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01/02/2017

De lama e de lágrimas


  
Ana Nunes
 Em 2013 fui convidada para fazer a logo do congresso do COBRAE, de mecânica dos solos e engenharia geotécnica, em Angra dos Reis, onde muito da temática seria a tragédia ocorrida na região serrana do Rio de Janeiro, no ano anterior.
É a imagem que abre o post.
Na madrugada de 12 de janeiro de 2012 a chuva desceu toneladas de lama, e de pedras, e de detritos montanha abaixo. Pegou de surpresa os moradores da região, matou gente e bicho sem discriminação. Juntou à sua água o choro do povo desorientado, que tendo perdido tudo, procurava por seus filhos, seus pais, seus companheiros, seus irmãos. Seus queridos, seus bens mais preciosos.
Famílias inteiras desapareceram e com elas qualquer registro de si mesmos. Ou alguém que procurasse por elas. Documentos nunca encontrados levaram um pouco da identidade de seus donos.
A bela Petrópolis dos imperadores, a Teresópolis da imperatriz e a Friburgo das pequenas lojas ficaram desfiguradas.
Minha irmã, que é engenheira de solos, lá esteve com os bombeiros, afundando os pés na terra podre. E viu pedaços de corpos em cercas de arame farpado, sentiu o cheiro podre da decomposição que subia da lama. E encontrou fantasmas sobreviventes, que sem mais nada alem da dor, ajudavam seus iguais. Muita lama e muita lágrima. E muita compaixão.
Muito foi falado e muito pouco, ou quase nada, foi feito.
Além da logo eu deveria fazer os brindes para os palestrantes. E um texto explicativo.
Em cima de gravuras em água forte, preto e branco, de figuras humanas chamadas Meamargo, pintei em aquarela delicada orquídeas, cimbídios, monsteras, strelitzias, brassarolas, campainhas da china, espatifilos, copos de leite, frésias, petúnias russélias. E muitas outras. Em baixo de cada gravura vinha, escrito a lápis, a ficha técnica da flor. Desenhei pesquisando em livros, e fazendo o mais fiel que pude.
As figuras eram a morte e as flores a vida.





O texto, impresso em papel reciclado, dizia assim:
Meamargo em flor
“Minha raiva deu em mim, me mordi, me abri, me amargo.
  Tanto tudo ia sendo sempre (...)”
É quando o buril rasga a chapa de ferro e o ácido morde
E a essa amargura se junta a terra embolada de sol e água
que desce em “martírio de sofrimentos”.
E nessa mesma terra cruel e desbarrancada, com cheiro
de morte podre, aparece um pontinho de luz e de cor
como gota de aquarela fresca.
Uma folha, uma flor, quem sabe um fruto?
É a vida que insiste teimosa e atrevida e se alastra como
praga morro acima.

As citações são de João Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas



13 comentários:

  1. Francisco Bendl01/02/2017, 09:38

    Aninha,

    Depois o Wilson não gosta, mas o que fez o governo depois desta tragédia?

    Nada, absolutamente nada!

    Famílias ainda esperam por ajuda, pela construção de casas populares, então me vem à mente o terremoto no Japão, em 2011, cujos tsunamis mataram quase 30.000 japoneses, e as cidades que foram varridas pela água estão recuperadas e suas populações com suas residências reerguidas!

    Evidente que é de se admirar - e sei que foi esta a tua intenção com este artigo muito interessante, bem escrito -, que do meio dos escombros e sofrimentos ainda surja a arte em seu esplendor, evidenciando a sensibilidade humana por mais que esteja sendo posta à prova!

    Aliás, exatamente durante as crises que a criatividade vem à tona, tanto pelo lado das palavras, romances, crônicas, contos, quanto pelas esculturas, telas, música, danças ...

    Excelente artigo, Ana, mostrando alguns contrastes entre a miséria humana ocasionada pela natureza, e a natureza humana se impondo com o que tem de melhor, a arte!

    Um forte abraço.
    Saúde e paz!

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    1. Olá Francisco Bendl
      Meu colega dissidente! Bom esse rótulo, principalmente nos tempos de hoje, né?
      Mas temos que tomar cuidado, senão o nosso moderador nos tira do blog! Aí eu tenho que ir para a TI com você.Já pensou que confusão?
      Mas concordo com você em tudo que disse.
      É de se admirar é a força do ser humano que depois de tudo, se reconstrói, inventa uma nova vida, e recomeça como pode. E ainda ajuda e tenta ser feliz.
      Obrigada.
      Saúde e paz para vc também.

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  2. Monica Silva01/02/2017, 09:49

    As obras me deixaram muda...
    Só consigo agradecer por colocar na tela sua sensibilidade.
    Sem palavras.

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    1. Olá Mônica,
      E seu comentário me deixou feliz!
      Eu que agradeço.
      Até mais.

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  3. Moacir Pimentel01/02/2017, 17:38

    Caríssima Donana,
    É complicado inventar palavras para comentar este belíssimo post no qual as cores da sua arte conversam mais alto do que a das suas pretinhas. Tem razão a Mônica: dizer-lhe o quê além da “gratidão”do vizinho?
    Acontece que eu sou mais atrevido do que a vida e quase sempre tenho a impressão de que se eu não teclar, o meu HD explodirá (rsrs) Eu vi Petrópolis e Teresópolis e Friburgo devastadas e senti isso que escorre em vermelho pelas encostas da imagem que abre o post : "o martírio de sofrimentos” , essa dor do mundo, esse cansaço que nos paralisa ou ensandece diante das nossas efemeridade e impotência, da inadequação e da injustiça, da crueldade do mundo.
    O que encanta a alma funda é ver passo a passo, como a senhora amalgamou tudo isso - o espanto, a raiva, a revolta, o travo amargo, a lama, a podridão, o fedor, os pedaços, a indiferença, a maldade,as perdas, a velha senhora - na inspiração que fez o “buril rasgar a chapa de ferro e o ácido mordê-la”, para supurar a ferida e inventar um jardim de aquarelas sobreposto à exatidão preta no branco de seus fantasmas.
    O melhor é perceber que sem as sombras torturadas sobre as quais a senhora pingou lágrimas de aquarela, as cores não seriam o que são, não conversariam do jeito que fazem. E as flores seriam apenas lindas como aquelas desenhadas por cientistas nos capítulos de um livro de Botânica.
    A sua arte está na tensão serena entre esses avessos, em como essas formas se abraçam através da mistura sutil e gradual de um estado de espírito para outro, de um tom para o seguinte, sem qualquer transição visível entre luz e sombra, sem rupturas cromáticas. Ambos lá: o dia e a noite, o bem e o mal, o caos e a ordem, a vida e a morte, contrapontos equilibrando-se, neutralizando-se,socorrendo-se: as figuras suavizando o brilho das flores e elas aliviando a escuridão das silhuetas.
    O nome disso eu não sei.Talvez seja vida. Meu neto deu de chamar o que não entende mas acha bonito de “ mágico”. Talvez seja mesmo coisa de quem convive com runas (rsrs). Graçasadeus, o Keats já inventou os versos corretos em resposta à sua poesia:

    “A thing of beauty is a joy for ever:
    Its loveliness increases; it will never
    Pass into nothingness. “

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    1. Nossa, Moacir, fiquei encabulada e muito feliz. O que você escreveu é muito mais lindo que quaisquer pretinhas minhas.
      Agora, como você costuma dizer, "aqui entre nós e que ninguém nos ouça", existe "alienação" maior do que escrever sobre o próprio trabalho?
      "Gratidão" !

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  4. 1) Parabéns Ana pelas gravuras, ilustrações e texto.

    2) Ser artigo serve de alerta para ficarmos sempre atentos com o que acontece em nossa realidade social.

    3)No último fim de semana estive em Teresópolis. Lembrei da citada tragédia, mas como vc bem citou, segundo Guimarães Rosa:

    4)"É a vida que insiste teimosa e atrevida e se alastra como praga morro acima".

    5)Cinco anos depois penso que os teresopolitanos deram a volta por cima e estão reconstruindo suas vidas e sua bela cidade.

    6)As gravuras expressam o contraste morte e vida, os dois lados da moeda existência, um não vive sem o outro: alegria e dor...

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    1. Wilson Baptista Junior01/02/2017, 19:57

      Antonio, só um reparo: o verso que você citou não é do grande Rosa, é da Ana.
      O poema é dela, do Rosa só os versos entre aspas.
      Um abraço do
      Mano

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    2. Olá Antônio,
      De fato é gratificante, apesar de dolorido, ver o povo reconstruir sua vida e sua cidade. E muitas vezes (que o meu amigo dissidente não me leia) inteiramente abandonado à sua própria sorte.
      Alegria e dor, só existe uma porque existe a outra, como você bem disse.
      Pegando emprestado,
      Gratidão.
      Você viu o meu comentário no seu último post? Chegou a ler o anterior que foi apagado? Espero que não...
      Até mais.

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    3. 1) Oi Ana, infelizmente não li o comentário apagado.

      2)Se ainda tiver por aí, pode enviá-lo para o meu e-mail...

      3)Gratidão !

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  5. 1) Mil perdões Ana, o trecho que destaquei é muito bonito, bem significativo e na pressa confundi.

    2)Tudo de bom !

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  6. Heraldo Palmeira01/02/2017, 20:38

    Ana,
    Fui morar no Rio em 1983 e, desde então, espero sem nenhuma vontade pela tragédia das chuvas do início do ano. A mesma cantilena dos políticos que vão se sucedendo à frente da falência pública brasileira aponta para o mesmo destino: o nada!

    No mais, dizer o quê diante do seu texto e dos seus traços arrebatadores? Obrigado. Obrigado por se compadecer das vítimas e colocar suas artes a favor delas. E preparar tintas e cores porque o Rio segue liderando disparado o ranking de mortes pela água que vira lama e esmaga pessoas e nossa dignidade nacional.

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    1. Olá Heraldo, Como você, todo início de ano fico na triste expectativa de novas tragédias. E na triste constatação de que sempre nada é feito. Compadecer-nos das vítimas é condição humana. E sou eu que agradeço o seu comentário tão gentil e tão zangado, como estamos todos. Até mais.

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