fotografia J. Samuel Burner (wikimedia commons) |
Heraldo Palmeira
O correio
trouxe com antecedência a notícia de que a energia elétrica – força, como dizem
os paulistanos em sua prosódia característica – seria cortada em determinada noite
de janeiro, para manutenção no sistema. Anotei com a Bic azul na agenda, que
continua no modelo antigo de papel e imponente sobre a mesa.
Estava
diante da tevê, assistindo à monumental série inglesa Downton Abbey. A cena
corria num casarão londrino, onde a família do conde havia se instalado para apresentar
uma sobrinha escocesa à corte.
De repente, soou
aquele “clac” característico e os equipamentos da casa foram se desligando,
enquanto as luzes da sala bruxuleavam até todas as fases serem desconectadas. A
promessa da concessionária de energia fora taxativa: a escuridão se estenderia
até as últimas marcas da madrugada.
Vim para a
mesa de trabalho diante da janela e fiquei maravilhado com a visão da metrópole
no escuro. Lá mais adiante, não sei quantos quarteirões, a energia não havia
sido cortada e a iluminação distante transformava os incontáveis prédios ao meu
redor em sombras. Um mar de fendas e contornos cortado de quando em quando pelo
clarão dos faróis dos carros passando ao longe. É impressionante como a
escuridão atrai o silêncio, como se renovasse nossos medos de infância nas
noites em que acabava a luz.
A vela acesa
ao lado do teclado gerou uma cena inesperada, como se passado e futuro
finalmente tivessem encontrado um elo comum, aprendido a ser complementares
para que as letras surgissem em carreira desabalada pela tela, antes que a
bateria do computador se entregasse à sua própria escuridão.
O ar fresco
que entrava fazia balançar a chama refletida pelas paredes e por todas as
coisas ao redor, como um teatro de marionetes disformes comandadas pela
coreografia do vento. A cortina clara virou fundo de palco para projetar o
ectoplasma quase invisível que elevava a alma do fogo, no trajeto do pavio até o
mistério do sumiço.
Lá longe e
nas alturas, uma das torres metálicas da avenida Paulista, em suas cores vivas,
parecia ter assumido seu papel nesse teatro de escuros e clarões, o de marco de
fronteira da civilização iluminada.
Corri tanto
quanto as letras pululando na tela, para chegar a tempo no ponto final antes
que a bateria escrevesse seu próprio fim. Deu tempo.
Fechei os
olhos, estiquei o corpo debaixo dos lençóis da noite arejada e reencontrei os
tempos de menino do interior vasculhando medos e lendas da escuridão das noites
do sertão.
Fui indo
devagarinho, desligando minhas linhas de transmissão das memórias, revendo postes
que sustentavam fios que abrigavam passarinhos e inutilizavam pipas de garotos
sem perícia. Fui indo devagarinho até entrar no meu infinito particular, adormecer
os clarões da infância e apagar o meu interior. Foi mesmo uma boa noite!
Oi Heraldo,
ResponderExcluirvocê bom como sempre.
Eu e meu pai aproveitávamos o corte ou a queda da energia (esporádicos) para botar a conversa em dia. Era bom, mas, se a luz demorava muito a voltar, ele acabava indo dormir. Já estava contaminado pela TV. Via novela e tudo. Não sabia mais ficar sem a telinha (sem o jornal nunca ficou).
O silêncio trazido pela escuridão vem dos aparelhos eletrônicos desligados, das conversas abortadas daqueles que foram dormir como meu pai.
A vida no escuro tem seus encantos, assim como tem a vela acesa.
Ainda ontem passei pela loja Mil Coisas (junto ou não?) e vi lâmpadas de emergência em oferta. Não comprei. É tão raro ficar no escuro, e é tão bom, deixei pra lá.
Ver mais adiante, às vezes nem tão distante, luzes acesas, é outra boa visão, janelas que acendem e apagam.
Gosto também de quando a luz volta cedo e sempre se escuta uma comemoração, um êêêêê!
Não é curioso?
E pensar que Edison jamais poderia ter imaginado tal reação pública.
Viva a luz. E viva o escuro. Este deve ser o caminho do meio de que nos fala o Antonio.
Está devendo o livro, Heraldo.
Abs
Ofelia
Ofelia,
ExcluirObrigado pela leitura. Nas cidades grandes já n]ao se ouve aquele "êêêêê!" da volta da energia. Pena!
A vela acesa tem poesia natural, é impressionante! E reaviva as memórias que todos nós temos desse tipo de escuridão.
O livro é um projeto para mais adiante. Abraço.
1) Heraldo, cronista dos bons. Sorte do blog, sorte do Mano e sorte nossa.
ResponderExcluir2) De uma simples falta de luz ele escreveu um belo artigo. E cada um pensa uma coisa, lembra de outra ...
3)Lembrei do meu querido Gama, DF,1966, qdo lá cheguei; à noite só haviam duas ruas com lâmpadas nos postes.
4) O céu era inigualável !
5)Gratidão Heraldo por permitir estas lembranças.
Antonio,
ExcluirObrigado. Sorte minha por compartilhar um ambiente como este que o Mano nos oferece.
Quanto ao céu do Gama, sabemos que o céu do Distrito Federal é espetacular! Tanto que Djavan e Caetano já falaram dele em "Linha do Equador". Aproveitemos todos nossas boas lembranças da escuridão.
Olá. Heraldo,
ResponderExcluirDelícia de texto , que como a Ofélia, me levou à minha infância em Leopoldina( meu pai era da antiga ACAR), quando na falta de luz eu os tinha, pai e mãe, só para mim. E ainda hoje, quando nessa escuridão densa, não procurada, ficamos próximos, procuramos velas pela casa, e falamos bobagens e rimos, sem internet, sem tv nem nada que nos distraia além e nós mesmos e nossos pensamentos.
Adorei. Obrigada pela viagem no tempo.
Até mais.
Prezado Heraldo,
ResponderExcluirMuito legal este teu texto.
De fato, quando falta luz durante à noite e ainda cedo, a conversa em família acontece, e não faltam assuntos.
Assim, se a falta do ar condicionado é sentida ou a bebida gelada, a aproximação das pessoas através de conversas também é salutar, necessária.
E se a luz tardou e se vai dormir, o descanso se faz notar no dia seguinte, com o corpo leve e a mente arejada.
Não me esqueço de um programa nos Estados Unidos, um desses reality show, onde as famílias - pai, mãe e filhos - eram testadas morando como se fosse no século XIX, sem água encanada, luz, geladeira, ferro de passar, chuveiro elétrico, TV, shampoo, sabonete ...
Evidente que se ressentiam em demasia do conforto de um século XXI, algumas famílias desistiam, inclusive, mas o fator preponderante que levava adiante aquelas que conseguiam permanecer pelo tempo determinado, declaravam peremptoriamente que o motivo tinha sido a união mediante as conversas noturnas, quando aproveitavam o tempo até para planejar o dia seguinte, as estratégias, e elaborarem meios de vencerem as etapas que teriam de enfrentar.
Um abraço, Heraldo.
Saúde e Paz!
Faz alguns anos eu entrei em um blog da vida e dei de cara com um artigo de nome Tremeluzindo que, com uma outra abordagem, também falava da luz elétrica, só numa cidadezinha do interior. Foi um dos textos mais bem escritos e inteligentes que eu já tivera o prazer de ler. Lembro que li de novo com a alma funda inundada pelas recordações do Nordeste da minha infância: o zumbido do gerador, o cheiro dos lampiões de querosene, a visão dos passarinhos pousados em fila indiana nos fios ao entardecer enquanto as pipas ainda voavam. E como se não bastasse toda aquela poesia de repente ela virava sátira quando no enredo apareciam "os postes" (rsrs)
ResponderExcluirLembro de ter ficado meio abestado, como ficamos todos diante do raro, que rolei a página para saber quem tinha escrito AQUILO. "Benzadeus", como diziam os antigos.
Então eu entrei na caixa de comentários e teclei pela primeira vez diante do seu talento ....
Mestre Heraldo,
"Não haveria luz se não fosse a escuridão". Nelson Motta um dia cantou o "dia e noite, não e sim" da vida. E em nossos tempos cibernéticos e controlados, o medo da escuridão se impões cada vez mais. Ela traz o imponderável, o surpreendente, o desconhecido, e nos faz praticar coisas que estão ficando esquecidas, como o ato de pensar - em si, no outro, no dia, na crônica singela e bem-cuidada. E como nos faz falta um apagão de vez em quando... Obrigado, HP!
ResponderExcluirAmigo Heraldo
ResponderExcluirSua sensibilidade expressa no belo texto nos leva a divagar sobre esse jogo de luz e sombra que é a vida.
Parabéns, parceiro de outras horas.
Abraço fraterno
Domingos
Caro HP
ResponderExcluirMuito bom Mano!!
Gostei muito do seu texto e dos comentários!!
Um abraço