Lucien Freud - Auto-retrato em reflexo (1985) imagem Wikiart |
Moacir Pimentel
Os muitos auto-retratos de Lucien
Freud serão, sem dúvida, para sempre vistos como seus melhores feitos. Nenhum
outro artista embarcou em um processo tão profundo de auto-escrutínio ao longo
de tantos anos, nem mesmo Rembrandt.
Ele sempre usou um espelho
para se auto-retratar, pintando exatamente o que via, retratos ao invés de
auto-imagens metafísicas. O artista expõe a verdade secreta de seus modelos criando
pinturas que, em vez de se assemelharem aos temas eram os temas, as paisagens
físicas, mentais e espirituais de seres humanos num mundo concreto e no milagre
dos tons da pele.
Impressiona nas obras de
Lucien Freud exatamente ISSO: os sentidos de luta e de busca intensos. Sua
pintura tem o contorcionismo dos horrores de Goya, o transporte espiritual de
El Greco, e a carnalidade abundante de Rubens, mas tudo isso em imagens de
pessoas simplesmente largadas, relaxando em camas e sofás, sem movimento.
O sentimento de agitação que a
gente percebe nas telas dele surge da própria luta incansável de Freud para ver
mais profundamente e para capturar na pintura a força da própria experiência
visual.
Freud não era um realista nem
um expressionista - embora haja tanto realidade quanto expressão em sua arte – mas
representou apenas as suas próprias tensões psicológicas com seus personagens.
Suas pinturas são cheias de
vida e nelas há sempre uma atmosfera latente, palpável, mesmo que muitas vezes
ela seja evocada devido ao imenso cansaço de seus modelos.
Ele sempre pintou a partir de
modelos vivos não profissionais, muitas vezes amigos ou membros da família, e trabalhava
muito lentamente, de modo que as poses de seus modelos a dormir eram reais, ou
seja, ele massacrava seus modelos com intermináveis horas de pose até que,
exaustos, eles adormeciam.
Em Freud quase sempre
encontramos algo novo, uma maneira inédita de descrever a mesma experiência de
estar em um atelier com outra pessoa. Nas telas vemos geralmente o mesmo quarto,
com os mesmos móveis caindo aos pedaços e a eterna pilha de trapos sujos de
tinta.
Com grandes e muitas vezes
inesperados momentos, sua arte foi um processo de descrever a sensação da
presença - de pessoas e animais e coisas e espaços e luz - na sua existência, através
da linguagem da pintura.
Nas suas tintas Freud sempre
esteve em contato com sua mortalidade. Para expressar a transitoriedade das
coisas e a finitude de tudo,o artista usava coisas absurdas como pescoços
envelhecidos, o pêlo ralo de um cão, o olhar de um bebê, as tábuas do assoalho,
as sebes no quintal.
Ele estava interessado na
presença e não apenas na presença humana: no brilho de uma lâmpada, na perna de
um sofá, no traseiro de um cavalo, em um pedaço de tapete rasgado. A linguagem
com que descrevia pessoas e coisas, animais e amantes, atmosfera e futilidade,
era uma construção assustadora. Eu acredito que ele tinha muito em comum com o seu
avô psicanalista.
Detalhes - mais que pinturas
inteiras - me prendem a atenção enquanto olho os trabalhos de Lucien
Freud. Tantos detalhes!
Persegue-me o padrão paisley
nas roupas da senhora sua mãe, repetindo-lhe os tons da pele. São inesquecíveis
o encosto de palha de uma cadeira, o halo de luz refletida por trás de uma
cabeça, o horizonte de Londres ondulando numa vidraça, os iridescentes azuis, a
ternura de um casal despido, o esmalte das unhas nos dedos do pé de uma mulher,
certas interações humano-animal numa mesma paleta de cor, um auto-retrato entre
folhas - onde parece estar tentando escutar a frondosa planta - e aquele outro,
assombroso, no qual ele se eleva colossal sobre suas duas crianças, em um
drama freudiano perturbador.
montagem Moacir Pimentel |
Lucien Freud estava sempre
tentando encontrar novas maneiras de descrever o familiar: as mãos cruzadas, as
pessoas adormecidas, os cães, os corpos nus, os sexos expostos, uma maçã do
rosto, um giro da cabeça.
Seu toque quase nunca é
previsível, linear, obediente ou rotineiro pois o pintor orientava as suas
inquietação e extravagância, para encontrar o inédito, o novo, inclusive, na
introspecção da nudez. Havia uma intensidade observacional implacável no seu
trabalho.
Sua arte é maravilhosamente
perversa, e a perversidade foi o método pelo qual ele constantemente se
reinventou. Era perverso esse seu estar sozinho em um quarto com outra pessoa,
mergulhado no silêncio, analisando a situação em curso, pintando o animal
humano não idealizado, sem mascarar as verdades curiosamente complicadas sobre
a nossa humanidade, retratando-a com extrema concentração na essência física,
para desvendar-lhe as profundezas mentais e psicológicas.
Freud dizia que pensava nos
humanos, se vestidos, como em animais vestidos. Ele usava lençóis como trapos
para limpar os pincéis e as espátulas e a imundície destes trapos aparecem em
diversas pinturas.
Diante do nu muito franco da
tela "Em Pé Junto Aos Trapos
" a primeira coisa que se pensa é:
Mas
que diabo está acontecendo aí?
Não se sabe se a mulher está
de pé ou inclinando-se para trás, se apoiando contra uma pilha confusa de
trapos - muita atenção: ela não está deitada! - e quase podemos sentir o peso
do corpo em uma pose que parece ser tanto de repouso quanto de movimento.
O artista providenciou o
desmantelamento da perspectiva para revelar, direta e tangível e impiedosa, a
experiência da realidade de um corpo, de habitar um corpo finito – o peso, a
gordura, o osso, o músculo, o odor, a textura da pele. A figura entra em confronto
com o espectador, tão próxima que se torna um reflexo de quem somos.
Como é dramática esta paisagem
humana! Existem tantos contornos, fissuras, vazios e reentrâncias, texturas,
erupções neste cenário feito por pinceladas brutalmente grosseiras.
A tinta é conduzida em vales, morros
e cordilheiras. O rosto da figura é um borrão de tinta empastada. Nódulos de
tinta parecem entrar numa erupção de pústulas no colo, nos braços, nos seios,
nas laterais do dorso e das ancas, evocando em nós a doença, a decrepitude e a
mortalidade.
Veja como o pintor interpreta
a qualidade física da figura contra as curvas etéreas e complicadas dos panos
manchados de tinta num efeito devastador. A pele humana firme é colocada de
encontro à frouxidão dos tecidos. É um milagre os tons dessa pele, dessa
realidade física de um ser humano num mundo concreto de trapos de pano sujos de
tinta.
Tente enxergar com a mirada do
artista, pois o olhar clínico e distanciado que Freud dirige aos seus nus é de
uma objetividade glacial. Essa mulher, em toda a sua carnalidade natural, fica
exposta por inteiro à luz do sol. É quase como se Freud, com uma deslumbrante
sensibilidade às variações da cútis, pintasse sob a pele. Em termos visuais, os
tons de rosa, azul e amarelo são extraordinários - pois quando e onde foi que
já vimos uma pele assim?
A carne parece tão densamente
empilhada quanto os lençóis estão amassados. Nada, nem mesmo os pés enormes,
parecem dotar tal figura emoldurada por tais fantasmagóricas dobraduras de
equilíbrio, de raízes que a prendam ao chão.
Ela desliza com uma
materialidade assustadoramente transitória. A mulher escorrega em nossa
direção, o assoalho fornecendo-nos a única perspectiva, e a impressão é tão
vertiginosa - já estive diante do imenso quadro - que algumas pessoas recuam
instintivamente, como se temessem que a mulher fosse cair em cima delas.
Os trapos, embora bastante desordenados, são firmemente contidos pelo braço
recurvado e pela carne compacta do corpo. Esses lençóis estraçalhados estão,
para mim, entre as coisas mais belas pintadas pelo artista. Brilham com uma luz
suave, e a sua brancura vai das sombras cinzentas à mais intensa lividez,
passando por todos os tons intermediários.
Enquanto a mulher é definida
pelas suas formas e limites, os trapos estendem-se indefinidamente em três
direções e todos os aspectos dessa diferenciação encantam as almas amantes da
pintura.
Eu percebo nesse nu uma
qualidade sutil de movimento. Ele é a reinvenção moderna e surpreendente do nu reclinado, um
gênero que remonta à Vênus Adormecida de Giorgione e à Vênus de Urbino de
Ticiano. Assim como Manet pintou a sua chocante e nua Olympia no século XIX e
Picasso inventou Les Demoiselles d'Avignon no início do século XX, em nosso
tempo Freud provou mais uma vez que uma pintura pode ser intemporal e imediata,
bela e crua.
A maioria dos retratistas
visualiza seus modelos através de uma distância. Era diverso o foco perceptivo
de Freud. Ele pairava sobre seus protagonistas como um topógrafo mapeando um
território, tratava a figura como uma paisagem a ser explorada pelo toque e
movimento. Ele despia a alma pintando peles e inventando uma nova geometria
para a carne sobre os ossos.
Se a luz é a linguagem da pintura, o corpo é o texto de Lucian Freud. Suas pinturas são violentamente reais, grossas, frias e cadavéricas como se Tanatos superasse Eros.
Ledo engano!
Se a luz é dura, se a luta é
até mesmo desajeitada, sob elas a carne nunca é uma distração. Os retratos de
Lucien Freud são uma espécie de autópsia estética da qual sai inteiraça a vida.
Muitas pessoas são repelidas
pelas figuras do artista, com suas sexualidade e mortalidade tão descaradamente
em exposição. Este é, penso, um aspecto da obra de Freud que lhe dá poder
espiritual: a essência da condição humana.
Somos seres espirituais que se
manifestam em corpos animais, que experimentam medo e desejo, sofrimento e
decadência.
Talvez o maior mérito da arte
freudiana seja intensificar a proximidade da morte, para chamar à flor das suas
peles a força da vida.