhe atrás de você!
Lembre-se que você é um homem!
Lembre-se que também vai morrer!"
E então, eu conheci o velho Raviji. Mas essa já é outra conversa.
Moacir, você começa descrevendo os encantos e termina nos mostrando um cenário medonho. Faz as duas coisas muito bem e prendendo o interesse de quem está lendo. Além das informações e detalhes interessantes, fica a impressão que a razão para se visitar a Índia é que ela é muito diferente de tudo que conhecemos. Funciona tipo uma escola, para adquirir experiências diferentes, longe das rotinas e de modo a alargar a mente. Quero só ver como você se virou no fim dessa viagem, para não dizer sufoco.
ResponderExcluirVisitando a Índia tendo como cicerone o Moacir, é sempre um edificante passeio, aprendo muito. Quando ele falou nas grutas de Ellora, automaticamente me lembrei das grutas de Ajanta, à distancia... já meditei muito por lá ... Abração e obrigadão Pimentel.
ResponderExcluirMoacir,
ResponderExcluirMais um texto maravilhoso. Só mesmo quem sabe escrever me deixaria encantada com tantas cores, me faria querer ter um sari para depois no final do artigo mal poder esperar para tomar o primeiro avião para bem longe 😊 Agradeço a você por estar conhecendo a Índia sem meias palavras. De tudo que você já escreveu tenho a impressão que uma das coisas que esse belo país ensina é a ter paciência e tolerância.Obrigada.
Conheço o país e muito apreciei ler o artigo. Ele oferece uma fotografia da Índia de grande fidelidade. Ótimo blog.
ResponderExcluir
ResponderExcluirMoacir,
Lindas e informativas as descrições dos saris, dos tecelões, da seda e da estamparia paesley. Quando eu era moça e fingia que era hippie por que estava na moda, usava roupas indianas com este tipo de padronagem.Eu nunca poderia imaginar que a estamparia tivesse nome, nem que ela fugiu da Pérsia, invadiu a Índia, navegou para a Europa, virou xale numa cidade da Escócia e agasalhou a mocinha irlandesa no quadro que ilustra sua crônica, antes de enfeitar meus vestidos. Deixo-lhe um abraço encantado.
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Ao Márcio : Se quer conhecer o final do "sufoco", por favor, continue nos honrando com sua leitura.
ResponderExcluirAo Antônio : A estrada é mais bonita se nela a gente faz bons amigos e muita "meditação".
À Mônica: Tenha "paciência" até o final da história.Não voe!
Ao Carlos: Bem vindo ao bloco dos viajantes!
À Flávia: A escolha da foto do quadro de Ford Maddox Brown
de nome A Garota Irlandesa para ilustrar o post,foi do editor do blog.
A todos muito obrigado pelo tempo que encontraram para ler e comentar
Abraços
Moacir, não tire o crédito de quem o merece :)
ExcluirEu escolhi o quadro do Maddox, sim, mas escolhi entre os de que você fala na sua história, apenas porque me pareceu que era o que faria a melhor ligação entre a Benares às margens do Ganges e a Paisley às margens do Clyde, como a Flávia tão bem percebeu.
Pimentel, meu caro,
ResponderExcluirMais um artigo que copiei e arquivei em uma pasta especial pelo relato brilhante da Índia e seus costumes.
Os detalhes, as informações, tu mesmo sendo testemunha desses episódios, enaltecem o texto sobremaneira, que possibilita termos uma dimensão desta extraordinária complexidade deste país encantador, mítico e misterioso para nós, os brasileiros.
Pois estás descerrando a cortina para podermos avaliar as belezas da Índia e a forma de vida de seu povo ou vários povos, e percebermos o quanto é rico o ser humano quanto à sua espiritualidade e poder sobre seu físico.
Um forte abraço.
Saúde e Paz!