fotografia Moacir Pimentel |
Moacir
Pimentel
Essa fonte de inspiração
mourisca mora na linda cidade de Sintra – palavra oriunda do celta Chynthia
significando lua e depois arabizada como “as-Shantara” – em uma das curvas da serra
onde ainda se erguem imponentes as ruínas do Castelo dos Mouros. Erguido
entre os séculos VIII e IX pelos árabes sobre um
maciço rochoso de onde se avista até mesmo o oceano Atlântico, a fortaleza
tinha a finalidade de controlar estrategicamente as vias terrestres que ligavam
Sintra a Lisboa, Cascais e Mafra.
Lendas nos falam dos fantasmas mouros que de vez em
quando dão o ar da graça deles para carpir os seus destinos por essas paragens.
Reza uma delas que em certas
noites de luar, quem tiver a ousadia de vaguear pela serra verá sair de uma
gruta uma lindíssima mulher vestida de branco com uma bilha na mão caminhando
na direção dessa fonte de águas claras. Trata-se da princesa moura Zaida,
perdida de amores por um guerreiro cristão prisioneiro no Castelo, de cujas
feridas ela tratava, entre beijos, na calada das noites.
Na Quinta dos Seteais, em tempos ignotos, diz outra
lenda que outra bela moura teria sido mantida prisioneira não se sabe se pelos
cristãos ou pelo senhor seu pai, o alcaide. O certo é que a moça tanto penou de
amor suspirando pelo cavaleiro templário D. Mérido de Paiva, que se foi deste
mundo depois de gemer sete ais. Da ligação dessas palavras – sete ais – o povo
da serra jura de pés juntos que nasceu o nome da Quinta.
Embora os sinais e vestígios
físicos sejam poucos, a influência intangível dos séculos de domínio mourisco
em Portugal é imensa e muito mais concreta que os brancos fantasmas das
princesinhas mouras nas histórias de trancoso. Se por um passe de mágica fosse
possível deletar todos os resquícios do legado árabe no Portugal de hoje, a sua
paisagem étnica, cultural, física e humana seria completamente diferente.
Os tugas teriam cabelos claros
em vez de escuros, e nós não nos surprenderíamos com bocas mouras em rostos
visigóticos ou com aquele brilho beduíno nas pupilas negras e insondáveis de
tantas lusitanas. E – pasme! – os portugueses deixariam de falar o latim
arabizado que chamam de português e perderiam mais de mil palavras no
dicionário.
Muitíssimas aldeias e cidades
teriam que mudar de nome. Começando pela região de Al-Gharb, hoje Algarve, onde
as amendoeiras nos lembram da lenda do príncipe Al-Mutamid, que as importou e
plantou, para que suas flores brancas atapetassem o chão e amenizassem a
saudade que uma das preferidas do seu harém, aquela de cabelos de ouro, sentia da
neve que deixara para trás, em sua terra natal.
Quando os mouros conquistaram
originalmente a Península Ibérica, dividiram- na em regiões, em muitos casos preservando
os antigos distritos administrativos romanos, que já haviam sido mantidos pelos
antecessores germânicos dos mouros.
A maior parte do Portugal
moderno era chamada pelos mouros de al-Thaghr
al-Adna que, em livre tradução, seria a Província Inferior. Nela, muitas
cidades floresceram sob o domínio árabe como Shalb
( Silves), Baja ( Beja), Yabura (Évora), Al-uhera (Albufeira), al-Ushbuna (Lisboa), Shantarim (Santarém), Harum (Faro), Kulimriyya (Coimbra) e Antaniya
(Idanha).
Além de aldeias menores tais
como Al-'Aliya (Loulé) Maura (Moura), Qaya (Gaia), Al-QasrAbu Danis
(Alcácer do Sal), Saqris (Sagres), Tabira (Tavira) e Yalbash (Elvas) entre muitas outras mais como Aljezur e Alcântara das quais não lembro as raízes.
Mas se tiver um AL na frente, não tem erro: a palavra é moura de berço!
Na verdade, o mais católico
dos sítios de Portugal, Fátima, deve seu nome a uma beleza mourisca que ganhou o
coração de um nobre português que, é claro, não conseguiu se casar com a moça.
Embora tenha sofrido maior influência do Latim, herdado
dos invasores romanos, o árabe foi a segunda língua formadora da da portuguesa.
Sem sua herança moura Portugal
não teria como nomear as coisas que cultiva e come. Como diria laranja, tâmara, romã, beringela, gengibre, limão,
azeitona, azeite, arroz, açafrão, espinafre, acúcar, xarope, alfarrobeira e
alface?
Centenas de vocábulos teriam que ser inventados
para substituir palavras como alcaide,
almoxarife, alfazema, algodão, alferes,
almirante, arrais, alfândega, atalaia, arsenal e harém.
Nos campos como seriam nomeadas as noras e azenhas, o café, o açude, o alqueire, o almude, o arrátel e a arroba? Como passariam a dizer açougue e quais seriam os novos apelidos
dos algarismos e da álgebra?
Um outro problema sério seriam os provérbios ou ditados populares,
que têm uma força educativa considerável porque transmitem, em poucas palavras,
verdades universais. Como se expressariam os nativos falantes do português se
não pudessem dizer todos os dias: Oxalá! - um descendente direto de insha'Allah, significando se Deus quiser?
Como não mais filosofar “Tal pai, tal
filho” ou “Casa de ferreiro, espeto
de pau” ou “Mais vale um pássaro na
mão, do que dois a voar” ou “Antes só
que mal acompanhado” ou “Os cães ladram
e a caravana passa” ou “ Correr Seca
e Meca” - significando fazer muito sem obter quaisquer resultados – um
ditado evidentemente árabe já que Seca
era a cidade moura de Córdova, na Espanha, e Meca, na Arábia Saudita, a cidade santa?
Como ficariam os patrícios sem o Tejo – de Tagus – sem o fado baldio,
sem a Ponte da Arrábida sobre o Douro,
sem arrabaldes, almofadas, algibeiras e,
delas banidos, os cheques? Como não mais
cumprimentar os vizinhos com os salamaleques
de praxe - do árabe as-salam’alaik significando
“a paz esteja contigo” ?
Como sobreviver até
sem a benditas garrafas pois até mesmo a preposição “até”, é moura da gema.
O que seria das obras literárias que descrevem
Lisboa como uma cidade bonita com palácios, mesquitas, jardins e pátios
floridos? Ah, como relaxar sem aqueles pátios caiados de branco, sombreados por
limoeiros, cercados por canteiros coloridos de flores e enfeitados por vasinhos
perfumados onde crescem salsa, ervilha-de-cheiro,
alecrim, pimentas, hortelãs, orégãos, cidreira, poejos e funcho?
Fotografia Moacir Pimentel |
E que graça teria a vida sem as feiras descendentes
diretas dos mercados árabes sem a mitologia das mouras encantadas, e os versos do
rei-poeta Al-Mu’tamid para a sua amada musicados pelo fado Coimbrão?
“Repeles-me!
porque
deixas minh’alma abandonada?
se a
tua ausência é uma longa noite
seja o
nosso abraço d’amor a alvorada.
O teu aroma tomou-me conta do olfacto
E o
teu rosto lindo preencheu meus olhos:
És
minha mesmo depois de me deixares
E só
por isso me chamam poderoso.”
Como esquecer a história da princesa Alandra, filha do rei árabe da cidade algarvia
de Harum, que durante a batalha entre árabes e cristãos suplicou a Dom João Peres de Aboim - o braço direito do rei
Afonso III - que a população muçulmana que lá residia fosse poupada e
respeitada pelos novos senhores da terra?
Como não contar às crianças na hora de dormir que
Dom João Peres de Aboim, encantado como a beleza e – digamos! – a diplomacia da
moça disse que sim, sim, sim e que, de quebra e depois, ele resolveu batizar as
flores rubras que ela lhe dera na despedida com o nome de alandra, os atuais aloendros alentejanos?
As mesmas flores que inspiraram a criação do vinho
português Esporão Alandra, produzido pela Herdade do Esporão, uma das mais
renomadas vinícolas do Alentejo, cujo primeiro dono nos idos 1267, foi nada
mais nada menos que D. João Peres de Aboim, o nobre apaixonado?
Como renunciar às delícias da
mesa árabe? Pois é. Basta uma olhada rápida na
gastronomia portuguesa, para imediatamente identificar produtos e práticas culinárias
árabes Muitas das cores, aromas e sabores da cozinha da t’rrinha são heranças dos mouros
que se misturam com as tradições mediterrâneas numa mais que perfeita alquimia cultural.
A doçaria, essa arte típica e variável de região
para região, invadida pelo convívio e cujas diferenças são impostas por Donas
História e Geografia, em Portugal é em grande parte resultado da invasão moura,
na diversidade de produtos naturais em doces que, nas casas portuguesas com
certeza, em dias de festa ou para adoçar agruras do quotidiano, tem sempre uma
avó ou uma tia fazendo e alguém comendo e choramingando por mais.
As receitas tradicionais lusitanas vêm de muito
longe com o cheirinho das especiarias trazidas pela mão de mercadores árabes e
judeus. É o caso da perfumada canela que entra na composição de tantos doces.
Como seriam as festas populares sem os nógados, os charutinhos e, em sentido
horário e começando na foto de cima à esquerda: as alcomonias, a aletria, os
almendrados e os filhoses em forma de arabescos ?
Talvez os doces chamados alcomonias, triangulares ou losangulares, pela delicadeza do sabor,
pela leveza da massa, pela forma geométrica e pela cor que repete aquela das
mulheres mouras que os inventaram, sejam os mais legítimos representantes da
doçaria árabe em Portugal.
Mas provar um almendrado
de Santa Maria da Feira – “molinhos” por
dentro e graças às amêndoas e ao açúcar tão crocantes por fora – é penetrar deliciosamente no mundo árabe, é sentir um
sabor mourisco muito antigo, de origem caseira e sazonal, um elemento cultural
que encerra segredos das sabedorias femininas árabe e lusitana que não podem
desaparecer.
Até hoje nas feiras do Minho – a de Barcelos às
quintas e a de Vila do Conde às sextas - das bancas de doces as mulheres gritam:
“Anda lá, meu
senhor, anda lá, minha senhora, a provar os doces que são bons e baratos”...
E são! São modestos e de sabor discreto e
acessíveis a todos os bolsos, na sua abundância de amêndoas, cravo e canela,
com seus nomes árabes exóticos. A delicada mão árabe na doçaria de Portugal
perfuma mais do que tempera.
Os doces de nozes, de mel, de água de rosas e de
laranja, as queijadas, o arroz doce polvilhado com canela,
diversos pastéis feitos com frutos secos e mel, as frutas cristalizadas, a alcorça de
açúcar e amêndoas típica de Beja e os muitos bolos algarvios
fantasiados das mais variadas formas, são semelhantes à doçaria que se encontra no Norte
de África.
O xarab do qual descendem os xaropes era uma
mistura de diferentes frutas, flores, especiarias e ervas. Para não falar no sherbet,
que deu origem à palavra sorvete.
Algumas dessas maravilhas chegaram aqui no Brasil. É
o caso do alfenim que abaixo do
Equador curou-se da fobia zoomórfica da arte árabe e resolveu ter o jeitão tropical
dos bichos e frutos da minha infância e da alféloa
de melado e mais tarde de açúcar, que no Brasil virou os pirulitos - a tentação
dos “mininus” de férias – compridos e pontudos e embrulhados de papel e enfiados
em tabuleiros de madeira que os vendedores carregavam nos ombros pelas ruas
nordestinas de antigamente.
E os salgados?
Não conheço português capaz de abrir mão das açordas feitas com os coentros, dos pratos preparados com pimenta e açafrão cujo abastecimento era assegurado
por mouros, do ensopado de borrego, da cabeça de borrego assada no forno, das
famosas migas à alentejana, da caldeirada de enguias com hortelã graúda e dos
carapaus de escabeche, todos pratos típicos deixados pelos muçulmanos.
São mouras as ervas aromáticas como o alecrim e a
hortelã-pimenta e as especiarias como anis,
cardamomo, gergelim, gengibre, pistache, noz- moscada, pimenta e cominhos,
Nos tempos árabes, além das galinhas e coelhos de
capoeira muito apreciados, as carnes básicas eram as de cordeiro, cabra e... peixes!
Muitos dos nomes portugueses para peixes são árabes - como atum, sável e até mesmo almêijoa - atestando às origens do
hábito de comer frutos do mar em Portugal. Difícil de imaginar a vida na
t’rrinha sem amêijoas, que eu prefiro
à Bulhão Pato.
Os velhos livros de receitas
portuguesas colecionam receitas árabes, muitas vezes chamadas simplesmente de
mouras: cordeiro mouro, galinha mourisca, caldo do mouro e por aí vai.
Não há como negar o sabor mouro da vida portuguesa,
nem que os árabes foram uma influência civilizadora na Península, nem que sob seu
domínio Portugal tornou-se um centro de cultura e excelência intelectual. Uma
espécie de capital árabe foi fundada em Silves e nela as letras e as ciências
floresceram.
Das viagens ao Oriente e a Meca os
mouros importaram muitas novidades. Da
China trouxeram para a Europa invenções importantes como a pólvora e o fabrico do papel. Eles foram os fundadores da
primeira fábrica europeia de papel. Sem a bússola trazida da China, a azafea - um tipo de astrolábio - a vela latina e o baculus introduzidos e/ou desenvolvidos
pelos árabes, a partir do século XV os Descobrimentos portugueses não teriam rolado. Se até mesmo a caravela - dizem - pode ter
sido inspirada em um projeto de navio mouro de nome carib!
Foram eles os primeiros a argumentar que a órbita
dos planetas não era circular, mas elíptica, antecipando Johannes Kepler nesta
matéria.
Ao traçar mapas e fazer relatos das terras por onde
viajavam, os mouros aprimoraram a Geografia e a Cartografia e muito avançaram
no mapeamento do mundo então conhecido. No período que se estendeu entre o
século X e o século XII surgiram os grandes geógrafos árabes, autores de obras
como o Livro dos Caminhos e dos Reinos e o Livro de Rogerio, que descreviam de todos
os países conhecidos na época, a geografia, a história, o clima e o povo.
Graças aos do Islã os conhecimentos filosóficos e
científicos foram aprofundados e inventados novos conceitos de Álgebra e Aritmética.
Os árabes divulgaram, por exemplo, a partir do século X, uma variante do
sistema de numeração indo-árabe, de nome ghubar,
a origem direta dos modernos algarismos arábicos ou decimais ocidentais que
substituíram os romanos e hoje são utilizados em todo o mundo.
O estudo da matemática aprimorou
os cálculos na arquitetura e resultou na construção dos fantásticos tetos
abobadados, das abóbadas nervuradas e dos arcos em ferradura típicamente
mouriscos.
Na botânica e farmacologia os árabes estudaram e
listaram milhares de plantas da Península Ibérica, Norte da África e Médio
Oriente, com os seus respectivos usos medicinais. Datado do
século XII, um tratado agrícola escrito por mãos mulçumanas numerou quase
seiscentas espécies de plantas e cinquenta de árvores frutíferas, até então
desconhecidas dos europeus, detalhando como deveriam ser cultivadas.
A Medicina foi modernizada, a crença
de que a loucura era causada por demônios foi rejeitada e os estudos empíricos
e a observação sistemática ganharam importância.
Uma enciclopédia de nome Tasrif, elaborada pelo renomado cirurgião
Albucasi, elencando procedimentos
cirúrgicos - amputações, tratamentos dentários, cirurgias oculares - foi traduzida
para o latim e utilizada em Portugal no ensino da medicina durante a Idade
Média.
Sob o domínio muçulmano a
Ginecologia, a Puericultura e a alimentação, em particular, foram imensamente
beneficiadas.
A alimentação dos portugueses melhorou
devido aos avanços na agricultura. Os cultivos já existentes como o do trigo,
da cevada, das ervilhas, das favas e dos grãos foram desenvolvidos e a rotação de culturas foi pioneiramente implantada na
Europa.
Foi sob o domínio árabe que as culturas de frutas cítricas, de algodão, da
cana de açúcar e do arroz - presente diariamente na mesa portuguesa! - foram
introduzidos na Península Ibérica.
A contribuição muçulmana para uma agricultura mediterrânea, mais moderna, superior à romana, com
introdução de árvores como a figueira, o meloeiro, a
oliveira, as amendoeiras, foi definitiva. Com os mouros chegaram o damasco, a tâmara, a
alfarroba, as palmas, tantas especiarias, madeiras e vários legumes. Como já vimos, muitos dos produtos do pomar e da horta que
enfeitam as mesas de Portugal carregam nomes árabes.
Sintra foi cantada em prosa em verso pelas suas
frutas, dentre as quais tornaram-se célebres as enormes maçãs e as saborosas
peras. O atual Algarve destacava-se pela produção de figos e eram inigualáveis
as uvas de Évora.
Saliente-se ainda o interesse árabe pela produção
do mel e que, embora o seu consumo seja proibido pelo Islão, o vinho foi
produzido e consumido em Portugal em grandes quantidades durante a ocupação
islâmica.
A agricultura prosperou com
novos sistemas de irrigação. Sendo um povo oriundo do deserto, os árabes
dominavam as técnicas de captar, elevar e distribuir a água e a população nativa
aprendeu a regar com eles.
Ao longo de al-Gharb, os árabes
mesclaram os sistemas hidráulicos dos romanos e dos
visigodos com as técnicas que traziam do Oriente e revolucionaram os campos com a
construção de sistemas de irrigação com peças que ainda hoje estão em uso como,
por exemplo, em Tovar. Às vezes construída sobre fundações godas e/ou romanas,
esta nova rede de rega foi conquistada através da introdução nas terras ibéricas
do moinho de vento, do moinho de água ou azenha (al-saniyah em árabe), e da roda de água ou nora (n'urah em árabe)
Tais inovações podem ter sido
os maiores presentes que os muçulmanos deram a Portugal, porque graças a eles e
durante séculos os campos ibéricos foram mais produtivos do que os do resto da
Europa. No século XII o geógrafo marroquino al-Idrisi descreveu o Portugal como
uma terra de belas cidades rodeadas por jardins e pomares irrigados.
Sem quaisquer dúvidas a chegada da civilização
islâmica à península Ibérica provocou importantes transformações econômicas. De
uma economia essencialmente rural passou-se para uma economia marcadamente
urbana.
Os mercados renasceram e neles o comércio de
produtos diversos, principalmente dos produtos de metal, de seda, de algodão e de
lã. A abundante madeira das florestas de Alcácer do Sal, por exemplo, passou a
ser usada para o fabrico de móveis e para a construção naval.
A pesca da sardinha e do atum e a extração do sal foram
dinamizadas através do uso de uma rede mourisca denominada almadrava. A exploração das jazidas de minérios da península – o ouro
nos arenitos do Tejo e a prata nas jazidas de Beja - foi intensificada.
Os mouros praticaram o comércio interno e
internacional, desenvolveram várias indústrias, como a têxtil e a cerâmica,
expandiram a pecuária, o comércio fluvial pelo rio Guadiana e o escoamento da
produção das minas de S. Domingos.
O trabalho duro dos árabes fez Portugal prosperar. Simples assim. O verbo
português mourejar, que significa trabalhar como um mouro, homenageia a diligência
incomum e a tenacidade dos invasores.
As artes e letras também
prosperaram com a tradução de textos do árabe para o latim e com a introdução
das obras de filósofos gregos ainda não lidos na Península Ibérica. Estudos elaborados
nesse período ainda são usados nas aulas de filosofia obrigatórias nas escolas
secundárias portuguesas.
Os árabes abriram escolas e
universidades, elevando os níveis de alfabetização, embora em árabe. No
entanto, a participação de judeus e cristãos nessas escolas e universidades
resultou em avanços e, principalmente, em uma sociedade intelectual e multicultural.
Isso só foi possível devido à liberdade religiosa permitida aos judeus e cristãos,
liberados para professar suas crenças e praticar seus cultos.
Alguns tornaram-se conhecidos
como moçárabes, mantendo a preferência religiosa ao adotar o estilo de vida, a
cultura e a língua árabes. A isenção de impostos concedida aos muçulmanos pode
ter encorajado os nativos a se converter. Além disso, os mouros libertavam os seus
escravos cristãos, se passassem a viver de acordo com o Alcorão.
A população do Portugal sob domínio mouro era muito
heterogênea e constituída por árabes e berberes mulçumanos, moçárabes de religião
cristã mas de estilo de vida muçulmano, judeus e muladis, que eram os
cristãos que convertidos ao islamismo.
Os moçárabes e judeus tinham liberdade de culto,
mas em troca dessa liberdade eram obrigados ao pagamento de impostos. Os dois
grupos tinham suas próprias autoridades, liberdade de ir e vir e podiam ser
julgados de acordo com o seu direito.
Moçárabes e judeus estavam sujeitos às seguintes restrições:
não podiam exercer cargos políticos, casar com uma muçulmana, habitar em bairros
muçulmanos. Além disso eram obrigados a dar hospitalidade ao muçulmano que
necessitasse, sem receber remuneração.
Rascunhando este artigo,
lendo, conversando, puxando pela memória eu me maravilhei ao perceber que os
legados árabes em Portugal são tantos que talvez seja difícil até mesmo para os
próprios portugueses discerní-los todos.
Apesar de todas as pegadas e
digitais mouras visíveis no cotidiano ibérico, para mim ainda não há melhor e
mais bela indicação da contribuição árabe à vida portuguesa do que o som de um
longo e sincero fado chorado na Alfama ou na Mouraria, a terra da tolerância,
onde aos mouros cristãos novos foi permitido morar, logo depois da reconquista
de Lisboa.
Embora sua forma moderna seja
urbana e o fado, como o conhecemos, só tenha nascido no século XIX, nele perdura
algo pungente e mourisco, que ainda me faz encontrar algum sentido diante do
mundo transformado em um barril de pólvora em novas e insanas guerras santas da
Idade das Trevas
É doloroso constatar que a religião
combinada com armas voltou a ser uma forma medieval de desrazão e que houve uma
mutação pervertida e mortal no coração do Islã. Diante da barbárie, é a beleza
e a humanidade ainda presentes nas artes que nos mantém de pé contra toda e
qualquer estupidez, inclusive a religiosa, que merece sim, o nosso desrespeito
destemido.
Durante a ocupação islâmica de
Portugal era assim que pensavam os poetas árabes....
Se em teu coração
cultivaste a rosa do amor,
quer tenhas procurado
ouvir a voz de Deus,
ou esgotado a taça do
prazer,
a tua vida não foi em
vão.
(Omar Khayyam)
Às vêzes na semi-escuridão do fado vadio de Lisboa, ouvindo as fadistas derramando
a alma no ritmo livre e flexível, cantando lamentos, tristeza e desespero misturados
com paixão pela vida eu recordo das vozes monumentais de algumas cantoras
árabes - como Umm Kulthum - e lembro que a flauta de bambu do português Rão
Kyao tocando Oásis tem o som dos desertos árabes.
Ao ouvir Kátia Guerreiro e Amina Aloui cantando fado juntas não sabemos
quando termina o lamento de uma e começa o da outra.
Jogando a cabeça para trás, semicerrando os olhos, torcendo os seus xales e
véus negros, ambas as cantoras nos lembram de tudo o que não sabemos, não
controlamos, não compreendemos e nos fazem pensar que os árabes também já
chamaram a t’rrinha de casa e que a convivência entre mouros e europeus
estabeleceu os pilares sobre os quais a Europa edificou a Renascença.
E então as cordas da guitarra portuguesa soam sim como as do 'ud, o
antepassado árabe do alaúde e eu acredito que o fado tem raízes na tradição
musical árabe e que há fado na poesia moura.
Sim há fado no Rubaiyat de Omar Ibn Ibrahim El Khayyam cuja obra eu
não poderia deixar de mencionar neste artigo. As ilustrações dos poemas em si
já são notáveis. As de Arthur Szyk nos remetem à luxúria das cores ao fascinante design árabe.
Edmund Dulac faz dos poemas contos de fadas orientais, enquanto René Bull expressa
a paixão, a imaginação e a extrema melancolia dos versos do poeta. O persa
Hossein Behzad sabia mais do que a tradução que ilustrou com a mesma fluidez
das rima e métrica dos rubai persas.
Fernando Pessoa, aquele que conseguiu ser quatro entre os
cinco maiores poetas portugueses, foi profundamente influenciado pelos rubai escritos em persa pelo grande
poeta, matemático e astrônomo iraniano Omar
Khayyam. Ele estudou a tradução dos quartetos para o inglês da lavra de
Fitzgerald e chegou a escrever alguns rubai com o terceiro verso branco em meio
aos demais rimados.
Depois
de algumas traduções ou opiniões (rsrs) dos Rubaiyat de Omar Khayyam, eu percebo mesmo e para valer o espírito de Khayyam nos sonetos de Shakespeare,
nos poemas de Walt Whitman, na estupenda poesia de Jorge Luis Borges...
Que a lua do Persa e os incertos
Ouros dos crepúsculos desertos
Voltem. Hoje é ontem. És os outros
Cujo rosto é o pó. És os mortos.
Todas essas pretinhas tem o mesmo som libertário da
triste cantiga de Khayyam, tão distante das certezas, dos dogmas islâmicos, tão perto das dúvidas de vida e
de morte, tão plena de amor, belas mulheres e vinho.
Só que a conversa entre o português Fernando Pessoa
e o árabe Omar Khayyam foi quase psicografia (rsrs).
Não é fácil saber quem escreveu qual das duas
poesias abaixo: se Omar em seu Rubaiyat ou o se Fernando nas Odes de Ricardo
Reis.
Qual dos dois poemas é mouro e qual deles fala
português?
( I )
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem
ante os
deuses quanto
Morre! Tudo
é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te
de rosas, ama, bebe
E cala.
O mais é nada.
( II )
Busca a felicidade
agora,
não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo
cheio de vinho,
senta-te ao luar, e
pensa:
Talvez amanhã a lua me
procure em vão.
Pois é. Os poetas não têm credos nem pátrias nem
tempo. Falam dos mais variados temas e de diferentes paragens e em línguas
diversas, mas o que nos dizem é tão parecido que é como se suas almas fundas
estivessem juntas na mesma mesa de bar, tomando vinho e ouvindo fado.
Os poetas, não importa o que acontecer, continuarão
“conversando”.
1) Desde criança eu cantarolo o verso de Amália Rodrigues "Ai Mouraria":a letra não lembro toda, mas o título sim...
ResponderExcluir2)https://www.letras.mus.br/amalia-rodrigues/230931/
3)Parabéns Pimentel ! Belíssimo artigo nos ensinando sobre as interfaces entre a cultura portuguesa e a cultura muçulmana.
4)Lembro de Sintra querida e amada. Do Algarve inesquecível.
5)Gratidão = GRA(ças a) TI(Moacir, estas linhas)DÃO !
1) Esqueci Pimentel:
ResponderExcluir2)Fátima (604-632) é o nome de uma das filhas do Profeta Maomé !
Vizinho Antônio,
ExcluirTambém eu muito aprecio tanto a canção na voz da Amália quanto a Mouraria que continua, debruada pelo que restou dos muros árabes, multicultural e tolerante permitindo que pelas suas calçadas a diversidade desfile orgulhosa. Com os de Bangladesh, China, Índia , Paquistão , Moçambique e do nosso Brasil ainda podemos saborear o mundo inteiro nos quiosques da Praça San Martin.
Abraço e "gratidão" pelo incentivo que nunca falha.
Moacir,
ResponderExcluirMeus parabéns! Um artigo maravilhoso que nos leva a refletir como o mundo é pequeno e intolerante e que somos todos filhos de um mesmo Pai. São preciosas as informações sobre a nossa língua. Adorei saber sobre as lendas que desconhecia mas de tudo destaco o fado cantado em dueto e os poemas universais. Lindos. Ao lado dos versos de Borges mereciam estar os de Donne: 'A morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti. '
Um abraço para você
Flávia,
ExcluirMuito obrigado por ter colocado o grande John Donne na roda. Como aprendi que poesia a gente só responde com mais versos, mando-lhe um poucachinho dos Lusíadas:
"Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?"
Pois é. Mas quando a coisa fica preta, se a gente lembra do Jobim, acredita que depois da hora mais escura algum amanhecer há de pintar:
"Cadê o dia? Envelheceu
E a tarde caiu e o sol morreu
E de repente escureceu
E a lua, então, brilhou
Depois sumiu no breu
E ficou tão frio que amanheceu".
Outro abraço para você
Todos os frequentadores, leitores, articulistas e comentaristas deste blog extraordinário, sabem os elogios que eu derramaria sobre mais um texto genial do nosso não menos brilhante Pimentel.
ResponderExcluirResumindo, e de modo eu não ser repetitivo, mais um artigo que copiei para arquivá-lo em pasta especial, e minhas reverências ao conhecimento profundo que tens sobre nossos descobridores, suas tradições, folclore e cultura, que nos deixam extasiados e agradecidos ao mesmo tempo, meu amigo.
Um forte abraço, Pimentel.
Saúde e paz!
Chicão,
ExcluirO texto nada tem de genial - esses seus adjetivos do seu tamanho me deixam sem jeito! - mas é honesto e eu gostei de rascunhá-lo. Escrevê-lo ajudou a ver melhor o meu Portugal , aquele que fui descobrindo e saboreando devagar nas últimas décadas e me deixou a certeza do quanto nesses mundo e vida somos influenciados e influenciamos uns aos outros. Que as "digitais " - como diz a Donana - mereçam sempre leitura.
Abração e obrigado pelo comentário
Eu comentei as suas Mourarias mais cedo, Moacir. Amei o artigo!
ResponderExcluirMas devo ter feito alguma coisa errada e sumiu. Não se perdeu grande coisa kkk
Voltei só para agradecer por suas 'conversas' e pelas respostas atenciosas.
Mônica,
ExcluirEu não entendi bem o que aconteceu com o seu comentário - não sei se ele se perdeu por aí ou por aqui - mas lamento não ter lido as suas pretinhas sempre de bem com a vida e atenciosas. Obrigado e abraço
ResponderExcluir"É a beleza e a humanidade ainda presentes nas artes que nos mantém de pé contra toda e qualquer estupidez, inclusive a religiosa, que merece sim, o nosso desrespeito destemido".
Certas coisas que você escreve são tão parecidas com o que penso, que pergunto como em Certa Canção do Milton Nascimento - Como não fui eu que fiz? Porque não tenho a sua habilidade com as ideias e as palavras. Nota mil para o texto.
Alexandre,
ExcluirQuanto ao divino já acreditei , desacreditei, questionei e desisti não dele, mas de pensá-lo.Se algum dia nessa ou noutra vida resolver conversar com ele, trilhando decidido aquela estrada baiana que"ao findar vai dar em nada,nada, nada, nada, nada do que eu pensava encontrar" por óbvio que não o farei portando armas.
Quanto aos humanos o Google diz que o prezado Einstein disse que:
"Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta".
Porém a mim parece que os estúpidos , desde que conseguiram ficar de pé, têm feito mais coisas boas que idiotas, fato que me faz acreditar piamente na e-v-o-l-u-ç-ã-o da espécie (rsrs)
Obrigado pelo incentivo e um abraço
Olá Moacir,
ResponderExcluirAdorei tudo.
Li o poeta nas bocas mouras e no brilho beduíno nas pupilas negras das belas mulheres da casa,
Li o estudioso nas lendas na língua e nos provérbios, na arquitetura, botânica e agricultura,
Li o conhecedor de sabores nos temperos e aromas, nos doces e salgados, nas carnes e caldos, que deixaram água na boca,
Li o artista sensível nas artes, na música e na literatura,
E fiquei muito sabida!
Obrigada pelos mouros.
Até mais.
Caríssima Donana,
ExcluirDos sujeitos acima relacionados só assumo o praticante do pecado da divina gula (rsrs). Mas, é claro, "vou fingir que acredito" nas demais e boas demais pretinhas tecladas pela senhora.
"Gratidão"