Ana Nunes
Em 2013 fui convidada para fazer a logo do
congresso do COBRAE, de mecânica dos solos e engenharia geotécnica, em Angra
dos Reis, onde muito da temática seria a tragédia ocorrida na região serrana
do Rio de Janeiro, no ano anterior.
É a imagem que abre o post.
Na madrugada de 12 de janeiro de 2012 a
chuva desceu toneladas de lama, e de pedras, e de detritos montanha abaixo.
Pegou de surpresa os moradores da região, matou gente e bicho sem
discriminação. Juntou à sua água o choro do povo desorientado, que tendo
perdido tudo, procurava por seus filhos, seus pais, seus companheiros, seus
irmãos. Seus queridos, seus bens mais preciosos.
Famílias inteiras desapareceram e com elas
qualquer registro de si mesmos. Ou alguém que procurasse por elas. Documentos nunca
encontrados levaram um pouco da identidade de seus donos.
A bela Petrópolis dos imperadores, a
Teresópolis da imperatriz e a Friburgo das pequenas lojas ficaram desfiguradas.
Minha irmã, que é engenheira de solos, lá
esteve com os bombeiros, afundando os pés na terra podre. E viu pedaços de
corpos em cercas de arame farpado, sentiu o cheiro podre da decomposição que
subia da lama. E encontrou fantasmas sobreviventes, que sem mais nada alem da
dor, ajudavam seus iguais. Muita lama e muita lágrima. E muita compaixão.
Muito foi falado e muito pouco, ou quase
nada, foi feito.
Além da logo eu deveria fazer os brindes
para os palestrantes. E um texto explicativo.
Em cima de gravuras em água forte, preto e
branco, de figuras humanas chamadas Meamargo, pintei em aquarela delicada
orquídeas, cimbídios, monsteras, strelitzias, brassarolas, campainhas da china,
espatifilos, copos de leite, frésias, petúnias russélias. E muitas outras. Em
baixo de cada gravura vinha, escrito a lápis, a ficha técnica da flor. Desenhei
pesquisando em livros, e fazendo o mais fiel que pude.
As figuras eram a morte e as flores a
vida.
O texto, impresso em papel reciclado,
dizia assim:
Meamargo
em flor
“Minha raiva deu em mim, me mordi, me abri, me amargo.
Tanto tudo ia sendo sempre (...)”
É quando o buril rasga a chapa de ferro e o ácido morde
E a essa amargura se junta a terra embolada de sol e água
que desce em “martírio de sofrimentos”.
E nessa mesma terra cruel e desbarrancada, com cheiro
de morte podre, aparece um pontinho de luz e de cor
como gota de aquarela fresca.
Uma folha, uma flor, quem sabe um fruto?
É a vida que insiste teimosa e atrevida e se alastra como
praga morro
acima.
As citações são de João Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas
Aninha,
ResponderExcluirDepois o Wilson não gosta, mas o que fez o governo depois desta tragédia?
Nada, absolutamente nada!
Famílias ainda esperam por ajuda, pela construção de casas populares, então me vem à mente o terremoto no Japão, em 2011, cujos tsunamis mataram quase 30.000 japoneses, e as cidades que foram varridas pela água estão recuperadas e suas populações com suas residências reerguidas!
Evidente que é de se admirar - e sei que foi esta a tua intenção com este artigo muito interessante, bem escrito -, que do meio dos escombros e sofrimentos ainda surja a arte em seu esplendor, evidenciando a sensibilidade humana por mais que esteja sendo posta à prova!
Aliás, exatamente durante as crises que a criatividade vem à tona, tanto pelo lado das palavras, romances, crônicas, contos, quanto pelas esculturas, telas, música, danças ...
Excelente artigo, Ana, mostrando alguns contrastes entre a miséria humana ocasionada pela natureza, e a natureza humana se impondo com o que tem de melhor, a arte!
Um forte abraço.
Saúde e paz!
Olá Francisco Bendl
ExcluirMeu colega dissidente! Bom esse rótulo, principalmente nos tempos de hoje, né?
Mas temos que tomar cuidado, senão o nosso moderador nos tira do blog! Aí eu tenho que ir para a TI com você.Já pensou que confusão?
Mas concordo com você em tudo que disse.
É de se admirar é a força do ser humano que depois de tudo, se reconstrói, inventa uma nova vida, e recomeça como pode. E ainda ajuda e tenta ser feliz.
Obrigada.
Saúde e paz para vc também.
As obras me deixaram muda...
ResponderExcluirSó consigo agradecer por colocar na tela sua sensibilidade.
Sem palavras.
Olá Mônica,
ExcluirE seu comentário me deixou feliz!
Eu que agradeço.
Até mais.
Caríssima Donana,
ResponderExcluirÉ complicado inventar palavras para comentar este belíssimo post no qual as cores da sua arte conversam mais alto do que a das suas pretinhas. Tem razão a Mônica: dizer-lhe o quê além da “gratidão”do vizinho?
Acontece que eu sou mais atrevido do que a vida e quase sempre tenho a impressão de que se eu não teclar, o meu HD explodirá (rsrs) Eu vi Petrópolis e Teresópolis e Friburgo devastadas e senti isso que escorre em vermelho pelas encostas da imagem que abre o post : "o martírio de sofrimentos” , essa dor do mundo, esse cansaço que nos paralisa ou ensandece diante das nossas efemeridade e impotência, da inadequação e da injustiça, da crueldade do mundo.
O que encanta a alma funda é ver passo a passo, como a senhora amalgamou tudo isso - o espanto, a raiva, a revolta, o travo amargo, a lama, a podridão, o fedor, os pedaços, a indiferença, a maldade,as perdas, a velha senhora - na inspiração que fez o “buril rasgar a chapa de ferro e o ácido mordê-la”, para supurar a ferida e inventar um jardim de aquarelas sobreposto à exatidão preta no branco de seus fantasmas.
O melhor é perceber que sem as sombras torturadas sobre as quais a senhora pingou lágrimas de aquarela, as cores não seriam o que são, não conversariam do jeito que fazem. E as flores seriam apenas lindas como aquelas desenhadas por cientistas nos capítulos de um livro de Botânica.
A sua arte está na tensão serena entre esses avessos, em como essas formas se abraçam através da mistura sutil e gradual de um estado de espírito para outro, de um tom para o seguinte, sem qualquer transição visível entre luz e sombra, sem rupturas cromáticas. Ambos lá: o dia e a noite, o bem e o mal, o caos e a ordem, a vida e a morte, contrapontos equilibrando-se, neutralizando-se,socorrendo-se: as figuras suavizando o brilho das flores e elas aliviando a escuridão das silhuetas.
O nome disso eu não sei.Talvez seja vida. Meu neto deu de chamar o que não entende mas acha bonito de “ mágico”. Talvez seja mesmo coisa de quem convive com runas (rsrs). Graçasadeus, o Keats já inventou os versos corretos em resposta à sua poesia:
“A thing of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness. “
Nossa, Moacir, fiquei encabulada e muito feliz. O que você escreveu é muito mais lindo que quaisquer pretinhas minhas.
ExcluirAgora, como você costuma dizer, "aqui entre nós e que ninguém nos ouça", existe "alienação" maior do que escrever sobre o próprio trabalho?
"Gratidão" !
1) Parabéns Ana pelas gravuras, ilustrações e texto.
ResponderExcluir2) Ser artigo serve de alerta para ficarmos sempre atentos com o que acontece em nossa realidade social.
3)No último fim de semana estive em Teresópolis. Lembrei da citada tragédia, mas como vc bem citou, segundo Guimarães Rosa:
4)"É a vida que insiste teimosa e atrevida e se alastra como praga morro acima".
5)Cinco anos depois penso que os teresopolitanos deram a volta por cima e estão reconstruindo suas vidas e sua bela cidade.
6)As gravuras expressam o contraste morte e vida, os dois lados da moeda existência, um não vive sem o outro: alegria e dor...
Antonio, só um reparo: o verso que você citou não é do grande Rosa, é da Ana.
ExcluirO poema é dela, do Rosa só os versos entre aspas.
Um abraço do
Mano
Olá Antônio,
ExcluirDe fato é gratificante, apesar de dolorido, ver o povo reconstruir sua vida e sua cidade. E muitas vezes (que o meu amigo dissidente não me leia) inteiramente abandonado à sua própria sorte.
Alegria e dor, só existe uma porque existe a outra, como você bem disse.
Pegando emprestado,
Gratidão.
Você viu o meu comentário no seu último post? Chegou a ler o anterior que foi apagado? Espero que não...
Até mais.
1) Oi Ana, infelizmente não li o comentário apagado.
Excluir2)Se ainda tiver por aí, pode enviá-lo para o meu e-mail...
3)Gratidão !
1) Mil perdões Ana, o trecho que destaquei é muito bonito, bem significativo e na pressa confundi.
ResponderExcluir2)Tudo de bom !
Ana,
ResponderExcluirFui morar no Rio em 1983 e, desde então, espero sem nenhuma vontade pela tragédia das chuvas do início do ano. A mesma cantilena dos políticos que vão se sucedendo à frente da falência pública brasileira aponta para o mesmo destino: o nada!
No mais, dizer o quê diante do seu texto e dos seus traços arrebatadores? Obrigado. Obrigado por se compadecer das vítimas e colocar suas artes a favor delas. E preparar tintas e cores porque o Rio segue liderando disparado o ranking de mortes pela água que vira lama e esmaga pessoas e nossa dignidade nacional.
Olá Heraldo, Como você, todo início de ano fico na triste expectativa de novas tragédias. E na triste constatação de que sempre nada é feito. Compadecer-nos das vítimas é condição humana. E sou eu que agradeço o seu comentário tão gentil e tão zangado, como estamos todos. Até mais.
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